Planos de Saúde fora da crise
Favoráveis aos planos de saúde, medidas da ANS anunciadas durante a pandemia deixaram os cidadãos brasileiros desprotegidos. Idec levantou as principais reclamações dos consumidores
A crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus – que está longe de terminar – já tem efeitos catastróficos na renda da população brasileira. Em maio, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o nível de ocupação no mercado de trabalho foi de 49,7%, o que significa que mais de metade dos cidadãos aptos a trabalhar estavam desocupados. O Ministério da Economia informou, em junho, que os pedidos de seguro-desemprego haviam subido 35% na primeira quinzena do mês em relação ao mesmo período de 2019.
Comércio, indústria, ensino e turismo são alguns dos setores que estão sofrendo grandes quedas de receita, o que ainda pode levar a falências ou novos cortes no quadro de funcionários. Mas, para os planos de saúde, a crise ainda não deu sinais de ter chegado. O boletim de junho da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostra que o número de usuários se manteve estável entre janeiro e abril de 2020 (cerca de 47 milhões de pessoas). Também não houve mudanças significativas em relação à inadimplência, ao menos por enquanto.
Logo no começo da pandemia, a ANS lançou um pacote com as seguintes medidas: suspendeu procedimentos eletivos e internações em hospitais-dia; duplicou o prazo para realização de atendimentos não relacionados à Covid-19 ou não urgentes; recomendou o uso da telemedicina; determinou que sete testes diagnósticos fossem cobertos; prorrogou obrigações financeiras das operadoras e permitiu a renegociação de contratos com clínicas, hospitais e médicos.
Para compreender como essas medidas afetaram os consumidores, o Idec realizou um levantamento a partir das reclamações registradas entre março e maio de 2020 na base de dados da ANS (entenda como a pesquisa foi feita no quadro ao lado).
EFEITOS COLATERAIS
O levantamento sugere que mesmo cidadãos não infectados pelo novo coronavírus estão sentindo os efeitos da pandemia em sua saúde: de acordo com dados disponibilizados no portal da ANS, as reclamações mais recorrentes estão relacionadas à dificuldade de conseguir atendimento para outras doenças (44%). Isso provavelmente se deve à suspensão dos procedimentos eletivos e à extensão dos prazos para atendimento. Foi o que aconteceu com a mãe da associada do Idec Maria Lúcia Vieira, de São Paulo. Ela tem 91 anos e faz acompanhamento de nódulos na tireoide. "Minha mãe tinha indicação para fazer uma ultrassonografia e possível biópsia em abril. Mas, quando tento marcar, dizem que é melhor aguardar", relata. Vieira tem tentado solicitar a realização do exame em residência, sem sucesso: "Eles alegam que isso seria homecare e que eu não tenho direito. Mas eu mesma já fiz ultrassonografias em domicílio. Minha mãe faz parte do grupo de risco para o novo coronavírus, por ser idosa e hipertensa. Retirar dela a possibilidade de fazer o exame em casa significa privá-la de assistência. Ela está sem tratamento, de modo que estou pagando a operadora, sem receber o serviço", reclama.
A justificativa para suspender procedimentos e adiar atendimentos não urgentes até faz sentido: era preciso liberar profissionais, equipamentos e leitos para pacientes com Covid-19. O grande problema é que outras condições de saúde graves podem ter sido negligenciadas. "Na nota divulgada pela ANS havia uma lista com vários procedimentos e serviços que não poderiam ser adiados, como pré-natal, tratamentos de câncer, hemodiálise e tratamentos contínuos de modo geral. No entanto, sabemos que houve negativas indevidas", declara a advogada Ana Carolina Navarrete, pesquisadora do programa de Saúde do Idec e coordenadora do estudo.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Para compreender como os consumidores foram afetados pelas medidas estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para os planos de saúde em março deste ano, analisamos os dados referentes a reclamações de consumidores disponibilizadas pela ANS no Portal Informe sobre Demandas dos Beneficiários que, por sua vez, armazena as informações do Sistema Integrado de Fiscalização (SIF). As queixas consideradas nessa pesquisa foram registradas entre 8 de março e 31 de maio de 2020.
Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de Saúde do Idec e Matheus Zuliane Falcão, analista do programa de Saúde
Somente em 9 de junho, a ANS restabeleceu os prazos máximos que devem ser cumpridos pelas operadoras para atendimentos. Esse retorno, porém, aconteceu contra a vontade das operadoras. "O adiamento dos atendimentos havia gerado uma economia gigante para essas empresas, já que o uso de leitos e de serviços caiu", constata Navarrete.
Patrícia Cardoso, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Estado do Rio Janeiro, atuou fortemente para cobrar da ANS o retorno à normalidade. "Não recebemos na Defensoria reclamações de sobrecarga dos serviços privados que justificassem a manutenção da decisão. Tampouco nos chegaram notícias sobre a saturação dos hospitais privados em nenhum lugar do país. Além disso, naquele momento da pandemia já havia medidas de isolamento social muito diferentes em cada estado. Entendemos que cabia ao médico assistente de cada paciente definir se ele poderia ou não se expor ao risco de fazer uma cirurgia ou um exame", argumenta Cardoso, lembrando que os prestadores de serviços privados – hospitais, laboratórios e clínicas – também garantiam estar prontos para voltarem, sem superlotação.
SEM TESTES E SEM NEGOCIAÇÃO
Trinta e quatro por cento das reclamações são referentes à dificuldade de conseguir testes e tratamento para a Covid-19, segundo dados do portal da ANS. O que mais impressionou em relação à realização de testes foi que, em média, 90,15% das negativas foram indevidas, ou seja, não havia justificativa plausível. "A cobertura de testes na saúde suplementar deve seguir as diretrizes do rol de procedimentos da ANS, que requer apenas a prescrição médica", informa Navarrete.
Se a operadora não indicar ao consumidor um local para fazer o teste ou colocar empecilhos para a sua realização, o consumidor pode escolher um e solicitar reembolso. Contudo, precisa comunicar a empresa previamente por escrito. "A falta de testes – que também ocorre na rede pública – é um problema grave, pois não permite saber o real tamanho da pandemia", alerta a advogada do Idec.
Jefferson Moraes, um engenheiro eletricista que vive em Santos (SP) e também é associado do Idec, tem um plano de saúde coletivo por adesão. Sua demanda é muito simples: quer passar da modalidade intermediária para a básica, para reduzir o valor da mensalidade. No entanto, conseguir fazer valer esse direito está muito mais difícil do que ele imaginava. "Há dois meses entrei em contato com a administradora do plano solicitando a mudança pela primeira vez. Já pedi outras duas vezes e tenho sido informado de que posso fazer isso quando completar o aniversário do contrato, o que é falso", ele conta. A própria ANS confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que todo beneficiário pode mudar para categorias inferiores do plano, inclusive sem cumprir carências.
Moraes não está sozinho. Cerca de um quinto das reclamações mapeadas pelo Idec se referem a demandas não assistenciais, dentre elas, dificuldades para renegociar mensalidades. Como o não pagamento pode levar ao cancelamento do contrato, a inadimplência pouco cresceu, subindo de 12% em dezembro do ano passado para 16% em maio deste ano. Segundo Navarrete, os consumidores se esforçam muito para pagar os planos, com medo de perdê-los: "Eles deixam de pagar outras coisas para conseguir manter as mensalidades em dia", comenta ela. A pesquisadora acredita que os problemas com renegociação ainda devem se agravar. "Essas reclamações demoram um pouco para aparecerem porque há um prazo de 60 dias para quitar a dívida antes de o plano ser cortado. Possivelmente, a partir de agora, mais pessoas vão começar a ligar para as operadoras tentando renegociar as mensalidades e terão dificuldade, pois não há medida que as protejam", adianta.
PROTEÇÃO PARA QUEM?
A ANS disse ao Idec que tem tentado viabilizar "o equilíbrio do setor", de modo que "todos os atores (beneficiários, prestadores e operadoras) permaneçam no sistema durante a crise". Mas, na avaliação de Navarrete, as medidas anunciadas até o momento têm sido muito mais propícias aos planos. E apesar da situação econômica favorável às operadoras, elas não estão nem um pouco empenhadas em ajudar os consumidores. Em abril, a ANS decidiu permitir que as empresas do setor utilizassem recursos de seus fundos garantidores – da ordem de R$ 15 bilhões – no combate à pandemia, desde que não deixassem de atender a inadimplentes. Porém, apenas nove das 700 operadoras atuantes no Brasil aderiram ao termo de compromisso. As demais preferiram abrir mão da ajuda financeira para não terem de se comprometer a atender a quem perdeu o emprego ou teve a renda reduzida durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos.
Navarrete ressalta que há alguns projetos de lei em tramitação no Congresso para garantir proteção aos consumidores. Um deles é o PL no 1.542/2020, do senador Eduardo Braga, que dispõe sobre a suspensão dos reajustes de planos e seguros de saúde durante a pandemia e quer impedir o cancelamento dos planos por falta de pagamento. "As operadoras estão fazendo uma grande pressão para que esse projeto não passe", ela afirma. O texto foi aprovado pelo Senado e, até o fechamento desta edição, ainda não havia sido votado no plenário da Câmara.
Os maiores prejudicados devem ser os consumidores que têm planos individuais ou os chamados "falsos coletivos" (aqueles contratados por microempreendedores individuais para sua família). "Planos coletivos com mais de 30 consumidores possuem contrato sem carência. Quando a economia se recuperar e os empregos forem restabelecidos, trabalhadores recontratados poderão rapidamente voltar a ter acesso aos serviços do plano. Nos demais casos, não. Quem tem um plano coletivo pequeno, familiar, e perder o contrato agora, vai ter de cumprir carência quando puder pagar um plano novamente", explica Matheus Zuliane Falcão, analista do programa de Saúde do Idec. E completa: "No caso dos planos individuais é ainda pior. Sabemos que essa modalidade é cada vez mais rara, com oferta escassa e preços elevados. Quem perder um plano individual agora tem poucas chances de conseguir contratá-lo novamente no futuro".
"Os primeiros a perderem seus planos serão os idosos, cujas mensalidades são mais altas", prevê Navarrete. Trata-se justamente do grupo que as operadoras menos se interessam em manter, já que utilizam mais os serviços. "É muito triste, mas é provável que as operadoras saiam dessa crise melhores do que entraram", ela lamenta.