Sociedade atuante
Estamos em ano de eleições municipais, nas quais exercemos nossa cidadania escolhendo prefeito e vereadores para nossa cidade. Decisão importantíssima, visto que a atuação desses políticos influencia não apenas a nossa vida cotidiana (questões como transporte público coletivo e mobilidade urbana, saneamento básico, limpeza das ruas, educação, defesa do consumidor etc.), mas também as políticas estadual e nacional. Por conta da pandemia do novo coronavírus, essas eleições serão diferentes, a começar pelo adiamento do primeiro e do segundo turnos para os dias 15 e 29 de novembro, respectivamente. Temos tempo até lá para avaliar bem todos os candidatos e suas propostas. Para nos ajudar a entender a importância da nossa participação na vida política, conversamos, por telefone, com o cientista político Vítor Oliveira, diretor da consultoria Pulso Público. Ele defende que os cidadãos e a sociedade civil organizada se envolvam com processos institucionais não apenas no período eleitoral, mas no dia a dia.
VÍTOR OLIVEIRA é cientista político, diretor da consultoria Pulso Público e professor da disciplina "Estado e Governo" no curso "Advocacy e Políticas Públicas: Teoria e Prática" da Fundação Getúlio Vargas.
Como a Pulso Público vê a participação dos cidadãos brasileiros e das entidades da sociedade civil na vida politica atual?
Vítor Oliveira: A Pulso Público tem como missão fomentar e melhorar a participação política da sociedade civil nos processos institucionais, não apenas nas eleições, mas no dia a dia. Para nós, a participação do cidadão e da sociedade civil organizada na política é fundamental, pois ela dignifica a essência da democracia, que é o cidadão tomar parte naquilo que é dele. Acreditamos que a transformação da sociedade brasileira e a superação dos nossos problemas estão diretamente relacionadas ao engajamento e à participação efetiva.
Como as entidades da sociedade civil podem participar mais da vida política?
VO: A Pulso Público defende a ideia de que as organizações, independentemente do seu perfil, façam advocacy, ou seja, participem dos debates que a ela dizem respeito e também de debates estruturantes. E essa participação pode ser de várias formas: nas redes sociais, na mídia, em meios acadêmicos, mas, principalmente, no ciclo de políticas públicas. Então, quando uma política pública estiver sendo formulada, implementada e executada, é muito importante que a sociedade se envolva no processo.
O que significa exatamente a palavra advocacy?
VO: Importamos esse termo em inglês, que significa falar pelo outro, defender, dar voz a algo ou alguém de forma sistematizada, estruturada e profissional. Essa é uma ideia relativamente nova no Brasil. Não é que a participação política seja nova nem a defesa de causas, mas o uso de determinadas metodologias e práticas para se fazer isso é (elas vieram dos EUA e da Europa). Utilizamos a palavra advocacy para definir esse conjunto de ferramentas e estratégias (de comunicação, engajamento, mobilização etc.) aplicadas para que a sociedade participe do processo político de forma mais eficaz, promovendo e defendendo causas.
Como você vê a atuação do Idec no cenário político?
VO: Hoje, o Idec é uma das organizações mais estruturadas para agir politicamente. Ele tem atuado em diversas pautas no dia a dia da política aqui em Brasília e, certamente, não será diferente nas eleições deste ano. É nítida a diferença do Idec em relação a outras organizações que têm menos estrutura e menos autonomia, conseguida principalmente por sua independência financeira.
O Idec tem capacidade não só de defender os consumidores junto aos parlamentares e ao Poder Executivo, mas de qualificar o debate do ponto de vista técnico e jurídico. É uma instituição muito respeitada, o que faz com que seja convidada para opinar em vários debates.
O que é importante que os eleitores saibam sobre as eleições municipais?
VO: O grande desafio é nos reeducarmos politicamente, porque, infelizmente, a gente recebeu informações erradas sobre como devemos votar. A Justiça Eleitoral fez um desserviço à democracia ao estimular os eleitores a pensar no candidato em que estão votando, quando na verdade, a primeira coisa que eles têm de fazer ao escolher um vereador, por exemplo, é pensar no partido, porque nosso sistema eleitoral para a Câmara Municipal, assim como para a Câmara dos Deputados e a Assembleia Legislativa, privilegia os partidos. Embora a gente possa votar direto no candidato, primeiro escolhemos o partido, para definir a quantidade de cadeiras que ele terá na Câmara (elas variam de acordo com o número de votos). Daí as vagas são distribuídas aos candidatos com mais votos.
Uma mudança substancial nessas eleições é a proibição das coligações: não vai ter aquela coisa de votar num vereador do partido X e acabar elegendo um do Y. A partir de agora, os partidos não poderão se coligar em eleições proporcionais. Dessa forma, o voto que você der para o partido X vai para os candidatos dele. As pessoas ficavam frustradas, "eu não votei nesse cara", mas ao votarem no partido, elas votaram sim. É que infelizmente isso não é explicado direito.
Outra coisa que atrapalha é a fragmentação partidária no Brasil. A gente não só tem muitos partidos, como isso é muito assimétrico Brasil a fora. Temos partidos muito fracos no âmbito nacional, mas muito fortes em determinadas regiões. Isso gera confusão, porque a política local e nacional têm lógicas distintas. Em alguns lugares, como a capital de São Paulo, do Rio de Janeiro, dentre outras, o debate e a organização dos partidos é nacionalizado. Mas a regra não é essa nos cinco mil e tantos municípios brasileiros, onde o mais importante é a política local. Então, pode ser que um partido se comporte como oposição ao Governo Federal, mas em determinado município esteja junto com o governo, que é de outro partido.
Podemos dizer, então, que a proibição das coligações é positiva?
VO: Não há nada de errado com as coligações, elas não são um problema. Quando se faz mudanças nas regras eleitorais, raramente haverá uma melhor do que a outra. A mudança resolve determinados problemas, mas cria outros.
O fim das coligações acaba limitando a liberdade de associação. Para mim, o ideal seria que os partidos pudessem fazer o que quisessem, e o eleitor conseguisse filtrar. Mas como ele tem dificuldade de entender o sistema eleitoral (ou o que acontece com o voto dele), a mudança pode ser considerada positiva, pois ao simplificar pretende-se aumentar a participar dos cidadãos na vida política.
Estamos vivendo uma crise sem precedentes por conta da pandemia do novo coronavírus. Como ela influenciará as eleições deste ano?
VO: A primeira questão é a incerteza sobre a participação dos eleitores, ou seja, não sabemos quantas pessoas vão votar, porque no Brasil o voto precisa ser presencial, mas os especialistas em saúde pública têm recomendado o distanciamento social. Será que o compromisso do eleitor com o processo democrático vai ser grande o suficiente para fazê-lo votar diante do atual cenário?
Uma segunda questão é como essa dificuldade para votar vai ser refletida na dinâmica dos votos, porque pessoas diferentes votam de formas diferentes. E o fato de alguns grupos comparecerem, outros menos, pode afetar, por consequência, os resultados.
Muitos candidatos vão tentar se reeleger. A forma como lidaram com a pandemia deve ser considerada pelos eleitores na hora de escolher?
VO: Deveria, mas o que temos visto é uma dinâmica muito maluca de avaliação dos governos locais, estaduais e federal, porque não está claro para o eleitor qual o papel de cada ator. E aí fica difícil responsabilizá-los.
Eu não sei o quanto a pandemia vai pesar nessas eleições, visto que as avaliações de prefeitos e governadores variaram muito. Por exemplo, em municípios onde a atuação do prefeito tenha sido muito efetiva, até que ponto quem perdeu o emprego não vai achar que a responsabilidade foi do prefeito? Mas uma coisa eu posso falar com base nas últimas eleições, pois tenho certeza de que vai se repetir: os partidos que estão associados ao Governo Federal vão se sair melhor. Isso não significa que os partidos que apoiam o Presidente da República vão ganhar tudo, mas eles vão ter um desempenho melhor do que tiveram nas eleições anteriores. É uma previsão que podemos fazer independentemente de quem está no Poder: valeu pro Fernando Henrique [Cardoso], pro [Luiz Inácio] Lula [da Silva], pra Dilma [Rousseff], mais ou menos para o [Michel] Temer e deve valer para o [Jair] Bolsonaro. E é um raciocínio inteligente por parte do eleitor, porque a maioria esmagadora dos municípios brasileiros não gera recursos suficientes para manter os serviços públicos, dependendo, assim, do financiamento do Estado, mas principalmente da União. Então faz sentido escolher um partido que tenha mais condição de atrair recursos estaduais e federais.
Quais valores e temas devem se destacar nestas eleições?
VO: O debate municipal sempre tem a saúde como o tema principal, pois as pesquisas de opinião apontam que essa é a maior preocupação dos brasileiros. Contudo, o debate costuma ser conceitual, sem focar em formas concretas de se resolver os problemas de saúde pública. Nestas eleições, talvez a coisa mude de figura em função da pandemia, que exige soluções práticas. Pode ser que vejamos pela primeira vez candidatos defendendo o SUS [Sistema Único de Saúde], que normalmente é alvo de críticas.
E qual será o impacto das redes sociais nas eleições?
VO: Ainda estamos aprendendo a lidar com esse "bicho", e quem já aprendeu vai sair na frente. Muito se fala em fake news, mas difamar adversários não é algo novo. O que mudou foi a forma e a velocidade com que isso é feito. Em eleições municipais, botar o carro na rua, literalmente, sempre foi muito importante nas campanhas, principalmente nos municípios que não são capitais e nas periferias. A percepção que o eleitor tem da força de cada candidato está associada a essas campanhas ostensivas. No entanto, nos últimos anos, essa forma tradicional de mobilização do eleitorado foi sendo substituída pelo Whataspp, que é a principal rede social usada pelos candidatos no Brasil.
Qual a importância das cotas partidárias, da diversidade de candidatos e de a sociedade estar representada nas câmaras de vereadores e nos governos municipais?
VO: Como falei, a participação política é a essência da democracia, e esta só é efetiva quando de fato todos podem participar igualmente. A representação política no Brasil é monopólio dos partidos. Assim, quem quer um cargo precisa ser filiado a um partido político. E os canais internos dos partidos são muito viciados, pouco democráticos. Para que isso mude é preciso que a Justiça Eleitoral, por exemplo, reafirme a importância de disponibilizar recursos para financiar campanhas de mulheres, de negros. Se nada for feito nesse sentido, o quadro de ausência de diversidade na política vai se agravar. A quantidade de mulheres e de negros no Congresso, nas câmaras e no Executivo é irrisória, se considerarmos o quão diversa é a sociedade brasileira. E para mim é fundamental: sem diversidade não há democracia.