Internet essencial
Quarentena evidencia problemas no acesso à rede mundial de computadores. Para o Idec, promover o direito de todos a esse serviço deve ser prioridade
Crianças em casa, trabalho remoto, comércio parcialmente fechado, atividades culturais suspensas, redução da circulação de transportes públicos. Essa é a nova realidade brasileira após o Governo Federal, estados e municípios anunciarem, em meados de março, uma série de ações para conter o avanço da Covid-19. E todo mundo foi afetado de alguma forma. Ter mais gente em casa fez com que o consumo de internet disparasse. Conversamos com duas mulheres para entender o impacto do isolamento social no consumo da internet: uma vive no Rio de Janeiro (RJ), e a outra, na zona rural de São José do Vale do Rio Preto, no interior do Rio de Janeiro. Ambas estão na casa dos 30 anos, têm filhos de cinco, enfrentam dificuldades para se adaptar à nova rotina e viram o uso doméstico da internet assumir papel central em suas vidas. Mas, quando se trata da qualidade do acesso à rede, as diferenças entre elas são gritantes.
Como em mais da metade dos domicílios brasileiros, na casa da produtora rural Maiana Tavares não há internet de banda larga fixa. A antena instalada no quintal capta o sinal de uma torre de telefonia móvel localizada a alguns quilômetros. Tavares dispõe de um plano controle com um pacote mensal de dados de apenas 12 gigabytes (para se ter uma ideia, assistir a vídeos consome até três gigas por hora). Durante o isolamento, é ainda mais difícil não esgotá-lo. "Além de ter de resolver tudo online, dependo exclusivamente da internet para me informar sobre a pandemia e para me comunicar com amigos e familiares. Além disso, para conseguir trabalhar eu acabo liberando mais o acesso para o meu filho. Posso dizer que meu consumo diário dobrou", ela conta.
Já a jornalista Raquel Júnia usa internet fixa (via cabo) e depende de uma boa conexão para trabalhar: "Não conseguiria fazer nada sem internet", resume ela, que passa pelo menos seis horas por dia online só no trabalho. Seu marido, que é advogado, também passou a usar a internet em home office. Além disso, o filho precisa realizar atividades escolares. A família nem sabe mensurar o aumento do consumo com entretenimento. "Antes, só acessávamos a internet em casa à noite e de manhã cedo. Eram, quando muito, de três a quatro horas por dia. Agora, nem sei", compara Júnia. Como o plano contratado permite acesso ilimitado e seu salário não foi alterado, ela ainda não teve grandes problemas, exceto com a lentidão em alguns momentos.
QUESTÃO DE INFRAESTRUTURA
O efeito do isolamento social no uso da internet ficou evidente muito rápido e foi mostrado por reportagens publicadas em diversos veículos, que apontaram o aumento do tráfego. Segundo a assessoria de imprensa da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), "o setor fez ampliações de capacidade de suas redes" e "houve ações do setor de internet, dos maiores provedores de conteúdo, reduzindo a resolução de vídeos e, consequentemente, o tráfego agregado", para evitar instabilidades.
De acordo com Flávia Lefèvre, advogada e integrante do Coletivo Intervozes – que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil –, a infraestrutura das telecomunicações é insuficiente para dar suporte às necessidades de toda a população, mesmo antes da pandemia. Ela nota que houve uma retração dos investimentos no setor a partir de 2014. "Mesmo quando os investimentos começaram a crescer levemente, em 2017, isso não aconteceu pela via do poder público, e sim por pequenos e médios provedores de serviços de conexão à internet, que passaram a atender à demanda em áreas menos atrativas para as grandes empresas", afirma Lefèvre. Desse modo, ela avalia que a estrutura física está longe do ideal. Hoje, apenas cerca de 30% das conexões de internet fixa no país se dão por fibra ótica, tecnologia mais moderna e que oferece conexão mais veloz do que os cabos. É uma tecnologia mal distribuída, condensada nos grandes centros. Além disso, para a população mais pobre, a internet fixa sequer é uma realidade: nas classes D e E, mais de 80% do acesso se dá por meio de telefone celular.
INTERNET COMO DIREITO
A pandemia está evidenciando que a internet precisa cada vez mais ser encarada como direito. De acordo com Diogo Moyses, líder do programa "Telecomunicações e Direitos Digitais" do Idec, o Instituto sempre defendeu que os serviços de telecomunicações são essenciais e, mais precisamente, que o acesso à internet deve estar no centro das políticas de universalização.
O próprio Marco Civil da Internet, aliás, diz que se trata de um direito essencial ao exercício da cidadania. "Uma série de direitos fundamentais se manifestam ou são exercidos a partir dele: liberdade de expressão, direito à informação, direito à cultura e ao lazer e direito ao trabalho", enumera Diogo, ressaltando que: "Se hoje o poder público nos orienta a ficar em casa, é preciso dar condições para isso, por exemplo, garantindo acesso ininterrupto aos serviços de telecomunicação".
Só que, ao contrário da telefonia fixa, a telefonia móvel e a internet nunca foram exploradas em regime público, ou seja, com as características administrativas de um serviço essencial, como água e energia elétrica. "Quando um serviço é regulado pela lógica da universalização, o Estado precisa se responsabilizar pelo provimento caso as empresas não deem conta, garantindo que aquele serviço não vai ser interrompido", defende Lefèvre. Mas isso não acontece na prática. Um dos resultados é que na crise atual temos toda a população mais dependente da internet, mas parte considerável dela tem seus direitos tolhidos devido à insuficiência do acesso. É o caso do filho de Tavares, que está no último ano da Educação Infantil em uma escola pública. "Na série dele ainda não há atividades online, e acho até bom que seja assim, porque vários alunos seriam excluídos. Já as turmas avançadas têm aulas à distância, mas é muito complicado. Aqui na região, a maioria das famílias só tem internet no celular, quando tem. Muitos estão com dificuldade para comprar alimentos básicos, então não têm a menor condição de se preocuparem em manter o pagamento da internet, menos ainda em contratar planos maiores para dar conta disso", reflete a produtora rural.
Tavares acredita que, em breve, ela também terá dificuldades para pagar as faturas: "A conta de luz já está atrasada". De fato, problemas financeiros têm se espalhado pelo país tão rapidamente quanto o próprio vírus, e os primeiros a sentir isso são os trabalhadores informais. Nem o auxílio de R$ 600 aprovado pelo Governo será suficiente para preencher os buracos causados pelo coronavírus.
LUTANDO PELOS CONSUMIDORES
Para evitar que os consumidores fossem prejudicados, as organizações da sociedade civil começaram a agir cedo. O Idec solicitou à Anatel e ao SindiTelebrasil (sindicato patronal das empresas de telecomunicações) medidas como a não suspensão dos serviços de internet por falta de pagamento e a ampliação das franquias de dados na telefonia móvel sem custos adicionais. Em relação à internet móvel, foi pedido que não houvesse bloqueio, mas apenas redução da velocidade quando os dados chegassem ao fim. Atualmente, quando o pacote contratado se esgota, o usuário segue com acesso apenas a alguns aplicativos, como WhatsApp e Facebook – prática conhecida como zero rating. Na mesma linha, o Intervozes formalizou um pedido à Anatel para que, ao menos por 90 dias, fossem proibidas a suspensão de serviços e a cobrança de excedente quando a franquia acaba.
No entanto, até a data do fechamento desta edição, nada havia sido feito. Segundo a assessoria de imprensa da Anatel, não houve mudanças nas regras que disciplinam a suspensão do serviço por inadimplência e não haverá alterações quanto à expansão da franquia na internet móvel. As operadoras apenas adequaram os mecanismos de pagamento das faturas, e as grandes empresas vão parcelar dívidas em até 10 vezes e postergar os vencimentos em 15 dias.
Para Moyses, as medidas da Anatel são insuficientes: "Há certo receio de que garantir que os serviços não sejam cortados incentive a inadimplência e estimule uma quebradeira do setor. Mas isso não justifica a inércia do governo". Ele deixa claro que as entidades não propuseram anistia, o que poderia prejudicar, sobretudo, as empresas menores. A ideia é apenas manter os serviços durante a pandemia, renegociando as dívidas dos consumidores após esse período. "Se o problema está no fluxo de caixa das operadoras, ele deve ser endereçado ao governo, pois é ele quem precisa garantir a continuidade do serviço. É para isso que o Estado existe. O que não pode é o cidadão ficar sem acesso à internet no momento em que mais precisa", finaliza.