Educação financeira não avança no Brasil
Material educativo produzido por bancos esbarra em conflitos de interesse e não chama a atenção dos consumidores
Você já acessou o conteúdo de educação financeira do seu banco? Fizemos essa pergunta a 975 pessoas, e 63% respondeu que não. Foi uma surpresa, principalmente por ser o Brasil um país com 60 milhões de endividados (e 30 milhões de superendividados, aqueles cuja renda é totalmente destinada ao pagamento de dívidas) - número que certamente vai aumentar por conta da pandemia. Por isso, o Idec vem lutando, há anos, por uma educação financeira de qualidade. Contudo, ainda estamos há anos-luz do ideal.
Desde 2010, o Brasil conta com a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef), executada pela AEF-Brasil, uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). "Essa inciativa é muito importante, porém insuficiente, já que foca apenas em crianças e jovens em idade escolar e em idosos, aposentados e pensionistas, além de mulheres assistidas por programas sociais. Assim, o grosso da população que está dentro do sistema financeiro, abrindo conta em banco, contratando crédito e fazendo investimentos inadequados não conta com uma política pública de educação financeira", critica Ione Amorim, economista do Idec e responsável por uma pesquisa que avaliou a evolução da Enef nos últimos dez anos e como os bancos vêm atuando para disseminar a educação financeira. Veja, a seguir, os principais resultados.
CONSUMIDORES DESCONFIADOS
Na primeira parte da pesquisa, 975 consumidores de todo o Brasil responderam a um questionário online sobre o conteúdo de educação financeira oferecido por seu banco e como essas informações influenciam suas escolhas. Esse levantamento revelou que 79% dos entrevistados têm algum conhecimento sobre educação financeira e reconhecem a sua importância. Contudo, 41% nunca recebeu informações do banco, embora saiba que há conteúdo educativo no site e no aplicativo, e 39% não sabe se existem programas de educação financeira em seu banco. Apenas 11% disse receber orientações frequentes sobre como aplicar o seu dinheiro.
Ao serem questionados se o material educativo oferecido têm sido benéfico para sua vida financeira, 34% afirmou que sim; 30% não soube responder, pois não conhece o que o banco disponibiliza; e 20% respondeu que não, já que os investimentos ofertados pelas instituições financeiras têm baixa rentabilidade, e os créditos, juros altos.
Para Amorim, as respostas surpreenderam, mas faz sentido muitos brasileiros desconhecerem o conteúdo disponibilizado pelos bancos ou não demonstrarem interesse por ele. "Interpreto esse desinteresse como desconfiança, pois os consumidores podem pensar que essas instituições oferecem educação financeira de forma a atender a seus próprios interesses", diz. "O conflito de interesses existe. Como o banco vai dizer que eu não devo usar crédito desnecessariamente se ele vive disso? Ou que o seguro que o gerente me oferece como essencial na verdade serve para que ele cumpra sua meta de vendas mensal?", exemplifica.
INFORMAÇÕES ESCONDIDAS
Na segunda fase do estudo, o Idec avaliou o site, as redes sociais e o aplicativo de nove bancos (veja quais são eles no quadro ao lado). Constatou-se que todos apresentam algum conteúdo relacionado à educação financeira (veja o quadro da página 18), atendendo, assim, às recomendações do Banco Central. Entretanto, somente alguns sinalizam na página inicial o acesso a esse material. Em alguns sites, as informações ficam espalhadas pelas diversas páginas e, em alguns casos, são facilmente confundidas com publicidade.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Essa pesquisa foi realizada em quatro etapas. Na primeira, 975 consumidores responderam um questionário online com 14 perguntas de múltipla escolha. O objetivo era avaliar o conhecimento e a familiaridade deles com o conteúdo sobre educação financeira oferecido pelo banco onde são correntistas.
Na segunda fase, analisamos os canais digitais (site, aplicativo e redes sociais) de nove bancos – Banco do Brasil, BNDES, Bradesco, BTG Pactual, Banco Votorantim (BV), Caixa Econômica Federal (CEF), Itaú Unibanco, Safra e Santander – a fim de identificar que materiais oferecem (cartilhas, livros, vídeos, cursos etc.) e se o acesso a eles é fácil. A qualidade pedagógica do conteúdo não foi analisada.
Na terceira parte, enviamos cartas às instituições financeiras questionando-as sobre as ações de educação financeira implementadas por elas e pedindo que opinassem sobre o desempenho da Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef). O Idec também entrou em contato com algumas das principais instituições que compõem o Fórum Brasileiro de Educação Financeira (FBEF): Banco Central, regulador do sistema financeiro; Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública; e Federação Brasileira de Bancos (Febraban), representante do setor bancário.
Por fim, entrevistamos seis especialistas e influenciadores digitais sobre os desafios das políticas públicas de educação financeira e o papel dos bancos na sua disseminação. Os entrevistados foram: Ladislau Dowbor, economista e professor de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Evelin Bonfim, jornalista e consultora em finanças pessoais para mulheres; Fred Marques, psicólogo e consultor financeiro; Beatriz Santos, administradora e CEO da Barkus Educacional; Vivian Rodrigues, planejadora financeira e fundadora do canal Papo de Valor e Amanda Dias, jornalista e fundadora do perfil @granapreta no Instagram.
Ione Amorim, economista do Idec
Os materiais oferecidos a crianças, jovens, adultos e idosos tratam de planejamento financeiro, previdência, poupança, funcionamento das operações bancárias, produtos oferecidos pelos bancos, investimentos, risco de crédito, endividamento, entre outros temas.
Vivian Rodrigues, criadora do canal Papo de Valor, acredita que é papel dos bancos disseminar a educação financeira, mas que não adianta fazer isso numa página escondida no site e ficar ligando para os clientes oferecendo crédito e cartões com limite pré-aprovado. "Não há problema na venda de produtos financeiros, até porque às vezes precisamos deles. Só que isso tem de ser feito com responsabilidade. Resumindo, não adianta fazer várias ações para levar a educação financeira às pessoas e, ao mesmo tempo, dificultar que elas coloquem o que aprenderam em prática", argumenta.
Vale dizer que o Itaú Unibanco destacou-se positivamente por ser o único banco que informa em seu site as metas relacionadas à cidadania financeira para os anos de 2020 e 2021 (por exemplo, assume o comprossimo de reduzir indicadores de inadimplência). "Embora o Banco Central não exija isso, é algo fundamental em programas que pretendem gerar mudança de comportamento e impacto. Assim, essa iniciativa precisa ser copiada por todas as outras instituições financeiras", pontua Amorim.
O QUE DIZEM OS BANCOS
Todos os bancos avaliados receberam, na terceira etapa da pesquisa, um questionário, mas apenas cinco responderam até o fechamento desta edição: Banco do Brasil, Bradesco, BNDES, Itaú Unibanco e Safra. Entramos em contato duas vezes com as instituições que não responderam (BTG Pactual, Banco Votarantim, Caixa Econômica Federal e Santander), sem sucesso.
O Idec perguntou se possuem uma política para educação financeira alinhada com a Enef; como avaliam o impacto de suas ações no comportamento de seus clientes; entre outras questões.
Em suas respostas, os bancos enfatizaram a existência de políticas de educação financeira, destacando iniciativas adotadas internamente ou em parceria com empresas e instituições, mas ignoraram a pergunta sobre conflito de interesses.
Também questionamos o Banco Central, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Esta última não se manifestou. O Banco Central considera o desempenho da Enef exitoso, e a Febraban destacou que as atividades dos bancos estão alinhadas com as orientações do Banco Central (Comunicado no 34.201/2019). Contudo, Amorim, do Idec, reforça a importância de se implementar políticas públicas autônomas, ou seja, independentes dos bancos, e que tenham efetiva participação da sociedade civil: "Queremos a democratização da educação financeira, para que alcance todos os brasileiros, de todas as idades, raças e classes sociais". Evelin Bonfim, consultora em finanças pessoais para mulheres, concorda e acrescenta: "As instituições financeiras deveriam ser agentes de solução, só que o sistema não dá incentivos para que elas o façam. O poder público precisa ajudar a regular essa questão".
OPINIÃO DE ESPECIALISTAS
Para finalizar o estudo, conversamos com seis especialistas em finanças pessoais (alguns deles influencers). De modo geral, eles afirmaram que o desempenho da Enef evidencia as fragilidades que precisam ser enfrentadas no país, que vão muito além da dificuldade para lidar com produtos e serviços bancários. E, todos defenderam o fortalecimento da educação financeira, que deve ser aplicada não apenas no ambiente escolar.
Veja um breve resumo do que eles disseram (as entrevistas completas podem ser vistas, a partir de dezembro, no site do Guia dos Bancos Responsáveis e no canal do Idec no Youtube):
Eu comentei sobre a Enef com algumas pessoas, e nenhuma delas a conhecia. Quando temos uma política pública que o público desconhece, devemos desconfiar de sua eficácia. O principal desafio de quem oferece educação financeira é fazê-la de forma compatível com o contexto das pessoas, pois hoje ela é muito genérica (é a mesma para a classe baixa e a classe alta), cheia de fórmulas prontas do quanto e como se deve poupar, por exemplo".
Fred Marques, psicólogo e consultor financeiro
Eu acredito que a má gestão financeira de muitos brasileiros e o endividamento são resultados da falta de educação financeira e da quantidade absurda de incentivos ao consumo e à facilidade para obter crédito. No geral, as pessoas não veem muito problema em gastar tudo o que ganham (ou até mais). E isso é um perigo. Temos uma longa jornada para transforar a realidade brasileira".
Vivian Rodrigues, do Canal Papo de Valor
Não temos educação financeira no Brasil. Precisamos de regras muito mais rigorosas para que bancos, empresas de cartão de crédito, varejistas etc., sejam transparentes. Temos de considerar a desigualdade de força entre consumidor e fornecedor, e nunca responsabilizar o consumidor pelas más escolhas. A educação do consumidor é essencial. Contudo, ela é apenas uma parte do processo de transformação do sistema".
Ladislau Dowbor, economista e professor de pós graduação da PUC-SP
É preciso colocar em prática políticas que ajudem as pessoas a não se endividarem e a investir, porque não é apenas uma questão técnica. Se fosse, eu não encontraria tantos bancários, contadores e engenheiros, pessoas que sabem fazer cálculos e que entendem de serviços bancários, com tantas dívidas"
Evelin Bonfim, jornalista e consultora em finanças pessoais para mulheres
A educação financeira ainda é muito focada na matemática financeira, em orçamentos e juros. Então, ainda temos um caminho muito longo, comparo a educação financeira à reeducação alimentar: sabemos que é importante, mas nem sempre conseguimos aplicar na prática. É preciso trocar comportamentos e hábitos para mudar a realidade".
Beatriz Santos, administradora e CEO da Barkus Educacional
A educação financeira precisa ser mais democrática, atingindo não somente os millennials, mais acostumados com a Internet, mas todas as famílias. Um grande desafio é promovê-la para quem não tem recursos para manter o custo de vida básico. A desigualdade econômica brasileira, que é histórica, dificulta a popularização dos conhecimentos financeiros entre a população de baixa renda".
Amanda Dias, do perfil @granapreta no Instagram
Saiba mais
- Guia dos Bancos Responsáveis: https://bit.ly/33PPh3V
- Canal do Idec no Youtube: https://bit.ly/2TWc6N1