MERCADO DE DADOS
Coleta em farmácias levanta preocupação sobre proteção de dados pessoais sensíveis relacionados ao histórico de saúde dos consumidores. Afinal, por que as drogarias querem tanto seu CPF e até sua impressão digital?
O Brasil vive uma das piores crises econômicas dos últimos tempos. São 14,8 milhões de desempregados (ou 14,6% da população economicamente ativa), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativos a maio deste ano, o segundo pior resultado desde 2012. Somado à alta do dólar e da inflação, que impactam diretamente o preço de alimentos, do gás de cozinha e da gasolina, o País vê as desigualdades sociais se aprofundarem e as contas apertarem, sobretudo para os mais pobres.
Nesse contexto, a possibilidade de pagar um pouco mais barato em itens essenciais soa não só tentadora, como quase imperativa. Assim, a oferta de desconto em medicamentos e outros produtos pelas farmácias mediante fornecimento do número do Cadastro de Pessoa Física (CPF), prática que se tornou comum nos últimos anos, atrai muita gente, mesmo que em condição econômica mais favorecida. É o caso do administrador Danilo Serafim, 34 anos. Morador da capital paulista, ele aceita fornecer o número de seu documento pessoal para pagar um pouco menos nos remédios que adquire regularmente. Para ele, porém, o CPF é o máximo de informação pessoal que cede. "Não forneço carteirinha do plano de saúde, que também sempre pedem. O CPF é praticamente 'normal', mas outros dados já acho muito invasivo. Na carteirinha tem informações de onde eu trabalho, data de nascimento, tipo de plano etc.", diz.
A pesquisadora do Laboratório de Tecnologias Livres da Universidade Federal do ABC (UFABC) Joyce Souza, que estuda o tema em seu doutorado, avalia que optar por fornecer ou não o CPF é, infelizmente, um privilégio. "No atual contexto econômico, quem são as pessoas que podem escolher não ter de 30% a 70% de desconto em um medicamento? Costumo dizer que, no Brasil, a privacidade dos dados de saúde tem se tornado um privilégio de classe", declara.
BIOMETRIA: AVANÇANDO FRONTEIRAS
Nesse cenário de consumidores "reféns" de descontos, as drogarias aproveitam para avançar fronteiras e obter ainda mais dados pessoais. Em junho, veio à tona que as farmácias das redes Droga Raia e Drogasil estavam pedindo biometria - sim, a impressão digital! - dos clientes para liberar promoções. Ambas fazem parte do grupo empresarial RD, que tem mais de 2.300 lojas em 24 estados brasileiros, segundo informa sua página na internet, e lidera o mercado de farmácias no País.
O Idec imediatamente reagiu e notificou extrajudicialmente o Grupo RD, cobrando explicações sobre a prática e sobre a segurança dos dados coletados. "A biometria é um dado extremamente sensível de identificação pessoal, o que requer camadas ainda maiores de proteção por parte de quem a coleta", afirma Matheus Falcão, analista do programa de Saúde do Instituto. O Procon-SP também exigiu esclarecimentos. Diante da pressão dos órgãos de defesa do consumidor, no início de julho o grupo informou que suspenderia a medida.
Questionado pela Revista do Idec, o Grupo RD alegou que a biometria era utilizada como mecanismo de consentimento dos clientes para captura de dados e que seu uso era "estritamente legal e voluntário", justificando que a medida foi descontinuada apenas por ter causado "desconfortos". Quanto às impressões digitais coletadas, a companhia afirma que elas "permanecerão armazenadas em ambiente seguro como evidência dessa autorização e não serão usadas de nenhuma outra forma", mas que os consumidores que tiverem fornecido sua biometria e quiserem revogar a autorização podem fazê-lo por meio de qualquer canal de atendimento das drogarias da rede.
SENSÍVEL DEMAIS
O "desconforto" que o Grupo RD admite ter provocado pode ser lido, na verdade, como grande preocupação. Afinal, se até hoje as farmácias não explicaram direito porque querem tanto o CPF dos clientes, oferecendo descontos para obtê-lo, tampouco fica claro o que poderia ser feito com a biometria.
Vale destacar que a impressão digital é um dado pessoal sensível. A definição é dada pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 2020. Essa categoria diz respeito a informações que têm potencial de expor o indivíduo a situações discriminatórias, o que inclui todos os dados referentes à saúde ou à vida sexual e também informações de identificação muito específicas, como a impressão digital ou material genético. Dessa forma, diversos dados envolvidos na venda de medicamentos e outros produtos comercializados em farmácias, como preservativos, se enquadram no conceito de dado sensível, porque podem revelar hábitos e comportamentos relativos à saúde e à vida sexual das pessoas. "Por exemplo, a identificação de compra regular de um medicamento antidiabético é capaz de indicar que o consumidor ou pessoa próxima convive com um estado pré-diabético ou diabético, informação bastante importante para análises de risco de saúde", aponta Falcão.
Pela lei, a coleta de dados pessoais sensíveis precisa de autorização expressa do indivíduo, exceto em situações muito específicas, como para tutela da saúde pessoal ou coletiva ou para cumprimento de obrigação legal ou regulatória. Por exemplo, no atendimento de emergência em um hospital, dados pessoais do paciente podem ser colhidos sem que ele precise autorizar previamente. Ou até mesmo na farmácia, para compra de antibióticos ou de remédios "tarja preta", de venda controlada, é obrigatório coletar alguns dados e a receita fica retida para fins de controle da vigilância sanitária. Mas os limites para isso são muito claros. "De acordo com as normas da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], apenas o nome completo e o endereço do usuário devem constar da receita, de modo que a farmácia não precisa pedir outras informações além dessas. Ou seja, nem nesse caso o CPF pode ser exigido", explica o especialista do Idec. Ele acrescenta que os dados que forem coletados nessas situações não podem ser desviados e aproveitados para outros fins.
Em consonância com a LGPD, a Lei Estadual nº 17.301/2020 proíbe as farmácias do Estado de São Paulo de pedir CPF sem informação clara ao cliente. Na prática, porém, as definições de "informação" e "consentimento" são bastante borradas.
TRANSPARÊNCIA DE MENOS
O xis da questão é que não se sabe direito como esses dados pessoais serão tratados pelas farmácias e nem para quê serão usados. Assim, o consumidor que fornece seu CPF (ou até sua impressão digital, no caso recente citado) para ter algum desconto não tem ideia do quê, no fundo, está consentindo. É quase como aquela brincadeira clássica de programas de TV em que o participante, com o ouvido tapado, vai dizendo "sim" ou "não" para as trocas mais esdrúxulas. "Você troca um carro zero por esse cacho de bananas?" "Siiim", responde o participante sem saber o que está em jogo. "Você troca seu CPF e, com ele, seu histórico de compra de medicamentos e outros produtos que podem revelar informações da sua saúde e vida sexual por dois reais de desconto nesse analgésico?" "Siiiim", respondemos muitos de nós.
Para Souza, da UFABC, a disposição dos consumidores em fornecer seu CPF ou outros dados pessoais em troca de descontos não se trata, portanto, de banalização da própria privacidade, mas fruto, justamente, da falta de transparência. "Em nenhum momento é dito ao consumidor o que será feito com os dados dele, se serão compartilhados com terceiros ou, se não, qual será o uso", ela pontua.
O compartilhamento dos dados coletados pelas farmácias com outras empresas é um dos grandes temores. Um dos "terceiros" muito interessados nessas informações são as operadoras de plano de saúde - que, inclusive, já mantêm parcerias com as redes de drogarias nesse jogo pouco transparente dos descontos. "Para as operadoras, interessa muito ter essas informações para análises preditivas – ou seja, prever o risco maior ou menor com base nos dados de compra de medicamentos e sua associação com certas doenças; ou para medidas prescritivas, criando parcerias com startups de alimentação para reduzir a obesidade, por exemplo. O problema é responsabilizar o consumidor por suas questões de saúde, cobrando mais caro de quem possui uma condição específica", afirma Falcão.
Além disso, existe também o receio de que os planos de saúde possam aumentar o preço ou recusar a contratação do serviço por determinados clientes a partir do acesso a essas informações sensíveis - o que é expressamente proibido no Brasil. "Essa proibição já estava prevista na regulação do setor de saúde suplementar e foi incorporada também na LGPD", ressalta o especialista do Idec. Apesar de ilegal, fica a dúvida se há controle suficiente do fluxo desses dados para ter certeza de que isso não acontece ou que possa vir a acontecer no País - afinal, direitos não são garantidos para sempre e basta uma crise para que certas garantias sejam rifadas.
Em outros países, escândalos envolvendo o mercado de dados pessoais, farmácias e planos de saúde já vieram à tona. Souza cita um caso revelado em 2008 nos Estados Unidos. À época, a reportagem intitulada They Know What's in Your Medicine Cabinet (algo como "Eles sabem o que tem no seu armarinho de remédios"), do jornalista Chad Terhune, mostrou que relatórios com histórico de compras dos clientes de drogarias era vendido a seguradoras de saúde por 15 dólares. Além disso, contou a história de um casal da Louisiana que foi rejeitado por uma empresa: no processo de análise, eles foram questionados sobre compras de medicamentos para pressão alta e antidepressivos.
Outro ator interessado nos dados obtidos pelas drogarias é a indústria farmacêutica. Falcão comenta que, para esse setor, ter os dados e o perfil de saúde da população é uma grande vantagem para pesquisas clínicas, parte mais cara do processo de desenvolvimento de um remédio ou de uma vacina. "O problema não é a indústria obter esses dados, mas não partilhar o benefício com o consumidor, que sequer pode ter acesso a esse medicamento depois", opina o pesquisador do Idec. "Não é justo que empresas usem dados pessoais para ganhar dinheiro, sem que o consumidor seja beneficiado, ou que os usem para prejudicá-lo", ele resume.
Os especialistas consultados para esta reportagem acreditam que o compartilhamento desses dados de saúde interessa a uma série de outros segmentos, como birôs de crédito, que podem utilizar as informações como um dos critérios para a pontuação de crédito; ou uma empresa de qualquer ramo que esteja no papel de empregadora. "Ao ter acesso a 'dossiês' de saúde de seus funcionários, a empresa consegue avaliar potenciais riscos econômicos. Por exemplo, se uma mulher que adquire métodos contraceptivos mensalmente e de repente para de comprá-los, a empresa pode se antecipar a uma futura gravidez e ao custo de uma licença-maternidade para seus negócios", diz Souza.
CUIDE DOS SEUS DADOS
Veja, a seguir, algumas orientações sobre o que você pode fazer para cuidar dos seus dados de saúde:
- Recusar-se a informar seus dados pessoais na farmácia
- Questionar para quê os dados estão sendo coletados antes de informá-los
- Perguntar as consequências de sua recusa
- Pedir acesso à base de dados da empresa sobre você /
- Perguntar se seus dados foram compartilhados
- Exigir a exclusão do cadastro de seus dados
Embora essa escolha seja cada vez mais difícil diante da coação dos funcionários e da tentação do desconto, você tem o direito de não informar seu CPF ou qualquer outro dado – a não ser nos casos de exigência legal, como na compra de antibióticos ou psicotrópicos.
A Lei Geral de Proteção de Dados garante esse direito a todos os brasileiros. Infelizmente, no caixa da farmácia, a resposta pode ser evasiva ou sequer dada. Mas você pode pedir essa informação em outros canais de atendimento, como o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) ou site da rede.
Na farmácia, pergunte qual será o valor do desconto com o fornecimento do CPF e dos dados do plano de saúde, para avaliar se vale a pena cedê-los.
Caso já tenha cedido suas informações pessoais, pode exigir acesso ao conteúdo que a farmácia reúne a seu respeito. Faça o pedido por meio do SAC ou de outro canal de comunicação oficial.
Pergunte com quem e quando seus dados foram compartilhados. O compartilhamento só pode ser feito com sua autorização.
É seu direito pedir a correção de algum dado que esteja errado ou exigir que a farmácia exclua o cadastro com as suas informações pessoais. O consentimento que você deu ao fornecer seu CPF pode ser revogado a qualquer momento, exceto em caso de obrigação regulatória e tutela da saúde.