TRANSPORTE PÚBLICO SEM RUMO
Com muitos sistemas de transporte coletivo à beira do colapso por conta da pandemia, um auxílio emergencial por parte do Governo Federal é mais do que necessário. Na falta dele, as prefeituras das capitais socorreram as concessionárias de ônibus. Avaliamos a concessão desses subsídios e deparamos com falta de transparência e muita desordem
Caos. Essa é uma ótima palavra para definir o transporte público brasileiro durante a pandemia. Isso porque o setor já vinha passando por uma crise estrutural, com queda de passageiros, perda sistemática de qualidade e falta de capacidade para financiar o sistema, já que a receita depende quase que exclusivamente da tarifa paga pelos usuários. "A pandemia de Covid-19 piorou ainda mais a situação: a queda acentuada de passageiros levou à perda de receita, que, por sua vez, fez com que sistemas entrassem em colapso", afirma Aline Leite, pesquisadora do programa de Mobilidade do Idec. Claramente o setor precisa de ajuda. O Projeto de Lei (PL) no 3.364/2020 estabelecia um auxílio financeiro de cerca de R$ 5 bilhões que seria concedido pelo Governo Federal às empresas que operam o sistema de ônibus. Mas ele foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2020. Sem o auxílio federal, os municípios foram obrigados a encontrar formas emergenciais de evitar o colapso de seus sistemas de transporte. "O problema é que esse socorro municipal foi feito sem fiscalização e sem muitos critérios. Cada cidade faz de um jeito e não divulga o que fizeram. É caótico", diz Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec.
O Idec mapeou os subsídios concedidos nas 27 capitais brasileiras, avaliando a forma de concessão e as contrapartidas exigidas pelo poder público, ou seja, o que as empresas deveriam fazer em troca do benefício recebido. "As contrapartidas seriam um instrumento importante para tentar implementar melhores práticas de gestão, procurando resolver problemas crônicos de perda de qualidade e passageiros. Porém, sem fiscalização, os problemas estruturais do setor não serão resolvidos, apesar de aportes relativamente consistentes", explica Leite.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
O objetivo desta pesquisa era analisar os subsídios concedidos pelas prefeituras das 27 capitais brasileiras às empresas responsáveis pelo sistema de ônibus, e as eventuais contrapartidas demandadas, ou seja, ações que devem ser implementadas pelas operadoras em troca do auxílio recebido.
Primeiramente, levantamos no site das prefeituras e em reportagens da imprensa quais as cidades que contaram com subsídio público, de março de 2020 a setembro de 2021, e o que foi pedido em troca. Depois, tabulamos os dados, com a classificação do tipo de subsídio e o tipo de contrapartida.
Enviamos carta a 12 das 27 cidades – Fortaleza (CE), Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Brasília (DF), Goiânia (GO), Manaus (AM), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP) – informando o resultado do levantamento e fazendo alguns questionamentos. Apenas quatro capitais responderam: Belo Horizonte, Belém, Rio de Janeiro e São Paulo. As informações enviadas por elas foram incluídas no estudo.
Esta é a primeira etapa da pesquisa. Na segunda, faremos um mapeamento mais amplo, incluindo um número maior de cidades.
Rafael Calabria, coordenador do programa de Mobilidade do Idec
O mapeamento feito pelo Instituto reforçou a desorganização e a falta de transparência do sistema de transportes no Brasil. "Foi muito difícil encontrar informações relacionadas aos subsídios", conta Leite. "É um absurdo que esses dados não sejam amplamente divulgados (sobre os valores recebidos e o que foi feito em contrapartida). A falta de informação é assustadora. É um setor muito mal regulado", critica Calabria.
Se o caos está instalado, podemos dizer que uma das cidades mais caóticas é Salvador (BA). Lá, a perda significativa de usuários provocada pela pandemia causou a falência de uma das três concessionárias de ônibus. "A prefeitura teve de assumir 1/3 da operação do sistema, cortar linhas, demitir funcionários e cortar benefícios e direitos dos usuários. A pandemia colocou em xeque o modelo adotado, mas quem sofre com isso são os cidadãos", declara o administrador público e doutor em Arquitetura e Urbanismo Daniel Caribé, coordenador do Obesrevatório da Mobilidade Urbana de Salvador (ObMob). Para ele, o subsídio é mais do que necessário. "Eu defendo, inclusive, o subsídio total (ou Tarifa Zero). É esse o tema da minha tese de doutorado, defendida em 2019. O que não dá é para repassar dinheiro para os operadores apenas para recuperá-los e garantir o lucro deles enquanto as pessoas migram para os aplicativos, se endividam adquirindo automóveis, se arriscam sobre motocicletas…", ele argumenta.
COM SUBSÍDIO
Das 27 capitais brasileiras, 24 contaram com subsídios das prefeituras, que somaram R$ 2.217.246.709,39 – valor este que pode ser maior ou menor. "A falta de transparência não permitiu que chegássemos a um número exato", diz Leite. Em Belo Horizonte, por exemplo, o levantamento apontou que a prefeitura gastou R$ 64 milhões na compra de vale-transporte. Mas André Veloso, coordenador de políticas públicas do Movimento Nossa BH, afirma que o subsídio pode ter chegado a R$ 220 milhões. "Embora o valor seja alto, ele foi mal direcionado e mal fiscalizado. Ou seja, a concessão foi mal feita, sem nenhuma transparência", critica.
Os subsídios foram classificados em: isenção de imposto; auxílio emergencial (dinheiro dado pelo Poder Público às empresas de ônibus); subsídio tarifário (dinheiro concedido para compensar o déficit tarifário, que é a diferença entre a tarifa cobrada dos usuários e a tarifa de remuneração, que representa os reais custos de operação); compra de gratuidades (a prefeitura compra um determinado número de passagens, pagando o valor que não é cobrado de idosos, por exemplo); aumento do subsídio pré-existente; adiantamento de subsídio em cidades que já o tinha; desconto em multas; e compra de vale transporte para servidores públicos. Veja no infográfico ao lado o subsídio concedido por cada município.
"O fato de a maioria das capitais ter implementado algum tipo de subsídio público emergencial para os sistemas de ônibus, sem debater sua qualidade, é um sinal evidente do esgotamento do atual modelo de financiamento, baseado exclusivamente na arrecadação da tarifa paga pelo usuário", constata Annie Oviedo, analista de mobilidade urbana do Idec.
SEM SUBSÍDIO
As três capitais que não contaram com nenhum tipo de subsídio foram: Aracaju (SE), Belém (PA) e Boa Vista (RR). "A falta de subsídio coloca o transporte público dessas cidades em situação complicada, com a possibilidade de colapso do sistema", aponta Leite. Em Aracaju, a situação do transporte público é preocupante. Recentemente, os trabalhadores do Grupo Progresso – a empresa que presta serviços de transporte – entraram em greve. O motivo foi a falta de pagamento de salários e benefícios.
Em Belém, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belém (Setransbel) está propondo aumento na tarifa, de R$ 3,60 para R$ 4,87. A justificativa para o aumento é a falta de subsídios. O sindicato pontuou que as empresas de transporte coletivo da região têm encontrado dificuldades para cumprir compromissos financeiros e, sem subsídio, não haverá outra saída se não o aumento da passagem.
Já em Boa Vista, o principal problema é a aglomeração nos veículos, pois desde o início da pandemia, a prefeitura tem diminuído o número de ônibus em circulação.
TOMA LÁ, DÁ CÁ
Um dos pontos positivos do PL nº 3.364 era a presença de contrapartidas. "A expectativa era de que essas exigências pudessem abrir o caminho para implementações definitivas, a fim de melhorar a qualidade dos sistemas e aumentar a transparência", comenta Oviedo. Com os subsídios municipais, cada prefeitura estabeleceu seus critérios. Para o Idec, as contrapartidas mais interessantes para os usuários foram "ampliação da frota", "bloqueio de aumento nas tarifas", "redução das tarifas" e "melhorias relacionadas à pandemia", como a exigência de veículos com janelas que abrem e álcool gel a bordo. Já para os trabalhadores, a "manutenção de empregos" e o "pagamento de salários, outros benefícios e encargos trabalhistas" foram as mais impactantes. Contudo, não foi possível avaliar se, de fato, elas foram colocadas em prática, pois esses dados não estão disponíveis. "Mas há muitas matérias na imprensa e denúncias de usuários sobre ônibus lotados, inclusive fora do horário de pico, por conta da redução da frota", diz Oviedo.
Em Belo Horizonte (MG), por exemplo, as operadoras deveriam garantir que os ônibus não ficassem lotados. Não é o que está acontecendo. "A prefeitura não tem mecanismo coercitivos que possibilitem que o serviço seja de fato entregue. Se a empresa descumpre algum parâmetro de qualidade estabelecido, o máximo que pode acontecer é uma multa ser aplicada, se o descumprimento for detectado. Essa multa ainda poderá ser questionada administrativamente e, depois, judicialmente, sem o menor efeito na operação cotidiana do transporte", menciona Veloso, completando: "Por isso, a única forma concreta de fazer com que as contrapartidas sejam respeitadas é reformulando o contrato de concessão e passando o controle dos recursos para a prefeitura, com a remuneração por serviço prestado e não mais por passageiro pagante transportado". Caribé, de Salvador (BA), concorda: "É preciso anular o contrato vigente, que nunca foi respeitado, e fazer uma nova licitação, com outra forma de remuneração das operadoras. A prefeitura tem de criar um fundo de mobilidade e pagar os operadores por quilômetro rodado em vez de pela tarifa arrecadada".
Calabria destaca que os casos mais graves, no entanto, são os das capitais onde nenhuma contrapartida foi estabelecida. São elas: Natal (RN), São Luís (MA), Campo Grande (MT), Goiânia (GO), Rio de Janeiro (RJ) e Florianópolis (SC).
E AGORA, JOSÉ?
Os especialistas consultados para esta reportagem entendem que o sistema de transportes deveria ser financiado pelo Poder Público, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) e concordam que aportes ocasionais não resolvem o problema estrututural que ele enfrenta. Então, o que fazer para reverter o cenário atual?
Caribé defende que é preciso inverter a hierarquia das vias públicas, ou seja, colocar os carros no último lugar das prioridades, diminuindo o espaço deles nas ruas e aumentando o dos transportes coletivos, com a criação de faixas exclusivas e corredores de BRT, além de implementação de VLTs nas grandes cidades. "É preciso ofertar mais linhas para os bairros populares e periféricos. Em Salvador, podemos ser ainda mais criativos, investindo nos transportes marítimo e vertical, que fazem com que moradores das ilhas, da península e do subúrbio tenham mais opções de deslocamento, e os moradores das partes altas acessem com facilidade os transportes da parte baixa. Mas o que estamos vendo é o oposto: construção de vias expressas, viadutos, estacionamentos e tamponamento de rios. Por último, a tarifa tem que ser zerada para algumas frações da população", ele sugere. No entanto, ele diz estar pessimista. "As pessoas introjetaram que é cada um por si e nada casa mais com isso do que a ideia de ter o seu próprio meio de transporte motorizado. É mais popular, mesmo para governos de esquerda, ceder a esse desejo do que tentar reverter o ciclo, apostando nos transportes coletivos ou fazendo mudanças para tornar os municípios mais densos e policêntricos. Cidades espraiadas e monocêntricas como as nossas criam uma dependência muito grande dos meios motorizados. Para reverter esse quadro será preciso uma forte mobilização popular, com foco nos direitos sociais e no combate às desigualdades, como foi o início das mobilizações de 2013. Ou seja, precisamos completar o que iniciamos há quase uma década. Só aí voltarei a ser otimista", desabafa.
CORTE DE BENEFÍCIOS
Em meio à crise financeira causada pela pandemia, muitas prefeituras autorizaram o corte de gratuidades, que são isenções tarifárias concedidas a alguns grupos sociais, como idosos, pessoas com deficiência, estudantes etc. O custo dessas viagens é incorporado ao valor final da tarifa, que é paga pelos demais passageiros.
Dez cidades cortaram gratuidades. Cuiabá (MT) suspendeu a passagem gratuita para idosos. Aracaju (SE), Belo Horizonte (MG) e Natal (RN) também retiraram o direito de os idosos viajarem de graça, mas apenas em horário de pico. Em Campo Grande (MS), idosos e estudantes não podem mais contar com gratuidade. Porto Alegre (RS) retirou a passagem gratuita de idosos, bombeiros, professores e pacientes crônicos. Recife (PE) e Rio de Janeiro (RJ) cancelaram o passe livre estudantil, e São Paulo (SP), além do passe para estudantes, parou de oferecer gratuidade a idosos. O Idec entrou como amicus curiae (amigo da corte) na ação que contesta o corte de gratuidades para idosos na capital paulista.
Mas o caso mais grave é o de Brasília (DF), onde os profissionais de saúde – "peças" fundamentais para o controle da pandemia – perderam o benefício.
Para Veloso, do Movimento Nossa BH, também é importante melhorar a frota, aumentar a velocidade operacional com a criação de faixas exclusivas, além redução de vagas de estacionamento, cobrança de imposto sobre o uso do uber e do carro etc. E assim como Caribé, ele também está descrente. "As perspectivas são bem ruins se as medidas tomadas continuarem a ser tímidas e insuficientes como têm sido. A tendência é a continuidade da queda de demanda do transporte coletivo, com consequente crise de financiamento e aumento do uso do transporte individual motorizado, com a piora da segregação sócio-espacial da população mais vulnerável". Para mudar o quadro, ele recomenda um pacto federativo nacional, com um plano de financiamento e recuperação do transporte coletivo, além de mudança de seus principais atores, trazendo novos empreendedores e envolvendo a população usuária nos processos deliberativos e de fiscalização.
O Idec assina embaixo.
Saiba mais
Matéria "Lotação contraindicada", da Revista do Idec: https://bit.ly/3gyNqpM
Levantamento do Idec sobre as CPIs que investigam ilegalidades nos sistemas de transporte público brasileiro: https://bit.ly/3guxe8S