Animais bem tratados
De acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira, cerca de 30 milhões de brasileiros não comem nenhum tipo de carne. Contudo, os "carnívoros" ainda são maioria no país em que qualquer dia é dia para fazer um churrasco com amigos e familiares. Mas você já parou para pensar se o animal que você come – seja ele vaca, porco, frango ou peixe – foi bem tratado até ser abatido? Essa é uma preocupação que vem crescendo. Por isso, conversamos com José Rodolfo Panim Ciocca, da World Animal Protection (Proteção Animal Mundial), entidade criada para defender o bem-estar animal. Ela trabalha no mundo todo – junto a governos, produtores e consumidores –, para convencê-los de que criar animais para consumo de forma mais humanitária – sem estresse e sofrimento – é bom não somente para eles, mas também para o meio ambiente, o próprio negócio e a sociedade em geral.
JOSÉ RODOLFO PANIM CIOCCA é zootecnista e gerente de agropecuária sustentável da World Animal Protection.
A World Animal Protection (Proteção Animal Mundial) defende o bem-estar animal. O que isso significa exatamente?
José Rodolfo Panim Ciocca: O bem-estar dos animais é um tema amplo que deve sempre ser analisado de forma holística. Ele está relacionado a como o animal se adapta ao meio em que está inserido, ou seja, se ele tem a capacidade de expressar os comportamentos normais da espécie e, assim, satisfazer suas necessidades biológicas e psicológicas. Gosto muito da definição de bem-estar que considera o funcionamento biológico (tudo o que envolve as questões produtivas e a saúde), a vida natural (a importância de expressar os comportamentos naturais da espécie, como empoleirar, ciscar, forragear etc.) e o estado afetivo/mental (o estado psicológico).
Quais são as práticas comuns em sistemas industriais de produção intensiva de vacas, galinhas, frangos, porcos e peixes que reduzem a expectativa de vida desses animais?
JRPC: Qualquer sistema de produção que prive o animal de espaço adequado e de luz natural, o coloque em ambientes onde ele não consegue expressar os comportamentos básicos da espécie (muitos só têm o bebedouro e o comedouro) e o submeta a procedimentos dolorosos, como mutilações, deve ser evitado. Os animais precisam ser respeitados, e suas necessidades, atendidas, a fim de terem uma boa qualidade de vida. Animais criados nesses sistemas industriais intensivos, principalmente suínos e vacas leiteiras, sofrem estresse crônico e, portanto, vivem menos, estando mais susceptíveis a doenças e até à morte. Além de todo o sofrimento gerado aos animais, há consequências ao meio ambiente, aos consumidores e ao próprio negócio.
Como os maus tratos a animais de fazenda afetam a nossa saúde e o meio ambiente?
JRPC: O conceito de "um bem-estar" (one welfare) reconhece a relação entre o bem-estar animal, o bem-estar humano e o meio ambiente, para apoiar o desenvolvimento sustentável global. É a visão holística da relação dos animais e do homem com o meio ambiente, que ajuda a promover objetivos globais fundamentais, como a segurança alimentar, a prevenção de epidemias e a manutenção de nossos recursos naturais. O conceito de "um bem-estar" amplia a abordagem do conceito de "uma saúde" (one health).
Podemos dizer que um animal cujo bem-estar é comprometido tem uma imunidade mais baixa e está sujeito a doenças. E isso está diretamente relacionado à qualidade do produto e à necessidade do uso de antibióticos, que aumenta o risco de se criar bactérias multirresistentes.
Queremos que os consumidores entendam que a demanda excessiva por carne barata é imoral e prejudica a saúde de animais e pessoas. A mudança desse padrão beneficiará animais, seres humanos e meio ambiente.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) entende que a resistência bacteriana a antibióticos (superbactérias) será uma das principais causas de mortalidade em 2030. Qual é a relação disso com o bem-estar animal?
JRPC: Existe uma relação muito forte entre bactérias multirresistentes e o baixo nível de bem-estar em sistemas de produção industriais intensivos. Nesses ambientes, os animais sofrem estresse crônico e, por consequência, há queda acentuada na imunidade. Para manter os padrões de produção elevados, antibióticos são utilizados de forma indiscriminada, em baixas doses e de forma preventiva. Dessa forma, surgem bactérias multirresistentes, e um ciclo vicioso que afeta a saúde dos animais, dos seres humanos e do meio ambiente.
Segundo a OMS, em alguns países, 80% dos antibióticos são administrados em animais saudáveis nos sistemas de criação industrial intensivos para promover o crescimento. A Proteção Animal Mundial estima que o uso de 40% a 80% desses medicamentos em fazendas de países em desenvolvimento seja desnecessário ou questionável. E a tendência é que, até 2030, o uso aumente 67%.
Reconhecidas pela OMS, as bactérias multirresistentes são consideradas uma das maiores ameaças à saúde e ao desenvolvimento global. Quando consumidas por meio de alimentos podem causar infecções generalizadas, incluindo urinárias e pulmonares e, em alguns casos, levar a óbito. Anualmente, cerca de 700 mil pessoas morrem em virtude de infecções resistentes a esses remédios. Estima-se que até 2050 esse índice chegará a 10 milhões.
Qual a relação dos animais criados em fazendas com o efeito estufa?
JRPC: A contribuição da produção animal na emissão de gases do efeito estufa torna a atividade um dos principais vetores do aquecimento global. No Brasil, a situação se agrava com vastas áreas de floresta nativa sendo desmatadas tanto para a criação pecuária quanto para a agricultura voltada para a produção de ração animal (soja e milho).
Estudos ainda divergem muito sobre o real impacto. Mas já se sabe que a produção de soja e milho para alimentação de suínos e aves é um grande problema. Além disso, a produção de bovinos em áreas desmatadas também impacta.
Hoje, há grupos de estudos que trabalham com sistemas integrados de produção sustentável, nos quais a maior parte do carbono usado é resgatada para o próprio sistema. Contudo, ainda há um caminho longo para minimizar os impactos. O meio ambiente não pode sustentar os atuais níveis de produção de animais de fazenda. Precisamos de uma solução sustentável para as pessoas e para o planeta, que passe pela redução do consumo de carne, pelo empoderamento de alternativas, como os produtos plant-based [vegetais, principalmente orgânicos] e a carne celular, e pelas mudanças no sistema de produção que aumentem o bem-estar dos animais e a sustentabilidade da cadeia.
Por que empresas que trabalham com produtos de origem animal devem investir no bem-estar animal?
JRPC: Primeiramente, porque é o correto a se fazer. É nosso dever tratar bem os animais, pois eles são seres sencientes, ou seja, eles têm sensações e sentimentos, como medo, alegria e dor. Como essas empresas dependem dos animais para seus negócios, é negligente pensar apenas no lucro, colocando sua reputação em risco. Basta ver o impacto que escândalos envolvendo animais têm na mídia.
Segundo, porque a nova geração de consumidores tem exigido muito mais transparência com a forma como os animais são criados e abatidos. Os jovens estão dispostos, inclusive, a mudar seus hábitos de consumo quando veem que os animais não são criados de forma ética.
Por último, porque muitas vezes o bem-estar aumenta a produtividade, reduz perdas e, portanto, gera impacto econômico positivo.
Como o consumidor pode saber que a carne que consome é de um animal bem tratado?
JRPC: O primeiro passo é saber a origem do produto e se ele foi fiscalizado pelo serviço oficial. Ele pode ver na embalagem se há o selo do SIF (Serviço de Inspeção Federal), por exemplo.
O segundo passo é ler os rótulos, porque eles trazem muitas informações. Se estas forem questionáveis, é possível ligar para o SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente].
Porém, a única forma de garantir que o animal foi bem tratado ainda é por meio de certificações especificas, como os selos Certified Humane e Produtor do Bem. Hoje, é possível encontrar produtos, principalmente ovos e frango, com esses selos, que garantem que os animais foram criados em sistemas mais éticos e sustentáveis.
Ao apoiar produtores que adotam políticas de bem-estar animal em suas fazendas/granjas, o consumidor incentiva, indiretamente, as cadeias tradicionais a investir em mudanças, afinal, elas precisam se manter competitivas.
Como os brasileiros "carnívoros", que amam fazer churrasco, podem consumir carne conscientemente, colaborando com o bem-estar animal?
JRPC: Os brasileiros não precisam abrir mão da proteína animal para ser um consumidor consciente. O consumo ético prega a ingestão ocasional de carne e peixes produzidos com bem-estar animal. É dar preferência a alimentos sazonais, produzidos localmente e com técnicas sustentáveis e se certificar de que a proteína tem origem ética e sustentável.
Como se dá o financiamento da produção de carne e ovos no Brasil atualmente? Como as instituições financeiras podem melhorar esse cenário?
JRPC: Quase não há incentivo financeiro a produções com altos níveis de bem-estar e mais difícil ainda para os pequenos produtores, devido ao alto valor das linhas de crédito. É importante que o sistema financeiro adapte-se aos novos consumidores beneficiando os que querem investir em bem-estar e limitando o crédito a produções industriais intensivas. Isso já tem se tornado uma realidade com o F.A.R.M.S Initiative – Padrões Mínimos Responsáveis para Animais de Produção. A iniciativa busca melhorias simples, mas eficazes e ambiciosas, respeitando a realidade de cada país. É uma forma que os bancos globais têm de encorajar seus clientes, principalmente grandes agroindústrias, a investirem em sistemas que prezem pelo bem-estar dos animais e que não sejam um risco à instituição financeira. Um exemplo é o Rabobank, que tem como compromisso incentivar todos os seus clientes a fazerem, até 2025, a transição para alojamentos sem gaiolas para galinhas poedeiras [destinada à produção de ovos] e alojamentos de grupos para porcas.
A Proteção Animal Mundial e o Idec são parceiros. Como pretendem atuar, juntos, em prol do bem-estar dos animais de fazenda?
JRPC: Temos muitos pontos em comum. A conscientização dos consumidores é um processo longo, porém necessário, pois a mudança provém de nossas exigências, e apenas pessoas informadas e conscientes podem fazer escolhas corretas. Acreditamos que esse possa ser um bom caminho a ser traçado conjuntamente. Ao mesmo tempo temos identificado outras sinergias que envolvem não apenas o tema "alimentação saudável", mas também o poder das instituições financeiras para liderarem essa mudança. Todos os participantes da cadeia devem estar alinhados para que a mudança seja progressiva e sólida.
Quando se fala em bem-estar animal, como o Brasil está em relação a outros países?
JRPC: O Brasil está em uma posição intermediária em relação a outros países, pois ainda foca muito em produzir a proteína animal mais barata do mundo. Mas a que custo? Será que essa forma de produzir é o que a sociedade atual quer? A vida de um animal não tem valor? Precisamos pensar melhor sobre esses aspectos. Isso provavelmente vem com o aumento da conscientização das pessoas, que passam a demandar sistemas de produção mais sustentáveis.
Em um estudo realizado em 2016 com o Instituto IPSOS constatamos que mais de dois terços da população brasileira não sabe a forma como os animais são criados. Há países nos quais os consumidores são mais conscientes. Mas estamos à frente de alguns países, principalmente dos em desenvolvimento, nos quais o nível de informação sobre o tema é inferior ao nosso.
Resumindo, acredito que o Brasil ainda está aquém da Europa (principalmente em relação à legislação), porém já tem se equiparado a países da América do Norte.
Quais países são bons exemplos? Por quê?
JRPC: A Inglaterra pode ser considerada o país premium em termos de bem-estar. O tema nasceu lá e, desde a década de 60, os consumidores questionam a origem dos produtos. A preocupação e o respeito aos animais de produção têm feito com que empresas assumam a liderança nas boas práticas de criação, e elas são apoiadas pelos demais membros da cadeia, por exemplo, as redes de supermercado. A mudança tem de ser feita por toda a cadeia produtiva para ser sustentável.