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Precisamos falar sobre saúde mental

Psiquiatra Jair de Jesus Mari, da Unifesp, fala sobre nossas reações à pandemia

A pandemia de coronavírus transformou a vida de cidadãos de praticamente todos os cantos do mundo. O vírus causador da Covid- -19, além de matar milhares de pessoas, tem causado crises econômica, social e, no caso do Brasil, também política, sem precedentes. Já não bastasse tudo isso há ainda outra preocupação, a saúde mental, abalada pela mudança colossal no estilo de vida imposta pelo isolamento social compulsório, a perda da liberdade e a preocupação com o futuro incerto. E estamos todos sujeitos a transtornos psicológicos: crianças, adolescentes, adultos, idosos, profissionais de saúde, pacientes que ficaram internados e pessoas que perderam repentinamente um (ou mais) ente querido. Para entender quais os sintomas das principais doenças mentais que a situação surreal que estamos vivendo pode causar e o que fazer para manter a sanidade enquanto as coisas não voltam ao "normal", conversamos com o psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Jair de Jesus Mari. A entrevista foi feita pelo Skype em 3 de junho.


JAIR DE JESUS MARI é médico psiquiatra, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).


Em entrevistas e artigos, o senhor tem dividido a epidemia em três fases, cada uma com sintomas psicológicos distintos. Quais são essas fases?

Jair de Jesus Mari: A primeira fase é quando nos damos conta de que o vírus chegou, o que aqui no Brasil aconteceu no final de fevereiro. A primeira reação é de medo de nos contaminar e contaminar os outros.

A segunda fase é a que estamos vivendo, do isolamento. E nessa situação temos o que chamamos de reação de ajustamento. Algumas pessoas conseguirão se ajustar melhor do que outras: tem aqueles que estão tranquilos, os que estão em negação, achando que com eles não vai acontecer nada, e os que estão transtornados, obsessivos e compulsivos, higienizando tudo e com as mãos machucadas de tanto lavar.

E qual é a terceira fase?

JJM: Será o pós-pandemia, quando teremos o equivalente a um território devastado, com um número muito alto de cidadãos que desenvolveram transtornos mentais. Toda a população sofrerá com a crise econômica (aumento do desemprego, desigualdade social etc.) além da crise política, e muita gente terá perdido pessoas próximas que contraíram a doença. Eu prevejo um cenário muito complicado.

Como manter a saúde mental durante o isolamento?

JJM: É preciso reorganizar a rotina. Também é muito importante manter o contato com familiares e amigos por meio da Internet (nesse caso, as classes menos favorecidas são mais afetadas), praticar atividades físicas em casa com objetos do dia a dia, como saco de açúcar, e tomar um pouco de sol. O que também ajuda é o que o Ruy Castro costuma dizer: "cercar-se de bons livros e boas músicas". E quem tem propensão à escrita, toca algum instrumento, sabe desenhar ou pintar, deve aproveitar para praticar essas atividades. Por fim, evitar acompanhar o noticiário obsessivamente.

E quais são os problemas psicológicos que podem surgir nessa fase?

JJM: O isolamento traz consequências importantes, porque as pessoas estão preocupadas e com medo do futuro. A incerteza é o que mais angustia. E no caso do Brasil, além da incerteza sanitária, temos a incerteza política. Em situações como essa [de isolamento] é muito comum desenvolver estado depressivo ou de ansiedade.

Na depressão, a pessoa perde o interesse pelas coisas que gostava de fazer, sente uma tristeza intensa e uma angústia profunda, que pode vir acompanhada de crises constantes de choro. Quando isso ocorre de vez em quando é normal, pois tem dia que não queremos saber de nada mesmo. Mas se permanece por duas semanas ou mais é preciso atenção. A pessoa depressiva perde a funcionalidade, então, pode deixar de fazer coisas básicas como tomar banho e se arrumar, fica sem apetite ou com muito apetite, tem insônia ou muito sono.

A cognição é prejudicada. Assim, a pessoa não consegue se concentrar em uma atividade, como estudar ou ler o jornal. Também sente fadiga muito forte, e sua mente é invadida por pensamentos negativos, de que nada vai dar certo, de que tudo está muito difícil, de que isso não vai passar e, portanto, não há motivos para viver.

Então, o meu alerta é para quem não estiver bem buscar ajuda. Várias universidades desenvolveram programas de treinamento para que psicólogos possam oferecer psicoterapias breves a quem precisar. E um psicólogo bem preparado percebe quando a terapia não é suficiente e encaminha para um psiquiatra, pois alguns casos precisam de medicação.

Mas nem sempre a pessoa tem consciência de que está mal ou, se estiver num estado depressivo avançado, forças para pedir ajuda. O que a família pode fazer?

JJM: É muito importante que a família e os amigos insistam para que a pessoa procure ajuda. Porque a depressão passa, mas o suicídio não tem volta. E uma boa terapia vai ajudar a pessoa a superar esse momento e se recuperar. É preciso combater o preconceito e falar sobre o assunto.

E quais seriam os sintomas de ansiedade?

JJM: A pessoa fica muito irritada, tensa e libera mais adrenalina, o que pode causar diarreia, sensação de formigamento, dor de cabeça e dores gastrointestinais. A acentuação da ansiedade pode levar algumas pessoas a desenvolver síndrome do pânico, com a sensação de estarem morrendo. Esses casos também precisam de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico.

Como cuidar das crianças durante a pandemia?

JJM: É fundamental conversar com elas abertamente e usando a criatividade, sem amedrontá-las, mas sem esconder as informações, pois a verdade é o melhor caminho. Os pais podem dizer, por exemplo, que toda a família está unida para combater o vírus e que há pessoas buscando uma vacina. Deve-se evitar expor as crianças a notícias negativas, para não acentuar o medo que elas sentem de perder os pais.

E quais os cuidados que os idosos devem ter?

JJM: Os idosos devem ter cuidado com os cuidadores: pedir para que usem máscara o tempo todo e, se possível, que evitem o transporte público, nos quais pode haver aglomeração.

Esse grupo deve ficar isolado, mas conectado virtualmente com filhos, netos e amigos. Também é importante construir uma rotina com atividades lúdicas (ouvir música, assistir a filmes, ler etc.) e exercícios físicos regulares.

Deve-se evitar o contato obsessivo com notícias sobre a pandemia; buscar, de forma segura, se expor à luz solar; e não exagerar no consumo de bebidas alcoólicas. Os idosos que estão em tratamento clínico têm de conversar com o médico que os acompanham e não interromper o tratamento.

O isolamento também está colocando muitos casais em conflito por conta da convivência intensa. O que eles podem fazer para enfrentar o isolamento de forma pacífica?

JJM: Pelo que tenho lido e observado, haverá aumento no número de divórcios. Isso faz parte da terra devastada pós-pandemia. O confinamento forçado exige uma reorganização do casal, que nem sempre é pacífica. É natural que o contato constante dentro de um espaço fechado e com poucas alternativas de lazer provoque conflitos. Por isso, é muito importante dividir as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, estabelecendo uma nova rotina.

O consumo de bebidas e outras drogas pode facilitar desentendimentos. O mais importante é a tolerância, pensar que tudo isso é transitório e compreender as necessidades do outro.

Não podemos esquecer as pessoas que contraíram a Covid-19 e se recuperaram. Elas podem ter algum tipo de trauma?

JJM: Quem vai para o hospital e/ou para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) passa por uma situação extremamente estressante. É um campo de horror, uma experiência negativa que gera muito medo de morrer e ansiedade. Ir para o hospital sabendo que muitas pessoas estão morrendo e ficar sozinha, sem contato com a família, é muito ruim. Essas pessoas, principalmente as que foram intubadas, podem desenvolver um transtorno psiquiátrico chamado de estresse pós-traumático, no qual revivem os momentos traumatizantes que passaram, seja na enfermaria ou na UTI. É preciso acolher essas pessoas com terapia.

E quem perdeu um ente querido?

JJM: O número de óbitos é muito alto, e cada pessoa que falece tem uma família que não pode realizar os rituais tradicionais de enterro, o que dificulta as coisas. Essas pessoas podem desenvolver uma condição chamada de luto complicado, que é um luto não saudável, com depressão. Primeiro porque é uma morte inesperada e, portanto, traumática. Segundo porque não há uma despedida adequada.

No nosso departamento [da Unifesp] temos um grupo que está se dedicando ao acolhimento dessas pessoas, como forma de prevenir que elas desenvolvam esse tipo de luto.

Sabemos que os profissionais de saúde estão sobrecarregados. A que problemas psicológicos estão sujeitos?

JJM: Esses profissionais estão enfrentando a pandemia de uma forma brilhante, corajosa e altruísta. Infelizmente, alguns não vão sobreviver e muitos vão desenvolver estresse pós-traumático por conta da convivência diária com cenas terríveis, além do burnout, que é um esgotamento físico e emocional causado pelo acúmulo de trabalho, muitas vezes em situações precárias, com falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). E não tem muito como fugir disso.

A Unifesp, a USP [Universidade de São Paulo], dentre outras universidades, montaram uma estrutura de acolhimento para esses profissionais. É dever dos departamentos de psiquiatria se unir para oferecer conforto a eles.

Como vai ser a retomada da vida no "novo normal"?

JJM: Vamos ter a oportunidade de observar o que está acontecendo em países que já estão reabrindo, como a França, os EUA, entre outros. A grande questão é: "haverá uma nova onda da pandemia nesses lugares? Vai ser preciso fechar de novo?".

A abertura sem uma vacina e sem um tratamento adequado terá de ser muito cuidadosa: será preciso evitar aglomerações, praticar o distanciamento social, usar máscara, e colocar álcool em gel em todos os estabelecimentos.

Estou otimista em relação à vacina, pois há vários grupos avançando nas pesquisas. Tenho muita esperança, porque hoje temos mecanismos muito mais desenvolvidos do que há 102 anos, quando ocorreu a gripe espanhola.


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