Novas regras de rotulagem
Novas normas para rotulagem nutricional de alimentos e bebidas são avanço para a população brasileira. Contudo, o Idec identificou alguns problemas no modelo aprovado pela Anvisa
Se tivéssemos de resumir em uma palavra as novas normas para rotulagem nutricional de alimentos, aprovadas em 7 de outubro de 2020 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), seria insuficientes. Isso porque o Idec participou ativamente e desde o início – em 2014 – do processo regulatório: integrou o grupo de trabalho que discutiu o assunto, compareceu a muitas reuniões com a equipe técnica e com os diretores da Anvisa, apresentou a proposta de triângulos e as evidências científicas que a embasam e, junto com os membros da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, realizou campanhas para informar a população a respeito do tema e estimular a participação da sociedade. Então é compreensível que esperasse mais. Mas quando há política envolvida (e quando não há?), os resultados nem sempre são justos.
O Idec defendeu (e defende!) os triângulos pretos para alertar o consumidor que um produto tem alto teor de sódio, açúcar ou gordura. Contudo, a agência escolheu outro modelo para estampar a parte da frente das embalagens de alimentos e bebidas industrializados: uma lupa. Além de sua eficácia não ter sido comprovada cientificamente, houve mudanças significativas entre o modelo apresentado na consulta pública, em 2019, e o aprovado. "Fomos surpreendidos com mudanças no design, que prejudicaram substancialmente a visualização e a atenção, especialmente por conta do tamanho reduzido", declara Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec. Para Carla Spinillo, do Departamento de Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que auxiliou o Idec no desenvolvimento do modelo de triângulos apresentado à Anvisa, o atual design compromete a legibilidade e a clareza das informações, por conta do tamanho reduzido das letras e por ocupar apenas 3,5% (no máximo 7%) da parte frontal da embalagem. "A intenção da Anvisa de alertar os consumidores brasileiros sobre nutrientes em excesso nos produtos alimentícios e nas bebidas pode não ser bem-sucedida, visto que a lupa não é um símbolo de alerta. Já o triângulo, proposto pelo Idec e pela UFPR, é um símbolo convencionado internacionalmente, empregado no Brasil para identificar alimentos transgênicos, por exemplo", ela opina.
PONTOS NEGATIVOS DA LUPA
- Modelo não foi adotado por nenhum país (ainda está sendo avaliado pelo Canadá);
- Não há estudos publicados que comprovem que ela é mais eficaz do que os triângulos de advertência;
- Exige que o consumidor seja alfabetizado, excluindo crianças pequenas e analfabetos;
- A imagem não fica isolada do restante da embalagem;
- O tamanho do alerta é menor do que o recomendado por especialistas em design da informação;
- É semi-interpretativa, já que é preciso ler as informações.
Embora a Anvisa tenha declarado que os modelos sugeridos pelos diversos atores durante o processo regulatório não estão mais em discussão, o Idec seguirá cobrando que a agência comprove a eficácia da lupa. "Vamos continuar realizando estudos e questionando o embasamento científico utilizado pela agência para aprovar essa proposta", afirma Teresa Liporace, diretora executiva do Idec.
MELHORAS NA TABELA NUTRICIONAL
Apesar de alguns retrocessos, a Anvisa fez um ótimo trabalho em relação à tabela nutricional. Isso precisa ser elogiado. O Brasil é o segundo país da América Latina a atrelar a norma de rotulagem frontal à norma de rotulagem nutricional, garantindo a coerência das informações. O primeiro foi o México. "A inclusão dos açúcares totais e adicionados, que até então não era obrigatória, e a apresentação da informação nutricional por 100 g ou 100 ml na tabela nutricional representam um passo importante para o direito à informação clara e adequada. Porém, a Anvisa manteve a informação nutricional por porção e por %VD do produto que, além de não serem reais, pois variam de indivíduo para indivíduo, são referências que podem gerar confusão e até induzir o consumidor a erro", diz a nutricionista do Idec.
Outros pontos positivos são a padronização do tamanho, tipo e cor da fonte, e o quadro branco para contrastar com as demais cores da embalagem. Além disso, a tabela deverá ficar perto da lista de ingredientes, pois são complementares.
REGRAS PERMISSIVAS DEMAIS
Não foi só a lupa que desagradou ao Idec. O Instituto analisou com cuidado todas as regras aprovadas e tem algumas críticas. A primeira é em relação ao perfil de nutrientes, que é a forma de calcular os valores mínimos de nutrientes críticos. Esse perfil é usado na hora de determinar se um produto tem alto teor de açúcar, sódio etc. Na consulta pública, o Idec defendeu o modelo da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que é compatível com as recomendações da Organização Mundial da Saúde para prevenção de doenças crônicas, incluindo alertas para gorduras saturadas, gorduras totais, gorduras trans, açúcar, sódio e edulcorantes. Já o perfil aprovado pela Anvisa tem como base diretrizes do Codex Alimentarius, que são bem menos rígidas e se aplicam apenas ao sódio, ao açúcar e a gorduras saturadas. E por que isso é ruim? Porque muitos alimentos e bebidas que deveriam receber o alerta frontal por conta da sua composição nutricional inadequada não o terão. "Os biscoitos recheados de chocolate Negresco, Oreo e Passatempo não apresentarão o alerta "alto em gordura saturada", somente "alto em açúcar adicionado", porque de acordo com o perfil nutricional aprovado, a quantidade de gordura saturada é adequada", exemplifica Bortoletto.
Outro ponto problemático é a decisão da Anvisa de deixar de fora da rotulagem nutricional frontal o alerta para adoçantes. "Esse é um ponto bastante preocupante, pois a presença desses ingredientes não é clara para o consumidor. Além disso, há diversas evidências científicas que demonstram que eles oferecem riscos à saúde, principalmente para crianças", comenta Bortoletto. A nutricionista Vanessa Mello Rodrigues, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (Nuppre/UFSC), concorda e destaca que "estudos nossos e internacionais identificaram a substituição de açúcares por edulcorantes, que tende a ser ainda maior a partir das novas regras para açúcares de adição".
Questionada sobre os edulcorantes, a Anvisa disse que a indicação desses ingredientes no rótulo foi considerada inadequada desde o início do processo regulatório. "Os adoçantes não foram inseridos na rotulagem frontal, pois são ingredientes usados de forma intencional com finalidades tecnológicas. Portanto, não são classificados como nutrientes. Assim, o uso dessas substâncias em alimentos é concedida apenas após comprovação de sua segurança", alegou a agência por e-mail. Para o Idec, a ausência de alerta sobre essas substâncias no rótulo frontal provocará um aumento de alimentos reformulados com menos açúcar, mas com adoçantes como substitutos. O Idec também critica a regra para uso de alegações no rótulo, como "ligth", "rico em vitaminas" etc. Apenas aquelas referentes aos nutrientes críticos apontados na lupa estão proibidas, ou seja, um produto alto em sódio, mas que reduziu em 25% esse nutriente, não poderá ser chamado de light. Contudo, o Idec defende que a regra valha para qualquer nutriente. "Se o alimento tem alto teor de açúcar, ele não pode alegar no rótulo que é rico em cálcio ou fibra, pois isso confunde o consumidor na hora de identificar se o produto é saudável ou não", explica a nutricionista do Idec.
LONGO PRAZO PARA ADAPTAÇÃO
O Instituto discorda também do prazo estabelecido para a norma começar a valer. De acordo com a resolução aprovada, as empresas serão obrigadas a comercializar seus produtos com o novo rótulo apenas a partir de outubro de 2022. Para alguns produtos específicos, como refrigerantes em embalagem retornáveis, o período de adaptação é ainda maior: cinco anos. O Idec considera esse prazo preocupante, considerando que algumas bebidas desse grupo apresentam alto teor de açúcar e, em algumas versões, de sódio, sendo, portanto, prejudiciais à saúde. "A rotulagem nutricional é um tema de saúde pública, portanto cada dia de 'atraso' prejudica a saúde da população e fere o direito à informação dos consumidores brasileiros. Além disso, o prazo estabelecido não é coerente com outros processos regulatórios e nem plausível, ainda mais se considerarmos que as indústrias de alimentos e bebidas participaram desde o início da discussão", pontua Liporace.
A nova rotulagem nutricional é fruto de um longo processo marcado, de um lado pela pressão das indústrias de alimentos, que apresentaram forte resistência à implementação das advertências, e do outro pela ampla mobilização da sociedade civil em defesa dos triângulos de alerta. Ainda que o modelo escolhido não seja o que defendemos, considero um avanço termos uma rotulagem frontal de advertência.
Inês Rugani, da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
O processo de proposição de um modelo de rotulagem nutricional frontal para produtos alimentícios e bebidas foi longo, democrático e articulado com a pesquisa científica. Se por um lado parabenizamos a Anvisa por liderar as discussões, por outro lamentamos o modelo aprovado por ela. Ressaltamos que continuaremos a defender o triângulo como o mais eficaz para a rotulagem nutricional frontal de advertência no Brasil.
Carla G. Spinillo, da Universidade Federal do Paraná
De maneira geral, consideramos que a aprovação da nova regulamentação para rotulagem nutricional representa um avanço importante. Contudo, ressaltamos que é imprescindível realizar campanhas para orientar os consumidores sobre essa nova legislação. Além disso, o monitoramento dos produtos após a implementação das novas regras será fundamental.
Vanessa Mello Rodrigues, do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (NUPPRE- UFSC)
Demos um passo para a frente e dois para trás, pois a norma que a Anvisa aprovou tem alguns aspectos positivos, como a inclusão de açúcares totais e adicionados e o teor de nutrientes por 100 g ou 100 ml, mas outros pouco favoráveis à saúde pública. Por exemplo, o design escolhido para o rótulo da frente da embalagem não foi o octogonal ou o triângulo, para o qual existem fortes evidências sobre a eficácia.
Neha Khandpur, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Nupens/USP)
A Opas acompanhou o processo regulatório de rotulagem nutricional conduzido pela Anvisa nos últimos seis anos. Quatro países da América Latina adotaram o octógono, modelo que conta com evidências científicas sobre a efetividade. Já o modelo aprovado no Brasil ainda não foi adotado por nenhum país. Seguiremos apoiando o Ministério da Saúde e a Anvisa na implementação e avaliação dessa medida.
Luisete Bandeira, da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS)
Participar do processo para implementação do novo modelo de rotulagem nutricional foi extremamente gratificante, mesmo que não tenhamos chegado ao desfecho que gostaríamos. Sabemos que a questão política também pesa muito na escolha, e isso é lamentável, pois uma decisão tomada por um grupo pequeno de pessoas vai impactar a vida de milhões de brasileiros. Não estou 100% feliz, mas foi uma conquista importante para a sociedade.
Maria Edna de Melo, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso)
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