Plano Nacional de Imunizações
Em janeiro foi dada a largada da corrida pelas vacinas antiCovid-19. Corrida não, maratona, já que para imunizar 100% da população mundial será preciso muita resistência para percorrer o longo percurso. E o Idec está de olho no Plano Nacional de Imunização e em questões relacionadas à produção e distribuição das vacinas, como a possível concorrência do setor privado e a priorização dos grupos vulneráveis sem que a fila seja furada. Além disso, tem lutado pela suspensão temporária de patentes a fim de permitir que laboratórios de todo o mundo possam fabricar e exportar vacinas comprovadamente seguras e eficazes a preços muito mais baixos. Essa é uma forma de garantir doses para todos os cidadãos – sobretudo os que vivem em países de renda média ou baixa e que não possuem capacidade industrial para produzir.
A seguir, você lê a entrevista que fizemos com o médico sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarâes. Ele fez um balanço da situação atual da vacinação no país e deu sua opinião sincera sobre os muitos obstáculos que ainda precisam ser enfrentados.
REINALDO GUIMARÃES é médico sanitarista graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Passou duas vezes pelo Ministério da Saúde: de 2003 a 2005 e de 2007 a 2010. Hoje é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e desde 1985 trabalha no campo do Planejamento, Gestão e Políticas de Ciência e Tecnologia e de Saúde.
Como o senhor, como médico sanitarista e vice-presidente da Abrasco, avalia o cenário da vacinação contra o novo coronavírus no Brasil?
Reinaldo Guimarães: Nossa campanha é medíocre por mais de um motivo. Em primeiro lugar por uma razão política, que tem sido a posição anticientífica e negacionista do Presidente da República, e a consequente omissão do coordenador federal do SUS [Sistema Único de Saúde] em relação a quase tudo o que se refere à pandemia, o que dificulta a ação dos estados e municípios, que precisam de coordenação – alguns menos, outros mais. Em segundo lugar, pelo fenômeno global de desequilíbrio entre oferta e demanda de vacinas, o que tem feito com que cronogramas de entrega firmados em contrato não estejam sendo cumpridos nem aqui nem na maioria dos países. Penso que esses dois são os motivos principais. Mas cito também o desmonte institucional do Ministério da Saúde, que inclui o PNI [Programa Nacional de Imunizações] e os problemas enfrentados na entrega de insumos para o desenvolvimento das duas vacinas que formam a espinha dorsal da nossa campanha [CoronaVac e AstraZeneca]. Ressalto que esse problema não tem sido observado apenas no Brasil, mas é global, embora tenha incidido com mais força na vacina da AstraZeneca. Há um ano não foi previsto esse desequilíbrio oferta/demanda, o que fez com que não fôssemos atrás de outras vacinas.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) está fazendo um bom trabalho?
RG: O PNI está fazendo um trabalho essencial, mas com as limitações que mencionei na pergunta anterior. Com a bagunça instalada no Ministério da Saúde, as secretarias de saúde estaduais e municipais estão sofrendo.
A política de priorização criada pelo PNI para a imunização da população está adequada?
RG: A primeira versão, se não me engano lançada no início de dezembro, era um horror. Depois do protesto de especialistas, o Governo Federal acompanhou, grosso modo, o que estava sendo feito mundo afora. Mas há lacunas importantes, como a inclusão apenas de povos indígenas que vivem em aldeias. Até onde sei, também estão ausentes os moradores de rua. O aparecimento de variantes mais transmissíveis obrigará o governo a revisar e estender as prioridades, como é o caso da discussão atual sobre a vacinação de grávidas.
Algumas organizações (sindicatos, associações etc.) estão entrando na Justiça para conseguir o direito de importar a vacina. Qual a sua opinião sobre isso?
RG: Essa é uma forma de furar a fila bem ao estilo da plutocracia brasileira: excludente, insensível e desumana. Como diz o ditado, "farinha pouca, meu pirão primeiro". Gente que não suporta a equidade nem na saúde nem em coisa alguma. O mais lamentável é que a Justiça Brasileira, em vários casos, está se associando a essa sem-vergonhice.
A Lei nº 14.125/2021 autoriza empresas a adquirirem vacina desde que doem parte para o SUS. Mas o Projeto de Lei (PL) nº 948/2021, em tramitação, propõe que a importação possa ser feita pelo setor privado, incluindo operadoras de planos de saúde, sem a necessidade de doar para o SUS e de respeitar as regras de priorização. Como o senhor avalia essa lei e esse PL?
RG: É outra face da mesma ojeriza à equidade. Agora não mais dos plutocratas, mas de seus representantes políticos no parlamento. A nova lei já passou na Câmara, mas leio nos jornais que está sendo engavetada no Senado. Se for verdade, não será por ser iníqua, mas por ser inócua, isto é, porque não haverá vacinas no mercado mundial para serem vendidas ao setor privado.
Tem como o Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aumentarem a produção local?
RG: O Butantã deve inaugurar uma nova planta de produção no segundo semestre deste ano, e a Fiocruz está avançando em sua nova planta de vacinas em Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Mas até onde eu sei, nela não está prevista a fabricação da vacina contra a Covid-19. De toda forma, sua inauguração certamente abrirá espaço para nova linha de produção na planta de Manguinhos.
Suspender temporariamente as patentes (monopólio de comercialização pelo Estado a quem cria um produto novo) das vacinas ajudaria a aumentar a produção e distribuição?
RG: A suspenção de patentes, seja compulsória seja pactuada, é uma ferramenta que comprovadamente aumenta a produção e o acesso a produtos industriais de saúde. Nesse sentido, é uma medida humanitária e vem sendo perseguida por muitos países, principalmente os países em desenvolvimento e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Vergonhosamente, na primeira discussão desse tema em 2020, o Brasil votou contra, acompanhando os países ricos detentores de patentes e sedes das grandes produtoras.
Mas é preciso pontuar que quando se toma uma medida desse tipo, é necessário que haja quem possa fabricar as vacinas com patentes suspensas e, nas circunstâncias atuais, vejo alguma dificuldade nisso. No que se refere às vacinas produzidas por rotas tradicionais, particularmente por vírus inativado, talvez haja competência tecnológica em fabricantes de vacinas animais, saída já cogitada. Mas nas rotas tecnológicas mais modernas, como as que utilizam vetores virais, RNA mensageiro ou DNA, vejo maior dificuldade.
Se houver a suspensão, existem outros laboratórios brasileiros que têm infraestrutura para produzir vacinas?
RG: Já instalada, não. Mas talvez as empresas que fabricam vacinas animais possam cumprir esse papel se forem feitas algumas adaptações. Mas não vamos esquecer de que esse problema é urgente, e não sei quais são os prazos para que as normas regulatórias para vacinas humanas sejam alcançadas por empresas de vacinas animais.
Outros laboratórios públicos que fabricam ou já fabricaram vacinas e soros talvez também possam contribuir. Entretanto, também precisariam se capacitar tecnológica e industrialmente. Contudo, neste momento, quem for produzir vai precisar, durante algum tempo, dos insumos importados, tal qual a Fiocruz e o Butantã. Portanto, entendo que esse caminho será mais realisticamente operacionalizado quando novas vacinas forem lançadas e o desequilíbrio oferta/demanda for atenuado.
O que é melhor: importar ou produzir aqui?
RG: Como política industrial e sanitária, é sempre melhor alcançar a autossuficiência. Mas neste momento, durante essa pandemia, não temos outro caminho senão o de continuar importando e confiando que o Butantã e a Fiocruz rapidamente dominarão o processo completo de desenvolvimento e produção locais, o que foi prometido por ambos e no que eu acredito.
Sabemos que centralizar os esforços para a importação e produção de vacinas seria o ideal, pois o Governo Federal tem mais condições de negociação no mercado internacional. Mas temos um Governo que demorou muito para enxergar a gravidade do problema. Assim, alguns estados grandes, como São Paulo, e o Consórcio Nordeste (formado por Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) estão se organizando para importar. Qual a sua opinião sobre isso?
RG: Saída não desejável em tempos "normais", mas inevitável em consequência da omissão do Governo Federal.
No Brasil, cerca de 11 mil pessoas já receberam as duas doses da vacina. Estamos atrasados?
RG: Estamos mais atrasados do que deveríamos por todas as razões que já elenquei. De qualquer forma, o atraso é global, exceto em países com populações pequenas, nos Estados Unidos e no Reino Unido, fabricantes de vacinas que estão canalizando a escassez para suas populações. Mesmo países que contrataram um número gigantesco de doses, como o Canadá, estão enfrentando o descumprimento do cronograma de entrega. Mas o negacionismo e a omissão do Presidente da República, que rejeita o isolamento e, há até bem pouco tempo, o uso de máscaras, tornam o nosso atraso mais grave do que o observado em outros países. Em outros termos, seja por isso, seja pelas consequências expressas nos números de casos e óbitos, o Brasil tem muita pressa em vacinar toda a população.