Pandemia e fome
A situação do Brasil é gravíssima: além de estar passando, junto com o resto do mundo, pela maior crise sanitária da história, o país está mergulhado em profundas crises política e econômica. A combinação desse contexto é catastrófica e tem nome: FOME. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostrou que 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos no final de 2020. Desses, 43,4 milhões (ou 20,5% da população), não contavam com alimentos em quantidade suficiente – o que configura insegurança alimentar moderada ou grave –, e 19,1 milhões estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
Para entender como chegamos a esse ponto e o que precisa ser feito com urgência para mudar o cenário atual, conversamos por telefone com a nutricionista e doutora em Saúde Pública Elisabetta Recine. Confira a seguir!
ELISABETTA RECINE é nutricionista e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília; do Núcleo Nacional da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável; do Grupo Temático de Alimentação e Nutrição da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da Comissão Organizadora da Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
De forma geral, como a senhora avalia o acesso da população brasileira à alimentação antes da pandemia?
Elisabetta Recine: É muito difícil responder a essa pergunta, pois somos muitas populações num mesmo país, com diferentes rendas, níveis de escolaridade etc. Algumas pessoas não têm nenhuma restrição a alimentos. Mas a maioria enfrenta desafios financeiros e físicos enormes para o acesso à alimentação. Financeiros por conta da baixa renda, do trabalho precário. E físico por causa da forma como o abastecimento se organiza – há regiões onde a rede de abastecimento é muito precária, o que prejudica a qualidade e a diversidade dos alimentos, além do preço, claro.
E o que poderia dizer sobre a qualidade da alimentação antes da pandemia?
ER: Dados mostram que temos, de certa forma, vínculos com o que seria a nossa alimentação tradicional, baseada em arroz e feijão, alguma carne e alguma verdura. Mas por outro lado há aumento do consumo de alimentos não saudáveis, principalmente dos ultraprocessados, por conta de alguns fatores, como o preço relativamente mais baixo desses produtos e a sua ampla disponibilidade. Em algumas regiões, a variedade é muito pequena, e o preço dos alimentos in natura é relativamente alto. Os estudos de prospecção alertam que precisamos de medidas muito dirigidas para ampliar a oferta, baratear o preço dos alimentos saudáveis e restringir a disponibilidade dos não saudáveis, seja a partir de medidas regulatórias para publicidade e comercialização em ambientes institucionais, como escolas, seja por meio da ampliação da rede varejista ou do barateamento dos alimentos frescos.
Enquanto as famílias mais vulneráveis passam por situação de insegurança alimentar, famílias com melhores condições financeiras estão consumindo mais produtos ultraprocessados e menos alimentos in natura, segundo alguns estudos recentes. O que explica esse resultado?
ER: A categoria de produtos ultraprocessados é extremamente ampla. Assim, o tipo de ultraprocessado consumido muda de acordo com a renda. Uma família de classe média compra refeições congeladas e refeições semiprontas, como empanados, que custam mais caro. E famílias com orçamento limitado para alimentação compram embutidos, alguns tipos de pão e refrigerantes da linha popular, mas priorizam alimentos que conseguem comprar com menos dinheiro, como macarrão e arroz, cujo aporte energético é maior. Em supermercados mais populares encontramos determinadas categorias de produtos e, em supermercados que ficam em bairros de classe média ou média alta, outras. A prateleira dos congelados, dos biscoitos, dos pães e dos refrigerantes são diferentes. Ambos são ultraprocessados, ambos são ruins para a saúde.
O que pode ser feito para incentivar o consumo de comida de verdade?
ER: Precisamos garantir uma renda mínima para as famílias de baixa renda poderem comprar alimentos saudáveis. Essa é a medida número um. Outro problema que precisa ser resolvido é o abastecimento de comida de verdade (alimentos frescos, frutas e hortaliças), ou seja, fazer com que eles cheguem a preços justos onde essas pessoas moram.
Mas pensando no momento que estamos vivendo hoje, a questão da renda é a mais urgente. Temos mais da metade da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar. Isso é inadmissível, é mais do que vergonhoso, é uma catástrofe. Assim, é preciso garantir o acesso da população de baixa renda a políticas públicas que preservem e protejam nossos hábitos alimentares, como o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], ações nos serviços de saúde para incentivar o aleitamento materno etc.
Já para famílias cuja renda não é um problema, é preciso garantir informações sobre alimentação saudável e adequada, para que possam colocar esses conhecimentos em prática. E elas também precisam de ambientes protegidos, como as escolas.
Em meio à pandemia da Covid-19, o Brasil vive um pico epidêmico da fome e pode voltar ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Que medidas devemos adotar para superar esse quadro?
ER: Precisamos primeiro garantir o auxílio emergencial até ser declarado que a pandemia está controlada e também uma renda básica permanente. Quanto ao auxílio emergencial, seu valor precisa ser suficiente para as pessoas viverem, porque quanto mais a pandemia se prolonga, menos capacidade de adaptação e resiliência as famílias têm. As famílias de baixa renda, então, nem se fala. Elas já entraram na pandemia com pouquíssima capacidade de adaptação. Quando a pandemia começou, havia 1 milhão de pessoas na fila do Bolsa Família. Isso mostra que as condições para enfrentar a pandemia já eram frágeis. Um ano e meio depois, a capacidade de flexibilidade se esgotou.
Também é preciso recuperar as políticas públicas, principalmente as da agricultura familiar. Isso significa financiamento para a produção e reforço aos canais de abastecimento. Precisamos de uma Politica Nacional de Abastecimento e, além disso, precisamos recuperar os estoques reguladores [grandes quantidades de alimentos mantidas pelo governo e que podem ser acionadas para regular o mercado quando ocorre uma alta muito grande nos preços, evitando que eles aumentem demais], para podermos enfrentar a inflação dos alimentos básicos, como arroz, óleo de soja e trigo, que aumentaram cerca de 60% em 2020. É fundamental, ainda, reforçar o conjunto de políticas de segurança alimentar e nutricional que fazem a intermediação entre os grupos sociais mais vulneráveis e a alimentação, como restaurantes populares e bancos de alimentos. E esses programas têm de ter vínculos com a agricultura familiar. Porque estou insistindo na agricultura familiar? Porque são milhões de pessoas no campo, porque em termos relativos, o maior índice de insegurança alimentar está na área rural e porque é essa agricultura que garante a diversidade da nossa alimentação.
A senhora poderia comentar a proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes, de flexibilizar a regra sobre validade de alimentos, a fim de evitar desperdício, baratear o preço dos alimentos e facilitar doações?
ER: Vou responder a essa pergunta explicando como eu vejo a alimentação. Ela é um direito humano, e um de seus princípios é a dignidade humana. Então, qualquer solução para prevenir ou reduzir violações aos direitos humanos – e a fome é uma profunda violação –, precisa estar alinhada a esses princípios. Qualquer medida que pretenda acabar ou reduzir a fome, mas que fira a dignidade e estigmatize as pessoas é outra violação aos direitos humanos.
Desde que a fome existe, pessoas criam propostas supostamente inovadoras, mas elas são tão antigas quanto o próprio problema. Destinar a quem está passando fome alimentos que a classe média não consome ou que serão descartados, seja lá pelo motivo que for, é uma ideia antiga e ineficiente, além de preconceituosa, pois reforça a ideia de que há grupos mais dignos do que outros.
Há um senso comum de que existe fome porque há desperdício. A redução do desperdício é necessária, mas a fome existe, porque existe injustiça. Por isso, precisamos ampliar a produção de alimentos saudáveis, garantir o acesso a eles, diminuir as desigualdades e melhorar a renda. O Brasil já fez isso. Em 2014, tivemos o menor índice histórico de insegurança alimentar. Agora, voltamos aos níveis anteriores aos dos anos 2000. Por que? Porque depois de 2014 e, principalmente, depois de 2016, a destruição das políticas públicas foram instensificadas, não só daquelas diretamente relacionadas à alimentação, mas das relacionadas à rede de proteção social – economia, vagas de trabalho e valorização do salário mínimo.
O preço dos alimentos vem subindo desde o início da pandemia. Quais os principais motivos para isso? Quais são os fatores envolvidos na precificação dos alimentos?
ER: Eu vou falar o que eu tenho aprendido com pessoas que estudam volatilidade de preços, produção, estoque regulador etc. Com a pandemia, o preço das commodities, em geral, ficou extremamente valorizado. Por isso, em 2020, o agronegócio festejou recordes de safra e de exportação. A alimentação ficou comprometida globalmente e, por vários motivos, muitos países reduziram a produção e a colheita e, consequentemente, os preços aumentaram. Um dos alimentos exportados foi o arroz. Em vez de protegerem o estoque interno, deixaram o setor privado exportar o quanto ele queria. E aí o preço subiu 60%, porque se tem pouco, o preço aumenta.
Outro motivo foi a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] não ter estoque regulador para colocar no mercado. O comprometimento da produção e da comercialização, com feiras e mercados de produtores suspensos no período de isolamento social mais intenso, também contribuiu.
Quais foram os alimentos mais afetados? Por que?
ER: Segundo o IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo] de dezembro de 2020, o óleo de soja aumentou 103,8%; o arroz, 76%; a batata, 67%; o tomate, 52%; o leite longa vida, 27%; os legumes, 25%, e a carne, 18%. Pesquisa da Universidade Livre de Berlim mostrou a variação do consumo na pandemia: 91% dos brasileiros reduziram tubérculos; 85%, queijo; 87%, ovo; 89%, leite; 89%, hortaliças; 87%, frutas; 92%, cereais e leguminosas; e 85%, carne. Mas 80% também reduziram doces, industrializados e massas. Ou seja, as pessoas comeram menos de tudo, porque não tinham dinheiro. É muito grave essa situação e ainda mais grave pelo que reserva para o futuro, pois exige articulação de políticas públicas para se ter um resultado potencializado. Não existe milagre.
Além das medidas governamentais, que se mostraram insuficientes, uma avalanche de ações de entidades, de grupos sociais e do setor privado se espalhou pelo Brasil. Qual a sua avaliação sobre essas contribuições?
ER: Essas contribuições foram essenciais, porque com a omissão criminosa do Poder Público, se a sociedade não tivesse se mobilizado, a situação seria ainda pior. Mas por mais amplas e diversificadas que tenham sido essas ações, elas não dão conta de ocupar um espaço que é do Estado.
Inúmeras dessas ações merecem destaque por conta de seus princípios, aquelas que não são simples doações para colocar no relatório de responsabilidade social. Por exemplo, o movimento Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer mapeia as comunidades vulneráveis do Brasil inteiro, pega os recursos que arrecadam e monta cestas com produtos dos pequenos comércios locais e com produtos da agricultura familiar local. Há um duplo efeito nessa estratégia, pois além das famílias vulneráveis receberem os alimentos, a economia local é dinamizada e apoiada.
O que as pessoas que querem ajudar de alguma forma podem fazer para auxiliar quem passa fome?
ER: Pensando nos projetos maiores, de expressão nacional, tem as Cozinhas Solidárias, do MTST [Movimento dos Trabalhadores sem Teto], as Marmitas Solidárias, do MST [Movimento dos Trabalhadores sem Terra], o Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer e a Ação da Cidadania. Mas se olharmos para o lado, é fácil encontrar grupos de vizinhos, de colegas de trabalho e ações comunitárias. Quem tem disposição e consciência social de que é importante ajudar – sem deixar de demandar por politicas públicas que mudem a situação de maneira estrutural –, vai encontrar como contribuir.