CONSIGNADOS PERIGOSOS
Conheça as histórias de três associados do Idec que estão enfrentando problemas gravíssimos relacionados à oferta de crédito consignado, modalidade de empréstimo que recebeu milhares de reclamações em 2020
Já faz algum tempo que o Idec alerta para as práticas abusivas na oferta do crédito consignado, que vão de falta de informações claras até fraude. E na pandemia o número de reclamações sobre essa modalidade de crédito explodiu. De acordo com levantamento feito pelo Instituto na plataforma Consumidor.gov.br e no site do Banco Central, em 2020 houve um aumento de 179% na quantidade de queixas em relação a 2019. Operações não reconhecidas, ou seja, casos em que o banco deposita um valor na conta da pessoa sem que ela tenha solicitado e autorizado o empréstimo totalizaram 20.564 registros. Com esses dados em mãos, o Idec notificou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), exigindo ações que previnam fraudes.
Para quem não sabe, o crédito consignado é um tipo de empréstimo cujas prestações são descontadas diretamente do salário do cidadão que tem carteira assinada em empresa privada ou órgão público e do benefício previdenciário em caso de pensionistas e aposentados. "Em regra, aposentados e funcionários públicos podem comprometer 35% de sua renda com o pagamento das parcelas", informa Ione Amorim, economista do Idec. Marcia Regina Moro, coordenadora executiva do Procon Municipal de Santa Maria (RS) e presidente da Associação Gaúcha de Procons Municipais, pontua que o crédito consignado foi concebido para ser um empréstimo mais acessível, com taxas de juros mais baixas, pois como as parcelas são descontadas direto da folha de pagamento, não há inadimplência. "É importante dizer que nem todo mundo que trabalha no mercado financeiro faz coisas erradas, mas tem muita gente prejudicando os consumidores", ela afirma.
A seguir, contamos três histórias de associados do Idec (eles pediram para que seus nomes fossem trocados). Elas mostram a gravidade de problemas que atingem pessoas de diferentes idades e classes sociais. É importante esclarecer que embora os relatos mencionem apenas dois bancos, essa é uma prática generalizada.
CARTÃO CONSIGNADO, UMA ABERRAÇÃO
O cartão de crédito consignado é uma modalidade relativamente nova, prevista na Lei nº 13.172/2015 e oferecida principalmente pelos bancos pequenos. "O líder na oferta desses cartões é o BMG", conta a economista do Idec. Desde então, diversos consumidores aderiram a esse produto, que é oferecido sem a devida informação sobre o seu funcionamento. Eles entendem que o cartão funcionará como o crédito consignado, que tem começo, meio e fim, já que todo mês um determinado valor é descontado de seu salário ou benefício. Mas na realidade, ele tem começo e nunca tem fim. Isso porque durante 84 meses são descontados 5% do benefício ou salário. Assim, o saldo fica mais tempo exposto aos juros, e a dívida cresce mais do que nos empréstimos, além de levar mais tempo para ser quitada. "Essa confusão é, em parte, gerada pela própria instituição financeira, que no momento da contratação não apresenta de forma clara e transparente informações essenciais, como quantidade de parcelas necessárias para quitar o empréstimo, o valor, a possibilidade de pagamento antecipado etc. Contribuem com a confusão o fato de o 'limite do cartão' ser depositado na conta do contratante, que muitas vezes nem recebe o cartão físico", explica Amorim. Para ela, esse cartão é um produto complexo e mal concebido, pois não é um crédito consignado, tampouco um cartão de crédito comum. "Ele é defeituoso do ponto de vista financeiro, porque contraria o princípio de que não se deve nunca pagar o valor mínimo, mesmo que a taxa de juros não seja tão alta. É uma aberração, um mal para a sociedade, que precisa ser exterminado do mercado", opina.
Questionado pelo Idec, o BMG disse que o seu produto "oferece mais vantagens ao servidor público, pensionista e aposentado do INSS do que os cartōes de crédito convencionais, como maior limite para compras para quem tem margem no consignado, juros até quatro vezes menores e ausência de anuidade. Além disso, nāo é necessária a consulta ao SPC e ao Serasa". No entanto, Amorim argumenta que o BMG fere exatamente os pontos que ele aponta como vantagem. O uso do crédito rotativo com descontos fixos, mesmo com taxas baixas, induz o consumidor ao endividamento, assim como o uso do cartão para sacar dinheiro. Além disso, não consultar o SPC não é vantagem, porque as prestações são abatidas direto da folha de pagamento.
1) PARCELAS ETERNAS
"Contratei um crédito consignado com o Banco Pan, mas como faltavam R$ 5 mil para alcançar o valor que precisava, a correspondente bancária me ofereceu um crédito consignado do banco BMG como complemento. Ela disse que esse novo empréstimo funcionaria da mesma forma que o do Banco Pan, ou seja, eu pagaria em 48 prestações. Mas era mentira. Algum tempo depois, me ligaram do Banco do Brasil (BB) oferecendo a portabilidade do meu consignado. Como a oferta era interessante, aceitei. Contudo, fui informada pelo atendente do BB que a portabilidade não era possível, pois não se tratava de um empréstimo, mas de um cartão consignado, que eu nem sabia que existia. Tentei falar com a correspondente bancária, sem sucesso. Então, liguei no BMG para entender a situação e perguntei quantas parcelas faltavam para eu quitar a dívida. Foi quando descobri que não havia parcelas, pois se tratava de um cartão. Ou seja, eu achava que minha dívida estava sendo amortizada, pois todo mês um valor era descontado da minha pensão, mas não estava. A atendente explicou que o que eu estava pagando era o rotativo do cartão e que enquanto eu não quitasse o valor emprestado, eu teria R$ 205 descontados para sempre. Fiquei muito abatida e não dormi várias noites pensando como eu tinha caído naquele golpe. Registrei queixa no Banco Central, no Reclame Aqui e na plataforma Consumidor.gov.br, onde há muitas outras reclamações como a minha. Como não funcionou, entrei com ação no Juizado Especial Cível, mas o banco BMG não compareceu à audiência. Entrei, então, com ação na Justiça Comum, pedindo de volta o que eu já paguei. Se o Banco do Brasil não tivesse me ligado, eu só teria descoberto quando pagasse a 48ª parcela achando que era a última, e seria surpreendida com a notícia de que a dívida continuava igual".
Marília S. Alcântara, 60 anos, de Ribeirão Preto (SP)
Procuramos o banco BMG, que insiste em afirmar que não foram identificadas irregularidades na contratação do cartão consignado.
DEPÓSITO SEM AUTORIZAÇÃO É CRIME
Está cada vez mais fácil encontrar pessoas que se surpreenderam com empréstimos creditados em sua conta sem que tenham autorizado, de bancos que nem conhecem. E o líder de reclamações em todo o Brasil é o banco digital C6, que em 2019 tinha seis reclamações e, em 2020, em cinco dias recebeu 500, segundo Moro, do Procon de Santa Maria. "Esse é um problema seríssimo, pois envolve quebra de sigilo bancário e vazamento de dados. Como sabiam que aquela pessoa tinha margem para empréstimo consignado? Quem forneceu os dados bancários para depósito?", critica Amorim.
Indignada com tantas histórias tristes que acompanha, Moro entende que as instituições que agem de má fé precisam ser punidas. "Esses casos de depósito não reconhecido deveriam ser incluídos no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, o dinheiro depositado deveria ser considerado amostra grátis. Só quando doer no bolso é que elas vão parar com isso", ela sugere. Para ela, a solução seria o INSS exigir que as empresas apresentem um contrato assinado e com firma reconhecida na cidade do consumidor antes da homologação do empréstimo. Para Amorim, do Idec, também é fundamental que o INSS faça uma campanha nacional, em todas as mídias, explicando aos cidadãos brasileiros que ele é um operador do sistema público que zela pelo pagamento de aposentados e pensionistas, e que não opera crédito. Além disso, nenhuma instituição está autorizada a falar em nome do INSS para conceder crédito. "E como fonte pagadora, deve informar com clareza os descontos realizados mensalmente nos benefícios", finaliza.
2) PAGUEI, PAGUEI E CONTINUO DEVENDO
"Eu me aposentei em novembro de 2015, devido a vários problemas psiquiátricos, como depressão, síndrome do pânico, transtorno de ansiedade e fobia social. No início de 2016, sofri dois infartos e um AVC. Em decorrência de todos esses problemas e da redução do meu salário, acabei me endividando. Nesse ínterim, recebi uma proposta do BMG para adquirir um cartão de crédito consignado, com a liberação de R$ 14.257, e acabei aceitando. Eles disseram que eu poderia pagar aos poucos um valor mínimo e que a taxa de juros era menor do que a do cartão de crédito. Somente em setembro de 2020, ao assistir uma reportagem do Bom Dia Brasil, descobri que existem vários casos idênticos ao meu. Fiz alguns cálculos e verifiquei que já havia pago um valor muito superior ao devido e que mesmo assim ainda continuava devendo: peguei cerca de R$ 14 mil emprestados, paguei R$ 30 mil e ainda devo R$ 17 mil. Como não consegui resolver a questão, acabei contratando um empréstimo em outra instituição para quitar a dívida do cartão e me livrar dele".
Fernando Moraes, 51 anos, de São Paulo
O BMG não comentou esse caso, pois não conseguiu entrar em contato com Moraes.
CORRESPONDENTES BANCÁRIOS CLANDESTINOS
Correspondente bancário é uma empresa ou pessoa autorizada pelo Banco Central para trabalhar como intermediário entre os bancos e os clientes que procuram crédito. O problema é que é muito fácil se tornar um correspondente. Em junho, o Procon Estadual de Pernambuco fechou 12 empresas clandestinas. "Elas montam um escritório bonito, um call center e começam a abordar as pessoas por telefone e nas ruas, porque elas têm acesso a dados como nome, endereço, quanto ganha, quantos empréstimos tem etc. Elas funcionam por seis meses, um ano, e desaparecem", denuncia Danyelle Sena de Melo, gerente de fiscalização do Procon Estadual de Pernambuco.
De acordo com Ione Amorim, do Idec, esses correspondentes usam um discurso bastante sedutor e técnicas avançadas de persuasão e convencimento. "Eles se aproveitam da vulnerabilidade do idoso. E aqui no Nordeste é muito vexatório ter o nome sujo. Então, eles acabam aceitando qualquer proposta para limpar o nome", completa Melo.
Após auditoria realizada pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban) – ainda tímida segundo o Idec - em março, 74 sanções foram aplicadas a correspondentes bancários por conta de irregularidades na oferta de crédito consignado. Os bancos que não aplicarem as sanções poderão receber multas que variam de R$ 45 mil a R$ 1 milhão.
3) ESTOU PAGANDO POR UM EMPRÉSTIMO QUE NÃO FIZ
"Eu nunca tinha ouvido falar no banco C6. Até que em fevereiro fui pagar uma fatura e vi um valor alto depositado na minha conta, R$ 28 mil. Liguei para a gerente do meu banco, pois achava que era um engano, e ela me informou que o depositante era o C6. Ao retirar o extrato do INSS, descobri que era um empréstimo consignado. Eu estava com Covid nessa época e precisei lidar com essa situação. Liguei pro C6, mas só conseguia falar com robôs. Após muitas tentativas, consegui falar com um atendente. Expliquei a situação e disse que assim que eles desfizessem o empréstimo que eu não solicitei, eu devolveria o dinheiro. Recebi um boleto no valor de R$ 28 mil, mas não achei prudente pagar sem antes ver o contrato que eles dizem que eu assinei. Solicitei, e eles me enviaram um contrato falso com um endereço meu em São Paulo que ninguém conhece. Procurei, então, o Idec, que me orientou a registrar queixa na plataforma Consumidor.gov.br. Também procurei o Procon e o Banco Central, com a cópia do contrato que me enviaram. Como nada foi feito, entrei com ação na Justiça pedindo o valor descontado do meu benefício – quatro parcelas de R$ 700 – em dobro, além de indenização por danos morais. É uma invasão alguém entrar na sua conta e fazer um depósito sem autorização. To pagando uma dívida que eu não fiz".
Maria Fernanda Souza, 69 anos, do Rio de Janeiro (RJ)
Em resposta ao Idec, a assessoria de imprensa do C6 disse apenas que ofereceu à associada a possibilidade de encerramento imediato do contrato mediante pagamento de boleto, sem qualquer acréscimo de encargos.
Saiba mais
Orientações gerais sobre crédito consignado: https://bit.ly/2UNYBCJ
Golpe da aposentadoria – fuja das ofertas abusivas de crédito consignado: http://bit.ly/2LFLA8v