História de Pandemia
Onze de março de 2020: a Organização Mundial da Saúde (OMS) decreta que a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, é uma pandemia (quando uma doença infecciosa afeta um grande número de pessoas espalhadas pelo mundo). Naquele dia, o Brasil tinha apenas 52 casos registrados e nenhum óbito, enquanto 21 mil cidadãos de vários países haviam contraído o vírus, e 4.300, morrido. O mundo se dividia entre otimistas e pessimistas, mas por ser uma doença nova ninguém tinha certeza de nada. Os dias e meses foram passando, e a incerteza só aumentou.
Março de 2021: a pandemia ainda não acabou – embora muita gente viva como se ela tivesse –, e nossas vidas nunca mais foram as mesmas. Nas páginas a seguir você encontrará depoimentos de seis associados(as) do Idec sobre como está sendo conviver com esse inimigo invisível: quais os principais desafios que enfrentaram, os novos hábitos que implementaram (bons ou ruins) e os aprendizados que tiraram dessa situação surreal. Todos eles são privilegiados por estarem isolados em casas confortáveis, com comida na mesa e saúde. Mas cada um tem a sua história para contar. Leia a seguir!
ANDAR COM FÉ EU VOU...
O consultor de empresas Laércio Gonçalves, 71 anos, de São Paulo (SP), é um homem de fé. "Acredito que tem alguém nos olhando e tentando nos proteger", declara ele, que venceu três cânceres (na próstata, no pulmão e no cérebro). Contudo, hoje anda um pouco pessimista diante das incertezas impostas pela pandemia e agravadas pela má gestão governamental. "Isso vai longe. E é difícil não saber o que vai acontecer amanhã. Não acredito em uma palavra do que os políticos dizem", diz ele, triste e com a esperança abalada.
Maior desafio: não poder sair para fazer as coisas que eu costumava fazer, como ir ao cinema, comer em um restaurante, viajar. Eu sinto como se estivesse em prisão domicilar, só falta a tornozeleira eletrônica. Também é difícil ficar longe da família. A pandemia me impediu de encontrar, abraçar e beijar meus filhos e netos. Essa é a pior parte. Eu e minha esposa usamos a tecnologia para brincar com as crianças, mas não é a mesma coisa.
Novos hábitos: comprar alimentos e medicamentos por sistema de delivery.
Aprendizados: fui obrigado a aprender a conviver com a incerteza, que me faz sentir medo e insegurança.
Pontos positivos: fiquei mais unido com a minha esposa, mais generoso, mais solidário e também mais crítico, com uma visão sistêmica do contexto social.
A GRANDE FAMÍLIA
A jornalista aposentada e psicoterapeuta Regina Araghan, 64 anos, de Petrópolis (RJ), armou um verdadeiro esquema de guerra contra o novo coronavírus. "Fizemos uma organização espacial aqui na granja para abrigar toda a família – sete adultos e sete crianças – e aumentamos a produção de ovos, legumes e verduras, para dependermos menos de supermercados", ela conta. Para manter todos em segurança foram criados vários protocolos. Por exemplo, se alguém sai para encontrar um familiar que não mora no sítio precisa ficar 14 dias de quarentena. Também confeccionaram plaquinhas verdes e vermelhas para sinalizar se os objetos vindos de fora já estão higienizados ou não. As tarefas da casa foram divididas: Araghan ficou responsável pela administração do cardápio, para que não houvesse falta de alimentos tampouco desperdício; um lava a louça; outro cuida da higienização das compras, alguns cuidam da horta etc. "Não vou dizer que está sendo fácil, pois passamos por muitas crises, surtamos, choramos, mas graças a Deus estamos todos bem", ela afirma.
Maior desafio: na vida profissional, foi me adaptar aos atendimentos 100% online. Precisei fazer alguns cursos de capacitação e abandonar algumas técnicas que só eram possíveis presencialmente. Também não pude mais ir até a comunidade onde eu faço, há dez anos, um trabalho voluntário. Fiquei muito triste. Já na vida pessoal, o maior desafio está sendo hospedar meu ex-marido há um ano. Ele veio passar férias e estava aqui quando a pandemia começou. Como faz parte do grupo de risco, não pôde retornar para o Nordeste, onde é médico de família.
Novos hábitos: não consegui manter a rotina de atividades físicas (praticava natação, pilates e RPG) e acabei engordando.
Aprendizados: requalifiquei meus relacionamentos no confinamento e estou aprendendo a ser mais paciente, não apenas para conviver com tanta gente num mesmo espaço e para lidar com prestadores de serviços que nem sempre cumprem as normas de higiene (é preciso pedir que usem máscara e álcool em gel com firmeza, porém sem perder a doçura), mas também para esperar essa loucura que o Brasil está vivendo, com o desmonte das nossas instituições democráticas, da nossa ciência e da nossa cultura, passar.
BUSCANDO A PAZ INTERIOR
O assessor jurídico Daniel Huf Souza, 34 anos, de Florianópolis (SC), testou positivo semanas antes de conversar com a equipe de reportagem do Idec. "Ouvimos tantas histórias tristes, graças a Deus estamos todos bem, sem sequelas. Foi só um susto", ele diz, completando: "Não temos controle de nada na vida". Pai de gêmeos de quase três anos, precisou, junto com a esposa, buscar uma nova organização da rotina, principalmente no início, quando não tinham dimensão do que estava ocorrendo.
Maior desafio: encontrar uma dinâmica minimamente saudável para a minha família e para mim em relação ao trabalho e às demandas da casa.
Novos hábitos: comecei a meditar para tentar encontrar a paz interior e não pirar. E reforcei meu hábito de procurar saber a origem dos alimentos que comemos (quem planta, onde etc.) e de comprar de pequenos produtores.
Aprendizados: estou aprendendo a não deixar que as circunstâncias sejam protagonistas da vida. Porque diante do estresse e da frustração que a pandemia gera, nos sentimos mais cansados emocionalmente e fisicamente, e acabamos deixando a vida nos levar. Por exemplo, no início eu pedia comida pronta, deixava meus filhos assistirem à TV etc.
Ponto positivo: comecei a ver a vida por outro prisma, a valorizar o que realmente vale a pena. Avaliei meu estilo de vida, minhas escolhas e se estou no caminho certo. Se não fosse a pandemia, teria levado mais tempo para perceber certas coisas.
CHOQUE DE REALIDADE
A agrônoma Regina Petty, 60 anos, é de São Paulo (SP), mas desde março de 2020 está morando em Campinas (SP), onde alugou uma casa. "Vim para o interior para ficar perto de uma amiga que conheço há 35 anos. Como ambas estávamos isoladas, ela frequentava a minha casa, e eu a dela. Até o dia em que ela me magoou profundamente ao remoer situações do passado", ela lembra. "Não gosto de brigar, mas aquilo me fez parar e pensar que eu não queria aquilo para mim", desabafa.
Maior desafio: bcuidar dos meus pais idosos. Eu fiquei meses sem vê-los, depois passei a ir a casa deles a cada 15 dias.
Novos hábitos: consegui, pela primeira vez na vida, gastar menos do que eu ganho. Aqui, tenho poucas despesas, basicamente com comida e itens para a casa. Quando vou a São Paulo, eu gasto em um dia o que gasto aqui em um mês. Então, economizar pode ser um hábito bom que adquiri. Por outro lado, estou viciada em jogar paciência no computador, porque se na vida real um monte de coisas dá errado, no jogo eu termino sempre vitoriosa.
Aprendizado: foi uma paulada na cabeça entrar em contato com a miséria humana. Eu estava muito protegida e desligada da realidade, vivendo no meu mundo. Durante a pandemia, paguei um aluguel mais caro porque o locador agiu de má-fé e convivi com vizinhos que competem para ver quem tem a porta mais bonita ou o melhor carro e vivem reclamando do filho do vizinho.
A ANGÚSTIA DO ÓCIO
O advogado e professor universitário Diógenes Carvalho, 41 anos, de Goiânia (GO), precisou aprender a desacelerar e a aproveitar o ócio, já que ficou um semestre sem lecionar. "Me aprofundei no estudo da psicanálise, que eu havia começado antes da pandemia, e reli todas as obras de Sigmund Freud", ele conta. Carvalho testou positivo na véspera de Natal, o que o obrigou a ficar em casa até depois do reveillón.
Maior desafio: foi ficar em casa e desacelerar, pois a universidade em que eu trabalho fechou no primeiro semestre de 2020, e eu fiquei sem dar aulas. Eu tinha uma vida muito movimentada, com vários compromissos, muitas viagens, palestras e seminários. Foi impactante me ver sozinho, eu comigo mesmo. Procurei ocupar o tempo com livros e séries, mas no começo foi angustiante.
Novos hábitos: eu estava acostumado a fazer todas as refeições fora de casa, inclusive o café da manhã. Agora eu arrumo a mesa, sento, tomo meu café passado na hora tranquilamente. Diferentemente de muitas pessoas, eu passei a ter hábitos alimentares mais saudáveis.
Aprendizados: aprendi a lidar melhor com as minhas sombras, com meus conflitos internos, e o contato com a realidade mudou abruptamente a forma com que eu enxergo as relações afetivas e as situações cotidianas.
UMA VIDA MAIS EQUILIBRADA
A escritora e profissional de sustentabilidade Luciana Annunziata, 49 anos, de São Paulo (SP), aproveitou a pandemia para pensar em como estava vivendo a vida e concluiu que era uma boa oportunidade para fazer alguns ajustes. "A pandemia lançou a pergunta: 'E aí galera, vocês vão continuar vivendo assim?'. Eu parei para refletir sobre isso e consegui fazer uma série de mudanças importantes na minha vida. Eu estava fazendo coisas demais e não estava conseguindo entregar meus projetos com a qualidade que eu gostaria, o que me deixava frustrada. Acabei deixando um trabalho super legal que eu fazia há mais de 10 anos. Foi muito difícil tomar essa decisão, mas muito positivo, pois estou vivendo melhor, com mais qualidade e equilíbrio", ela declara.
Maior desafio: foi complicado ficar tanto tempo dentro de casa com um filho adolescente, de 15 anos. Esse enclausuramento foi difícil para ele e para mim. Também acho muito desafiador a digitalização das relações, sejam elas pessoais, de trabalho ou escolares. O ser humano não nasceu para se relacionar virtualmente. O relacionamento virtual leva a uma série de enganos e mal entendidos, além de ter muitas falhas. Na vida profissional, meu desafio foi começar um trabalho novo em comunidades de São Paulo, com pessoas que estavam vivendo a pandemia em situação bem pior do que a minha.
Novos hábitos: eu e meus filhos organizamos melhor as tarefas da casa e passamos a nos preocupar mais com o que comemos e a preparar os alimentos com mais calma. Também entrei numa rotina bem rigorosa de exercícios físicos, que ajudam a manter a saúde mental.
Aprendizados: aprendi a cuidar mais e melhor da minha casa, de mim, de quem estava perto e longe. Eu doei muito tempo, dinheiro e objetos.