Nova forma de consumir
VICTOR DOERING XAVIER DA SILVA é bacharel em Direito (2014) e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito (2018) pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, onde desenvolve e coordena pesquisas sobre privacidade e proteção de dados, inteligência artificial, fake news e direito eleitoral.
Você está navegando na internet e, de repente, aparece "magicamente" um pop-up com a propaganda de um livro que você quer muito ler. Coincidência? Definitivamente não. Essa prática se chama "personalização de oferta": lojas virtuais coletam seus dados enquanto você visita o site delas e, após analisá-los, sabem o que oferecer e por quanto. Sim, produtos podem ser comercializados por preços diferentes de acordo com o perfil do consumidor. Embora seja considerada legal, a personalização de ofertas e preços precisa de regras para que os direitos dos consumidores sejam respeitados. Para entender melhor como essa tendência funciona, conversamos, por e-mail, com Victor Doering Xavier da Silva, um dos autores do estudo "Personalização de ofertas em marketplaces digitais – limites da defesa do consumidor, da proteção de dados e da defesa da concorrência", realizado no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito de São Paulo. Leia a seguir:
Em relação à década passada, quais as principais mudanças na forma como as pessoas consomem produtos e serviços?
Victor Doering Xavier da Silveira: É importante ressaltar o papel da Internet e das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), como big data, algoritmos e inteligência artificial, sobre as relações de consumo, que têm se tornado mais e mais digitalizadas. Por um lado, isso significa que o consumidor passou a ter maior capacidade de se informar, de encontrar produtos e comparar condições de compra; por outro, as empresas também passaram a ter meios muito mais eficazes de conhecer os consumidores, segmentar mercados e construir estratégias para atingir seu público-alvo.
Intermediários como Mercado Livre, Amazon, B2W, entre outros, passaram a ter um importante papel nas relações de consumo. Eles fazem muito mais do que centralizar os vendedores em um mesmo espaço: eles montam bases de dados, moldam ferramentas de busca, intermediam pagamentos e fornecem serviços de garantia e entrega, ou seja, têm um papel proativo no consumo de produtos.
O que é indústria 4.0?
VDXS: A chamada Indústria 4.0 (ou Quarta Revolução Industrial) é basicamente a emergência de novas tecnologias computacionais que têm transformado a informática tradicional e moldado algumas tendências das indústrias de ponta.
Hoje, há muito mais dados à disposição de negócios digitais do que antes, e eles têm sido empregados de formas variadas para informar as estratégias de mercado e lidar com consumidores. Dados são coletados o tempo todo e utilizados para direcionar anúncios de forma personalizada.
Do ponto de vista dos consumidores, o consumo torna-se mais prático, porque suas demandas são atendidas mais facilmente. Contudo, é preciso que haja transparência, porque as assimetrias informacionais entre consumidores e vendedores são grandes. Isso repercute na distribuição de direitos e obrigações jurídicas entre essas partes.
O que significa personalização de ofertas?
VDXS: Antes de se falar em "personalização de ofertas", é preciso explicar outro conceito, o de "diferenciação de preços", que consiste basicamente em cobrar mais ou menos dos consumidores com base no quanto eles estão dispostos a pagar pelo mesmo produto. Pode parecer estranho à primeira vista, mas a verdade é que convivemos normalmente com muitas práticas comerciais do gênero. Por exemplo, cinemas que oferecem meia-entrada a clientes de determinados bancos ou operadoras de telefonia, companhias aéreas que empregam programas de milhagem para fidelizar clientes e restaurantes que dão desconto a usuários de certos aplicativos.
A personalização de ofertas, por outro lado, é a diferenciação de preços feita por lojas virtuais a partir dos dados pessoais coletados, que permitem traçar um perfil do usuário (ou encaixá-lo em alguma categoria pré-estabelecida) e, a partir disso, atribuir o preço (personalização de preço) ou direcionar as buscas para ofertas específicas (personalização de buscas).
Se isso tudo parece abstrato demais, posso dar um exemplo: suponha que uma plataforma de e-commerce tenha acesso ao seu histórico de buscas e compras e descubra que você consome muitos itens caros. Ela pode deduzir que você está disposto a gastar bastante dinheiro com determinados produtos e, então, oferecê-los a você a preços altos.
À primeira vista, uma oferta personalizada de produtos e serviços parece interessante. Quais os pontos positivos e os negativos dessa prática?
VDXS: A vantagem é adaptar as ofertas às capacidades e necessidades dos consumidores, o que torna mais eficiente a alocação de recursos pelos e-commerces. Não há uma pesquisa empírica robusta sobre o tema, mas a teoria econômica aponta que, quando preços são formados de forma diferenciada, vendedores recebem incentivo econômico para cobrar menos de consumidores com menor disposição em pagar, como forma de atingir públicos que não seriam contemplados.
Por outro lado, há algumas preocupações relevantes do ponto vista da equidade: plataformas que personalizam suas ofertas podem definir preços com base em dados que não refletem realisticamente a sua disposição em pagar, impondo-lhes a condições menos vantajosas. Além disso, também existe preocupação com a privacidade e a proteção de dados pessoais de usuários, uma vez que a personalização de preços pode também ser feita sobre critérios ilegais ou abusivos, o que a tornaria discriminatória. Esses riscos suscitam discussões a respeito do modo de funcionamento dos algoritmos dessas plataformas e dos tipos de dado que elas podem tratar.
De que forma a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) protege os consumidores?
VDXS: Uma regulação adequada pode dar segurança jurídica às empresas e minimizar a violação de direitos. Por isso, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrará em vigor em agosto, vem em bom momento. Ela especifica os deveres dos controladores de dados em relação à transparência: o consumidor deve ser informado, no momento em que permite que seus dados sejam tratados (ao aceitar os termos de uso), que eles serão utilizados para personalizar as ofertas que ele visualizará na loja virtual. Além disso, ele poderá ter acesso, a qualquer momento, aos dados que foram coletados, e solicitar correção quando estiverem incorretos, incompletos ou desatualizados.
A LGPD também permite que o consumidor questione a empresa sobre os procedimentos e critérios empregados pela plataforma para utilizar seus dados para personalização, embora a própria lei preveja que alguns deles podem estar protegidos por segredo empresarial, o que impediria sua divulgação. Nessa hipótese, contudo, a futura Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) poderá solicitar o fornecimento dessas informações, sob sigilo, para averiguar se os direitos dos titulares estariam sendo ameaçados.
A LGPD também veda expressamente que dados sejam tratados para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos. Na prática, isso implica que plataformas digitais podem ser impedidas de personalizar ofertas com base em determinadas características. Os termos dessa proibição, no entanto, ainda não estão claros no texto da lei e dependem da formação de jurisprudência.
De que forma a personalização pode ser discriminatória?
VDXS: A LGPD veda de forma genérica "discriminações ilícitas ou abusivas", mas não dá um significado para essa expressão. É possível dizer que "discriminação ilícita" é aquela que é incompatível com a lei, e que "discriminação abusiva" é incompatível com a equidade entre controladores e titulares de dados, mas essa explicação parece um tanto tautológica. A questão é juridicamente complexa, mas também o é do ponto de vista moral. Assim, só teremos uma resposta quando a ANPD e o Poder Judiciário forem eventualmente provocados a interpretar a lei em casos concretos e formarem entendimentos mais consistentes sobre essas expressões.
No entanto, é possível dizer que algumas formas de personalização oferecem, ao menos em tese, maior risco de discriminação indevida. Por exemplo, as que são feitas com base em dados sensíveis de usuários, como raça ou etnia, gênero, religião, filiação política ou partidária etc.
Qual a jurisprudência quando se fala em personalização?
VDXS: A jurisprudência sobre diferenciação de preços e sobre personalização de ofertas é bastante escassa e contraditória. No Judiciário, é possível encontrar tanto decisões ultrarrestritivas como permissivas, e até o momento não há orientação vinculante de tribunais superiores sobre como julgar casos do tipo. Ou seja, não há um posicionamento claro sobre o que empresas podem ou não fazer em termos de personalização de ofertas. A prática não é proibida (o que é positivo), mas também não há parâmetros para se deduzir quando ela pode ser considerada abusiva (o que é negativo).
O que é importante para a regulamentação do tema?
VDXS: Em primeiro lugar, é necessário que os órgãos competentes, tanto em nível judicial como regulatório, estejam cientes da complexidade do tema. Isso exige não só preparação do ponto de vista teórico, mas também informação do ponto de vista empírico: há poucos dados sobre personalização de ofertas em mercados estrangeiros, e praticamente nada no Brasil. Dessa forma, entendo que tanto o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor [órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública] quanto a futura ANPD fariam muito bem em conduzir estudos para compreender os efeitos concretos da prática sobre o bem-estar social de consumidores bem como os riscos que ela gera à privacidade, antes de se estabelecer uma regulação específica. Também são bem-vindas audiências e consultas públicas.
Feito isso, acredito que há três frentes nas quais uma eventual regulação deve trabalhar. A primeira, evidentemente, é a transparência, principalmente em relação ao esclarecimento sobre quais informações as plataformas digitais são obrigadas a fornecer aos usuários. A segunda é em relação às prerrogativas de consumidores nesse processo, em especial no que se refere ao exercício de direitos de Opt In e Opt Out. Finalmente, é preciso haver orientação sobre quais tipos de personalização podem ser consideradas discriminações ilícitas ou abusivas nos termos da LGPD.
Como esse tema vem sendo tratado em outros países?
VDXS: Em geral, a questão tem se mostrado pouco regulada não só no Brasil, mas no mundo. Órgãos como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Comissão Europeia e o antigo Office for Fair Trading (OFT) do Reino Unido (substituído pela Competition and Markets Authority) tem se debruçado sobre a questão por três vieses: a defesa do consumidor, o direito antitruste e a proteção de dados pessoais. Parece haver um consenso de que a personalização é uma prática lícita e com efeitos potencialmente benéficos ao funcionamento dos mercados digitais, mas que possui riscos potenciais que podem ser mitigados a partir de regulações específicas.
Nenhum país proíbe a prática, embora muitos deles tenham legislações que impedem determinados tipos de discriminação: há jurisprudência estrangeira que considera ilícita a diferenciação de preços feita com base nas chamadas categorias protegidas (raça e etnia, gênero, religião etc.) ou que exige justificativa para que seja considerada lícita.
A União Europeia proíbe a personalização de ofertas com base na localização de usuários de diferentes países do bloco, mas isso se dá para garantir a integração do Mercado Comum Europeu e não porque a prática seria abusiva. Assim, os exemplos estrangeiros nos incentivam a buscar conhecer melhor o tema, mas não nos dão direções muito claras sobre como regulá-lo. Estamos todos mais ou menos no mesmo lugar.