Chega de transgênicos!
Em 22 de outubro, a CTNBio – que assessora o Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a organismos geneticamente modificados (OGM) – realizou uma audiência pública virtual para discutir a liberação do trigo transgênico HB4 para consumo humano e eventual cultivo no Brasil. Essa audiência foi marcada às pressas e sem divulgação suficiente, de forma que a sociedade civil não pode participar. Isso é grave, considerando os impactos dos OGMs à saúde e ao meio ambiente. Além disso, os transgênicos estão associados ao aumento do consumo de agrotóxicos, contrariando de forma contundente um dos principais argumentos para sua utilização.
A seguir, Marijane Vieira Lisboa, que há anos acompanha de perto o trabalho da CTNBio e tem muitas críticas a seu trabalho, dá uma "aula" sobre transgênicos e agrotóxicos.
MARIJANE VIEIRA LISBOA é doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde é professora do departamento de História. É ex-conselheira e associada plena do Idec e representou os consumidores na CTNBio de 2012 a 2015 como membro titular.
Por que a forma como a CTNBio realizou a audiência para aprovação ou rejeição do trigo transgênico é preocupante?
Marijane Vieira Lisboa: Embora a CTNBio tenha alegado que publicou o edital com a antecedência necessária nos meios de comunicação obrigatórios, como o Diário Oficial, ela avisou apenas as empresas e os produtores ligados à cadeia do trigo, sem ter a mesma preocupação com os órgãos de defesa do consumidor e cientistas da área de agroecologia. Então, o fato de essas entidades não estarem presentes, porque souberam depois que o período de inscrição estava encerrado (apenas um cientista conseguiu se inscrever), indica claramente que o intuito era que essa audiência passasse batida.
A minha longa experiência com a CTNBio (praticamente desde o início dela, em 1995) me permite dizer que não dá para confiar nesse órgão, porque ele tem uma estrutura feita para aprovar transgênicos, já que a maioria de seus conselheiros - cientistas especialistas na área – são indicados pelo ministro da Ciências, Tecnologia e Inovações. Eu não conheço nenhum caso de rejeição, o que mostra que o papel do órgão é legitimar a introdução de transgênicos na alimentação humana.
A possibilidade de esse trigo ser rejeitado parece ser praticamente nula. Há alguma chance?
MVL: O problema que se apresenta é diferente de todos os outros casos de transgênicos já liberados (soja e milho), que eram destinados à ração animal. Ou seja, chegam à mesa do consumidor de forma indireta, quando alguém come a carne de um animal que foi alimentado com soja ou milho transgênico. Já o destino do trigo que está sendo analisado é o consumo humano. E é por isso que temos tantas entidades de produtores na Argentina e no Brasil contra.
O mais absurdo é que a condição para esse trigo ser aprovado na Argentina é o Brasil importá-lo, porque 60% da produção argentina é exportada para o Brasil, que não é autosuficiente, e porque outros países resistirão a comprá-lo. Em 2004, uma empresa norteamericana produziu um trigo transgênico que foi aprovado, mas sofreu rejeição dos produtores, que temiam perder o mercado europeu. Assim, ele foi abandonado. O trigo transgênico não está liberado em nenhum país. É por isso que, nesse caso, eu tenho mais esperancas de que seja barrado. No entanto, a pressão do consumidor será muito importante.
O que os consumidores e as organizações da sociedade civil podem fazer para impedir que esse trigo seja liberado?
MVL: Primeiramente o tema tem de ser mais divulgado, para alertar o maior número de pessoas. É possível enviar cartas para as empresas pedindo que elas esclareçam se vão usar o trigo ou não ou lançar campanhas, no caso de aprovação, informando quem está usando e quem não está. Fizemos muito isso quando apareceu a soja transgênica. O Idec enviava carta às empresas questionando-as, o que fez com que elas não a usassem para não perder o mercado.
Por enquanto a nossa meta é divulgar o abaixo-assinado criado pelo Idec e que pode ser assinado em http://bit.ly/38fC2tC.
Quais serão as consequências para nós, seres humanos, se esse trigo for liberado?
MVL: É uma interrogação do tamanho de um bonde, porque esse trigo foi testado por duas semanas em apenas um tipo de animal, e não foram feitas autópsias nos que morreram. Não valeu para nada, foi simbólico.
Os testes em cobaias precisam respeitar alguns critérios, senão não têm nenhum valor: tem que ser mamífero (não pode ser peixe ou ave), tem que testar em machos e fêmeas (prenhas e não prenhas) etc. Se a cobaia vive dois anos, e nossa expectativa de vida é de 70 anos, temos que alimentá-la durante um período de tempo razoável.
Os efeitos para a saúde humana são um tiro no escuro, como tem sido quase tudo quando o assunto é transgênico.
A Bioceres vende o trigo como um produto resistente à seca. Contudo, esconde que ele é extremamente resistente ao agrotóxico glufosinato de amônio, que segundo a FAO/ONU é 15 vezes mais tóxico do que o glifosato. Como a senhora avalia essa atitude?
MVL: O trigo transgênico é vendido como resistente à seca, mas essa é uma propaganda enganosa, porque as condições hídricas variam muito de região pra região, de ecossistema para ecossistema. Por isso, é impossível com uma inserção genética feita na Argentina, que tem um bioma específico, frio, conseguir esse efeito mágico de criar um trigo resistente a qualquer condição hídrica, inclusive no Brasil.
Eu li recentemente um depoimento da criadora do trigo transgênico HB4, a geneticista Raquel Chan, no qual ela dizia que agrotóxicos não são boa coisa, mas até hoje não se inventou nada melhor. Eu diria que essa senhora nunca estudou história, porque como ela acha que o ser humano comeu até a invenção dos agrotóxicos? A humanidade tem uma história de 10 mil anos de agricultura, com aprendizado de muitos povos e culturas, e nenhuma usava agrotóxico. Por isso chegamos até aqui. É lamentável que alguém faça uma declaração dessa, divulgada em sites de empresas ligadas ao agronegócio como positiva.
Uma das questões associadas aos transgênicos é a promessa de que eles reduziriam a utilização de agrotóxicos. Nas últimas décadas, o que se observou foi o contrário: um aumento do uso em variedades transgênicas. Como você vê essa questão?
MVL: A realidade desmentiu essa promessa. O que tivemos foi um aumento enorme do consumo de agrotóxicos e da quantidade deles no sangue dos brasileiros. Hoje o glifosato está presente em todos nós. Claro que foi uma promessa falsa, e sabiam que era. Eles usam esse argumento porque as pessoas muitas vezes não entendem a causa da fome. Não há relação direta entre fome e oferta de alimento. No meio dos dois tem um negócio chamado dinheiro ou terra. Se você é um agricultor e tem terra, planta e come. Se não é, se mora na cidade, precisa de dinheiro para comprar alimentos.
Os transgênicos não foram desenvolvidos para consumo humano: o milho e a soja são usados como ração animal. O gado deixa de comer capim e passa a comer um alimento especial à base de milho e soja transgênicos (é feita a transgenia para se poder aplicar maior quantidade de agrotóxicos nas plantas sem que elas morram). Mas como sabemos que depois de algum tempo as pragas, assim como as bactérias, se tornam resistentes, o agrotóxico usado em uma planta transgênica não basta, sendo preciso mais e mais agrotóxico. E foi o que aconteceu conosco, saímos do glifosato, que já era bastante ruim e passamos a usar o 2,4-D, que é extremamente pior.
Embora pesquisas apontem que o agrotóxico glifosato é nocivo à saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) rebaixou, recentemente, a sua classificação toxicológica, como se ele fosse seguro. Por que o Brasil está andando na contramão do mundo em relação a esse tema?
MVL: O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos, pois tem políticas de isenção e redução de impostos sobre a fabricação e comercialização, com a justificativa de que precisamos estimular a produção agrícola para alimentar a população. Há uma ação no Superior Tribunal de Justiça (STF) questionando a existência desses subsídios e isenções para o uso de agrotóxicos. Ela teve parecer favorável do ministro Edson Fachin, mas o julgamento foi sustado pelo ministro Gilmar Mendes, que colocou o caso na gaveta, de onde temo que não saia tão cedo. É escandaloso, principalmente porque o Instituto Nacional de Câncer (Inca) já relacionou o aumento de agrotóxicos ao aumento de cânceres, o que coincide com o aumento do plantio de transgênicos associados a agrotóxicos.
Não faz sentido que haja uma política de subsídios e isenções para consumo de agrotóxico quando temos uma legislação rígida para cigarros e bebidas alcoólicas, a fim de desestimular o uso. No caso do agrotóxico, estimulamos o uso. A agricultura ecológica compete em desvantagem, pois não tem isenção, o que a torna mais cara, e precisa cumprir uma série de exigências. É uma decisão política que favorece um tipo de agricultura em detrimento de outra. Um pequeno agricultor familiar paga taxa como se fosse um grande agricultor, sustentando uma agricultura que ele não pratica e é contra. É surreal.
Para piorar, a Anvisa rebaixou o grau de risco/toxicidade de uma série de agrotóxicos, flexibilizando sua aplicação. Dessa forma, cerca de 800 novos defensivos agrícolas foram permitidos em 2020. É um escândalo que salta aos olhos.
Quando se fala em transgênicos, uma conquista importante, mas que está ameaçada, é a rotulagem que identifica na embalagem a presença de organismos geneticamente modificados. Você acredita que a discussão sobre o trigo reforça a importância deter o triângulo amarelo de alerta no rótulo?
MVL: Sim! Todos os produtores da cadeia do trigo temem a resistência dos consumidores justamente por conta da rotulagem. Se a legislação caisse, como quer o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 34/2015 seria muito mais fácil impor ao consumidor algo que ele não sabe o que é. O que querem é eliminar o triângulo amarelo do rótulo e passar a informação para letrinhas minúsculas na parte de trás da embalagem, retirando o direito do consumidor à informação e à escolha. Esse PLC está aguardando votação no Senado, que deve estar esperando o melhor momento para dar o bote. Então, toda a atenção é necessária, porque essa lei poupou o consumidor brasileiro de comer bolachas, biscoitos, sorvetes etc. com ingredientes geneticamente modificados.
A CTNBio argumenta cinicamente que é composta de um grupo de cientistas excelentes que analisou os agrotóxicos e fez vários estudos. A CTNBio não faz estudos, essa não é a função dela. Ela analisa (e analisa mal) os estudos feitos pelas empresas interessadas em liberar transgênicos no mercado.