Dia do Consumidor
TERESA LIPORACE é engenheira química, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e mestre em Engenharia de Produção/Inovação Tecnológica e Organização. Tem mais de 20 anos de experiência no Terceiro Setor, com foco na implementação e no monitoramento de políticas públicas. Atualmente é diretora executiva do Idec, onde trabalha desde 1996.
Quinze de março é conhecido como o Dia Mundial dos Direitos do Consumidor. A verdade é que todo dia é dia de lutarmos por nossos direitos nas relações consumeristas. Mas a data serve para recordarmos os avanços obtidos na proteção do consumidor e também para refletirmos sobre os desafios futuros. E há muito o que se fazer após um ano atípico como o de 2020. A pandemia do novo coronavírus impactou a saúde, a economia e também o mercado de consumo. Novos problemas surgiram, novas batalhas foram travadas, e o Idec continua atento às demandas de seus associados e associadas (e dos consumidores em geral), lutando por relações mais justas e contra retrocessos. Nas próximas páginas você encontra algumas reflexões importantes sobre o que passou e o que está por vir. Elas são da diretora executiva do Idec, Teresa Liporace.
O mês do consumidor em 2021 será comemorado com o mundo ainda em pandemia, após mais de um ano. O que o período de distanciamento social, lock down e quarentena está provocando nas relações de consumo?
Teresa Liporace: Ainda não saímos da condição de incertezas sobre o futuro. Continua sendo difícil avaliar o que a situação de calamidade pública vai deixar para a sociedade de consumidores. De toda forma, é impossível não notar os efeitos da maior digitalização das compras e dos serviços em nosso dia a dia. E mesmo diante de incertezas, todas as pesquisas e os estudos realizados recentemente apontam um consenso sobre as novas necessidades e prioridades no mercado de consumo, que tendem a permanecer mesmo com o retorno das relações presenciais.
Quais são essas novas necessidades e prioridades, e como elas se conectam às causas que o Idec defende?
TL: As mudanças nos hábitos das famílias vão muito além de consumir menos e comprar mais à distância. Por precisarem gastar menos, as pessoas estão mais dispostas a pesquisar e exigir mais dos produtos, dos serviços e dos fornecedores. E mesmo após o retorno ao convívio presencial, tudo indica que elas irão preferir pagar mais por produtos que tenham qualidade, que sejam duráveis e sustentáveis, e que façam bem à saúde. Isso tem tudo a ver com o trabalho do Idec, que luta por melhores relações de consumo e para que sejamos consumidores mais conscientes dos nossos direitos e mais exigentes em relação à responsabilidade social das empresas.
Que exemplos já temos dessa postura mais consciente dos consumidores e como o Idec tem contribuído para isso?
TL: A relação das pessoas com os alimentos, por exemplo. Mais preocupados com a saúde da família, estamos escolhendo melhor o que comemos, valorizando a comida de verdade. Mas ao mesmo tempo, o consumo de produtos ultraprocessados aumentou. Isso significa que temos de continuar trabalhando fortemente para alertar as pessoas sobre a relação desses alimentos com excesso de sódio, açúcar e gordura saturada com as doenças crônicas não transmissíveis. Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, após anos de pressão do Idec e de organizações parceiras, novas regras para a rotulagem nutricional. Precisamos de rótulos que alertem com clareza sobre o alto teor de ingredientes críticos, como sal, açúcar e gorduras trans e saturadas. A norma aprovada ficou muito aquém das normas de outros países. Assim, vamos continuar lutando para que os consumidores possam exercer a liberdade de escolher alimentos mais adequados e saudáveis.
Os cidadãos estão exigindo mais responsabilidade social das empresas. Qual setor está sendo mais impactado pela exigência dos consumidores?
TL: O setor bancário deve ser o mais impactado pela exigência das pessoas. São dois os motivos que nos fazem acreditar nisso: o sentimento de solidariedade que a pandemia despertou e a preocupação com a economia do país e com as finanças familiares. Ao precisar cortar gastos, além de escolherem melhor onde gastar seu dinheiro, os cidadãos estão exigindo práticas mais responsáveis dos agentes de mercado. Isso fez com que, pela primeira vez, os políticos criticassem mais fortemente as práticas das instituições financeiras, a oferta de crédito agressiva e as altas taxas de juros no Brasil. Apesar de isso ser um problema histórico, parece que somente agora os políticos criaram coragem para enfrentar os grandes bancos e cobrar deles maior responsabilidade social, muito provavelmente em razão do forte clamor popular. Um exemplo foi a atenção que o projeto de lei contra o superendividamento, que visa a garantir melhores condições de renegociação de dívidas para as famílias superendividadas, ganhou da classe política desde o ano passado, após ficar parado no Congresso por mais de cinco anos sem qualquer discussão. Outro sinal de que o setor bancário é o mais impactado pelo olhar crítico do consumidor foi a atenção que a última edição do Guia dos Bancos Responsáveis – estudo que realizamos há anos – recebeu dos consumidores, da imprensa e até dos bancos avaliados.
A pandemia mudou os conflitos de consumo? O que ela exige do trabalho de profissionais e entidades de defesa do consumidor como o Idec?
TL: Como profissionais da defesa do consumidor, nós, que trabalhamos no Idec, ficamos muito mais atentos nos momentos de calamidade pública, porque neles surgem muitas práticas abusivas, com as empresas descumprindo o Código de Defesa do Consumidor (CDC). E os consumidores ficam muito mais vulneráveis a golpes, ofertas enganosas e ao poder econômico de alguns setores. É o caso das operadoras de planos de saúde. Num período em que tiveram menos gastos e registraram enormes lucros, enquanto as famílias brasileiras sofriam com a crise econômica, elas aplicaram reajustes elevados. É muito difícil uma pessoa lutar contra isso sozinha. O Idec promoveu uma ação coletiva contra a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para impedir que os reajustes fossem recompostos em 2021 e para garantir que todos tenham acesso ao serviço de saúde suplementar no momento em que precisarem.
O que podemos dizer sobre o desempenho do Governo e do Congresso Nacional para garantir harmonia nas relações de consumo durante a pandemia? As autoridades estão trabalhando pela preservação dos direitos ou provocando retrocessos?
TL: Apesar de a classe política ter manifestado preocupação com os efeitos da crise econômica, na hora de resolver dilemas entre consumidores e fornecedores, as empresas saíram ganhando. Um exemplo é o setor do turismo, formado por grandes redes de hotéis, companhias aéreas e operadoras de viagem. Elas fizeram forte lobby e, rapidamente, receberam em seu favor a aprovação de leis emergenciais que permitiram que cancelassem os serviços e confiscassem o valor pago pelos consumidores. Ou seja, é atendido quem "fala mais alto" e, dessa forma, quase sempre os grandes grupos econômicos se saem melhor. Isso ficou muito evidente na pandemia. Quanto mais concentrado o mercado, mais retrocessos aos direitos dos consumidores eles conseguiram emplacar perante os políticos.
E sem regras claras e as intermediações adequadas em favor dos consumidores, os conflitos de consumo vão parar no Judiciário, onde os direitos dos consumidores não têm recebido a tutela protetiva que recebia há alguns anos. Por isso, o Idec se estruturou para ser a principal organização de defesa do consumidor que atua na incidência política perante os Poderes Legislativo e Executivo, e as agências reguladoras. Estamos cada vez mais fortes na luta contra o conflito de interesses e a interferência exagerada dos grandes fornecedores na construção de normas e políticas públicas.
No ano passado, o presidente criou, por meio de um decreto, o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor. O que isso muda na proteção ao consumidor?
TL: Na prática, ele não tem sido útil para a sociedade, apesar dos esforços dos poucos representantes dos consumidores que fazem parte dele (ele é essencialmente composto de representantes de órgãos públicos federais). Esse Conselho foi criado por uma demanda de fornecedores, para servir como resistência contra o avanço dos direitos dos consumidores. Isso está muito claro em ofícios e diálogos entre agentes do Ministério da Economia e do Ministério da Justiça. Não é um Conselho plural, transparente e voltado a atender às demandas dos consumidores e melhorar as relações de consumo, como o Idec defende.
Lamentamos que o Conselho tem apresentado propostas de mudanças em regras como a do SAC [Serviço de Atendimento ao Consumidor], entre outras medidas que podem favorecer muito mais os fornecedores do que os consumidores.
Quais desafios a proteção do consumidor terá pela frente?
TL: Diante de um cenário em que o Estado está fugindo cada vez mais do seu papel de defender os consumidores, estes vão ter de conhecer melhor seus direitos e procurar formas de fazer sua voz ser ouvida. Precisaremos saber como nos defender individualmente e coletivamente. As novas tecnologias, as redes sociais e a internet de forma geral certamente são ferramentas para isso, porque a melhor forma de combater abusos sem intervenção do Estado é usando a liberdade de expressão para expor empresas/marcas que cometem ilegalidades.
É uma pena que a sociedade brasileira não tenha construído um sentimento de associativismo e que não tenhamos muitas organizações como o Idec, formadas por milhares de consumidores engajados na defesa de seus direitos. Acredito muito que esse é o caminho para educar pessoas sobre seus direitos, expor empresas e práticas abusivas publicamente e cobrar mudanças. Tudo isso, quando bem feito, certamente proporciona melhorias nas relações de consumo, nos produtos/serviços ofertados e nas práticas de mercado.
Como os consumidores podem, juntos, enfrentar esse desafio?
TL: Devemos estar unidos para cobrar que as empresas disponibilizem melhores canais para reclamação e que o poder público fiscalize os abusos. Com a necessidade de distanciamento social, as empresas precisam ser mais eficientes no atendimento à distância, pois, em geral, os canais de atendimento no pós-venda são muito ruins.
O Idec tem ampliado seus serviços de orientação e representação dos associados para solução de problemas com fornecedores. Também estamos evoluindo muito nas campanhas de mobilização em defesa de novos direitos e contra retrocessos na legislação consumerista. Para isso, buscamos estar sempre conectados às dores dos consumidores.
Quais são as prioridades do Idec para este ano?
TL: Vamos investir no relacionamento com nossos associados e focar na defesa dos sistemas alimentares brasileiros, especialmente contra o excesso de agrotóxicos, as propagandas enganosas de alimentos não saudáveis e a oferta de ultraprocessados nas escolas. E queremos enfrentar o problema de conflitos de interesses e interferência da indústria nas políticas públicas de alimentação.
Esse período também deixou claro o quanto precisamos trabalhar pelo direito de acesso à internet de qualidade e que temos de monitorar as práticas das empresas e dos órgãos públicos para que os dados pessoais sejam protegidos.
Na área da saúde, vamos defender o acesso de todos os cidadãos à vacina contra a Covid-19 e continuar enfrentando os abusos praticados por operadoras de planos de saúde. E já começamos o ano trabalhando por uma melhor regulamentação do preço dos remédios, de forma que os brasileiros paguem um preço justo por eles.
Vamos continuar trabalhando por preços justos de energia elétrica e pelo acesso da população à energia limpa. Quanto ao transporte público, nossa luta por tarifas acessíveis e qualidade precisa continuar. Também avançaremos nas nossas ações para proteger os cidadãos contra o superendividamento e pela responsabilidade socioambiental dos bancos.
Para fazer tudo isso, será necessário muito engajamento a fim de preservar diferentes meios de defesa do consumidor, como a Lei da Ação Civil Pública, que está ameaçada de sofrer retrocessos.