Pensando sobre o isolamento
MARIO SÉRGIO CORTELLA é filósofo, educador, palestrante e autor de vários livros. Foi Secretário Municipal da Educação, em São Paulo (SP), entre 1992 e 1993, e membro do Conselho Científico da Educação Básica da Capes/MEC de 2008 a 2010.
O novo coronavírus fez muita gente refletir sobre o sentido da vida e suas prioridades. Também incentivou muitas pessoas a mudar hábitos, comportamentos e opiniões. Que o mundo será diferente quando tudo isso acabar não há dúvidas. Só não sabemos como será esse futuro. Para contribuir com nossas reflexões, entrevistamos Mario Sérgio Cortella, um dos maiores pensadores brasileiros contemporâneos. Com seu estilo peculiar, ele discorreu sobre como essa crise mundial pode influenciar as relações interpessoais e trabalhistas; o consumo; os valores pessoais e até a polaridade política que vemos hoje no Brasil. Por conta do isolamento social, precisamos enviar as perguntas a ele por e-mail. As respostas você lê a seguir:
Estamos vivendo uma situação inédita. Que mudanças ela provocará no mundo?
Mario Sérgio Cortella: Em Filosofia, sempre lembramos que "quem menos sabe sobre a água é o peixe", isto é, mergulhado no meio que o envolve, ele não tem o distanciamento necessário para uma avaliação mais precisa. Por isso, como estamos ainda em meio ao redemoinho que nos surpreendeu e por ser esta uma situação inédita, não é possível fazer antecipações.
Qual o reflexo dessa pandemia na ciência, nas artes e na valorização do conhecimento?
MSC: Dada a urgência de soluções que permitam, de fato, enfrentar a pandemia (sem "achologia"), tem havido, em muitos países, a valorização da ciência como um dos caminhos mais potentes para enfrentar danos coletivos. Também a arte e o conhecimento acabam sendo indiretamente favorecidos, já que o tempo antes ocupado, agora pode ser aproveitado, virtualmente, para acessar conteúdos artísticos e cognitivos que eram deixados em plano secundário.
Que mudanças o senhor vê nas relações interpessoais?
MSC: É provável que a mudança mais significativa seja a retomada do desejo do encontro pessoal, antes considerado perturbador por alguns, devido ao excesso de demandas cotidianas que sugeriam algum momento de seletiva solidão. A carência compulsória gera a percepção da ausência e, daí, a intenção do reencontro presencial.
E nas relações de trabalho?
MSC: Novos ordenamentos na atividade laboral, especialmente o antigo "teletrabalho", estão trazendo duas consequências díspares nos empregos formais: a primeira é a sensação de que conseguimos cumprir parte das nossas obrigações, como reuniões, projetos e comandos, sem a presença literal na empresa; a segunda é que perdemos um pouco o limite dos horários e acabamos por ficar mais tempo "no serviço" quando estamos em casa. O equilíbrio virá quando tivermos maior clareza das próximas etapas.
A situação pela qual o mundo está passando é uma oportunidade para os cidadãos praticarem o que o senhor chama de humildade intelectual?
MSC: Sem dúvida! Em larga escala, e por sofrimento intenso, estamos aprendendo que qualquer antropolatria, ou seja, a adoração do que é humano, e nossa postura de destaque na natureza são tolices! Nossa fragilidade face ao que não inventamos e ainda não dominamos é gritante, e só ultrapassaremos essa barreira com uma humildade que indique que não só não sabemos tudo como não podemos tudo.
O senhor acredita que o coronavírus provocará mudanças nos valores pessoais? Quais seriam elas?
MSC: Duas grandes mudanças podem advir se formos inteligentes: uma é que solidariedade não tem a ver com solidão na convivência e sim com solidez da convivência; a outra resulta, de modo simbólico, da tradução e adaptação que Chico Buarque fez do texto original de Os Saltimbancos: "Todos juntos somos fortes/Somos flecha e somos arco/Todos nós no mesmo barco/Não há nada pra temer/Ao meu lado/Há um amigo/que é preciso proteger".
No livro Qual a tua obra?, o senhor afirma que quem tem medo de mudança pode perder boas oportunidades na vida pessoal e profissional. A pandemia de coronavírus nos impôs algumas mudanças forçadas na rotina e no estilo de vida. Como essa situação extrema pode beneficiar as pessoas que têm medo de arriscar e sair da zona de conforto?
MSC: Cito Guimarães Rosa que, em uma epígrafe de Sagarana, registra o ensinamento caipira "sapo não pula por boniteza, porém por percisão". Assim, é a precisão e a carestia que farão com que se mude ou pereça.
Em outro trecho do livro, o senhor diz que devemos questionar o que precisamos ter, de fato, em termos de bens materiais. O senhor acha que pós-pandemia, haverá mudanças significativas na forma de as pessoas consumirem produtos?
MSC: Algumas pessoas, sim. Muita gente vem notando que abundância não é sinônimo de exagero nem de desperdício, mas de pertencimento consciente e parcimonioso, ainda mais quando notamos, pela redução da fartura da oferta, uma seletiva diminuição da demanda.
Ainda sobre Qual a tua obra?, há uma parte que trata de tomada de decisão: "A decisão sobre um dilema é sempre individual, mas as suas consequências podem afetar muitas outras pessoas". Desde que o coronavírus foi decretado como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), governantes e cidadãos do mundo todo precisaram tomar muitas decisões, desde "decretar estado de calamidade pública e pedir para a população ficar em casa" até "ir ou não fazer exercício na rua e correr o risco de levar o vírus pra casa e contaminar idosos". Considerando que as consequências de uma escolha podem ser gravíssimas, qual seria a melhor forma de tomar uma decisão importante?
MSC: Não tomar decisão solitariamente é a melhor maneira, ou seja, abrir a cabeça e consultar, inclusive, quem dela discorde, de modo a agregar mais densidade às certezas e incorporar as dúvidas responsáveis pelo polimento dessas certezas.
O senhor acha que a polaridade política que vivemos ultimamente será acirrada ou perderá força após a pandemia? Acredita que a pandemia é capaz de unir as pessoas com opiniões divergentes e aumentar o respeito ao próximo?
MSC: Quem é sectário, o era desde antes da pandemia. Quem não entende a diferença entre conflito (divergência para chegar a um consenso) e confronto (anulação da diversidade para dominação exclusiva) dificilmente mudará por força da pandemia. A única maneira de superar a polaridade é a persistência enérgica e pacífica daqueles que valorizam a paz política, o que significa haver divergências que não acabem em desinteligência.
Em Por que fazemos o que fazemos?, o senhor aborda a questão da motivação. Como ter motivação diante do cenário atual e das incertezas em relação ao futuro?
MSC: Exatamente aí é que reside a fonte possível de motivação: as incertezas! Elas permitem que possamos edificar o que Paulo Freire chamava de "inédito viável", isto é, o que é ainda não é (por isso inédito), mas que pode ser (por isso viável). Pior do que incertezas seria a certeza de que não há mais o que fazer para uma vida coletiva melhor.
Diante dessa pandemia, muitas pessoas se sentem infelizes por não poderem sair de casa, não estarem saudáveis, sentirem medo, verem seus planos serem adiados etc. É possível ser feliz diante de um cenário tão ruim? Como acordar feliz em meio a esse caos mundial?
MSC: Insisto sempre que uma pessoa que acorda feliz todos os dias, ainda mais nestes tempos tenebrosos, não é feliz, mas tonta! A felicidade não é contínua nem se apresenta possível por todo o tempo. Contudo, ela também não se ausenta o tempo todo. Por isso, quando os momentos felizes estiverem ao alcance, mesmo que sejam passageiros, devem ser afagados e fruídos, pois partirão, sem que possam retornar em outro tempo e de outro modo.
O tempo (ou melhor, a falta dele) é uma questão que acompanha muitas pessoas. Durante o isolamento social, algumas delas tiveram mais tempo livre. O senhor acredita que procrastinaremos menos?
MSC: Essa consequência atitudinal só virá de quem se dedicar a meditar sobre a experiência transcorrida e, a partir dela, estruturar trilhas de inovação na sua própria conduta, entre elas, saber separar o que é urgente do que é importante.
Até o momento, quais lições de vida o senhor tirou de tudo isso que estamos vivendo?
MSC: Uma lição que concentra todas: nossa arrogância como espécie, em meio a outras espécies e entre nós da mesma espécie, sofreu um abalo que nos fará pensar melhor antes de prosseguir do mesmo modo que vínhamos caminhando.