Sindemia Global
O mundo está enfrentando um dos principais desafios de nossa era: as mudanças climáticas podem acabar com o planeta se nada for feito urgentemente. Além disso, as pandemias de obesidade e desnutrição ameaçam a segurança alimentar. Combinadas, essas crises geram o que é chamado de sindemia global. Para combatê-la, é preciso reformular nossos sistemas de alimentação, agropecuária, transporte, mobilidade urbana e uso do solo. Também é fundamental reduzir a influência das indústrias no desenvolvimento de políticas públicas, para que os Estados consigam implementar políticas em prol da saúde, da equidade social e da sustentabilidade. Em agosto, o professor e pesquisador neozelandês Boyd Swinburn, um dos maiores defensores de um sistema alimentar justo, esteve no Brasil para o lançamento da versão em português do relatório The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition and Climate Change (A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas), elaborado pela Comissão The Lancet. Aproveitamos que ele passou um dia no Idec participando de uma série de reuniões para entrevistá-lo.
BOYD SWINBURN é professor de nutrição populacional e saúde global na Escola de Saúde da População da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e membro gestor da Comissão The Lancet. Ele realiza pesquisas sobre ações comunitárias e políticas para prevenir a obesidade infantil. Estabeleceu o primeiro Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Prevenção da Obesidade, na Universidade Deakin, em Melbourne (Austrália), e também contribuiu para mais de 30 consultas e relatórios da OMS sobre obesidade.
Qual o significado da expressão sindemia global?
Boyd Swinburn: Este é um termo relativamente novo e significa que duas ou mais doenças ou epidemias ocorrem juntas (em tempo e espaço), interagindo negativamente umas com as outras. E elas têm as mesmas causas. Esses são os critérios para "sindemia" (sinergia de epidemias). Essa palavra foi usada pela primeira vez para descrever a relação entre aids, hepatite C, uso de drogas etc. E, mais tarde, para descrever a relação entre desnutrição, obesidade e mudanças climáticas.
Qual a principal informação do relatório The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition and Climate Change, cuja versão em português (A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas) foi lançada em agosto?
BS: O que queremos com esse estudo é olhar para as causas comuns da desnutrição, da obesidade e das mudanças climáticas em vez de olhar para esses problemas separadamente. O Brasil foi o primeiro país a ter um guia para alimentação sustentável [Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde], mas ele precisa ser implementado, por exemplo, nas escolas, para combater a desnutrição e as mudanças climáticas. Também é preciso evoluir na questão da rotulagem nutricional frontal em alimentos embalados, para que o consumidor saiba o que está comprando e consumindo. Mas isso é um desafio, por conta de um sistema complexo que envolve questões políticas, entre outras. Quando se tenta fazer mudanças, algo te "puxa" para o status quo.
E há outros desafios?
BS: É uma questão difícil de resolver. Nós sabemos o que precisamos fazer, mas não como fazer. Precisamos vencer três problemas: 1. A oposição da indústria alimentícia para manter o status quo: essas empresas dizem o que políticos devem fazer e os "compram" com dinheiro, gerando conflito de interesses. Isso acontece principalmente em países corruptos, mas mesmo em países não corruptos, como a Nova Zelândia, a indústria de alimentos faz parte da sociedade e influencia a política; 2. A resistência dos governos para regular a taxação de alimentos. Eles não querem fazer isso para não brigar com a indústria; 3. Falta de esforço da sociedade civil pelos seus direitos: comida saudável nas escolas, rótulos de alimentos com informações claras etc.
Quanto tempo levaria para mudar a situação atual do planeta?
BS: Depende da pressão que for feita. De acordo com o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) levará 12 anos para superarmos as mudanças climáticas. Com base nisso, propomos que a nossa geração transforme o sistema alimentar atual para as futuras gerações (nossos filhos e netos). Esse é o desafio. Quem está no poder hoje precisa começar o processo de mudança no sistema alimentar com foco na saúde, na justiça e igualdade social, na sustentabilidade e na prosperidade econômica. Ou seja, temos muito trabalho pela frente.
No Brasil, temos uma grande desigualdade social, com pobres e ricos vivendo lado a lado em muitas cidades. Como resolver a questão da sindemia global considerando esse cenário?
BS: A desigualdade está crescendo em muitas sociedades, não só no Brasil, e isso faz parte do problema. Nós temos sistemas alimentares que se preocupam com o lucro sem se preocupar com o meio ambiente, a saúde dos cidadãos etc. Então, a igualdade social é uma das metas.
Como organizações como o Idec podem contribuir com a luta contra a sindemia global?
BS: O Idec e outras entidades que defendem os direitos dos consumidores são importantes para representar a sociedade civil na luta por um sistema alimentar saudável, por rótulos nutricionais na frente das embalagens que mostrem o quanto aquele produto é ou não saudável, pela proteção da Floresta Amazônica, pelo não uso de pesticidas etc. É preciso exigir políticas públicas, pois a indústria alimentícia não irá mudar se ela não for forçada a fazer isso. Esses movimentos trazem esperança. Precisamos disso para mudar a situação antes que a crise se agrave.
Existem países que implementaram, com sucesso, medidas contra a sindemia global?
BS: O Brasil e outros países reduziram os casos de desnutrição em seu território. Alguns países africanos estão lutando contra isso. Contudo, nenhum país resolveu essa epidemia. E os países ricos – grandes poluidores da atmosfera – são responsáveis pelas mudanças climáticas. Estes tiveram algum sucesso em relação à desnutrição. O Brasil é reconhecido globalmente por seu guia alimentar sustentável e pelos programas de alimentação saudável nas escolas. O Chile é um importante líder mundial quando o assunto é políticas alimentares (rotulagem, restrição de propaganda de alimentos não saudáveis para crianças, tributação etc.). Peru e México também são bons exemplos na América Latina, onde o trabalho da sociedade civil é forte. Países europeus, a Austrália e a Nova Zelândia poderiam fazer muito mais do que fazem. No Oriente Médio, as taxas de obesidade são altíssimas, assim como de desnutrição, estando os países dessa região nas últimas posições [no ranking mundial]. Para piorar, eles não têm organizações fortes que lutem pelos direitos dos cidadãos.
Recente estudo do Idec em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) avaliou a diferença de preço entre alimentos saudáveis e não saudáveis. O resultado foi que os primeiros estão ficando mais caros, enquanto os segundos estão mais baratos. Qual seria a solução para esse problema?
BS: Se olharmos para a economia, os produtos não saudáveis são amplamente produzidos e subsidiados, para que os preços se mantenham baixos. Esse sistema não paga pelos danos que causa. Mas comida saudável pode se tornar mais acessível e mais barata se vegetais forem cultivados em sítios familiares, por exemplo.
Relatório da OMS em parceria com outras instituições revelou que, em 2018, havia cerca de 820 milhões de pessoas malnutridas e 830 milhões de obesos no mundo. De acordo com a ONU, 4 milhões de pessoas morrem em decorrência de obesidade anualmente. Já o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) acredita que esses números não vão mudar nos próximos seis anos. O que pode ser feito para reverter esse alarmante cenário?
BS: Precisamos de mudanças urgentemente. Desnutrição ainda é um problema gravíssimo no sudeste asiático e na África subsaariana. Eles deveriam seguir o exemplo de países que conseguiram combater a desnutrição, mas isso requer dinheiro. O Banco Mundial estima que sejam necessários cerca de 70 milhões de dólares nos próximos 10 anos para reduzir o número de pessoas malnutridas. É muito dinheiro, mas é necessário. No entanto, não é muito se considerarmos o quanto é gasto para subsidiar coisas erradas, como comidas não saudáveis: aproximadamente meio trilhão de dólares por ano.