Mês da mobilidade
Setembro é o mês da Mobilidade, um desafio cada vez maior nas grandes cidades do mundo. Tanto que está entre as principais pautas de trabalho do Idec e em constante discussão pelo poder público brasileiro. Uma das soluções é o estímulo à mobilidade ativa – caminhar, pedalar, patinar, andar de skate ou qualquer outro veículo não motorizado. É o que defende uma das mais engajadas cicloativistas do Brasil, Renata Falzoni. Conversamos com ela numa tarde quente de agosto no escritório do portal Bike Legal, idealizado por ela e localizado em São Paulo (SP). Ela chegou à entrevista pontualmente após pedalar 12 km. Ao final do bate-papo, fez questão de mostrar “algumas” (cerca de 40!) das suas muitas bikes. Saiba o que ela pensa sobre a mobilidade urbana brasileira, principalmente a de São Paulo, a seguir.
Você se locomove de bicicleta por São Paulo (SP). Conte-nos um pouco da sua experiência no dia a dia.
Renata Falzoni: A experiência de pedalar em São Paulo depende muito do trajeto que a pessoa faz. Se ela tem o privilégio de morar perto do trabalho e num bairro com infraestrutura, ela está bem. Mas há muita gente que precisa vencer obstáculos urbanos como o Cebolinha, o Cebolão, o Parque Dom Pedro, a Radial Leste e a Avenida dos Bandeirantes, por exemplo, que não têm solução orgânica para serem ultrapassados, como uma ponte.
Eu evito esses dissabores pedalando por trajetos sem obstáculos urbanos. Como a cidade foi construída para os carros e não para as pessoas, só algumas pontes têm faixa de pedestre na alça de acesso. Se não tem faixa, eu só consigo atravessar quando os carros estão parados por causa do trânsito. Se tivéssemos uma cidade desenhada para pedestres resolveria algumas necessidades dos ciclistas. Mas o contrário está acontecendo: soluções para ciclistas estão sendo amplamente usadas por pedestres. E não é falta de calçadas. É falta de conexão entre elas. Você tem uma calçada linda, uma avenida, e uma calçada linda do outro lado. Mas como você atravessa? Muitas pessoas reclamam dos ciclistas nas calçadas e dos pedestres nas ciclovias, mas ninguém está lá porque quer, mas pela falta de opção.
O que mudou de quando você começou a usar a bicicleta como meio de transporte, em 1976, para os dias atuais?
RF: Não havia radares e o número de mortes era mais alto. Quando Jânio Quadros era o prefeito de São Paulo, na década de 1980, morriam oito pessoas por dia no trânsito, por conta da alta velocidade nas vias, dos bêbados etc. Hoje, esse número caiu pra três, o que ainda é um absurdo. Então, houve melhorias. Mas por outro lado os carros eram mais leves, mais baixos, os motoristas andavam com a janela aberta, não tinha película escurecedora. Quem andava de bicicleta olhava no retrovisor esquerdo do carro e via o motorista, tinha olho no olho, comunicação entre pessoas. Hoje, enquanto eu pedalo, eu me comunico com carros e desejo fortemente que os motoristas estejam me vendo.
Existe alguma cidade no mundo que pode ser considerada um bom exemplo de mobilidade urbana?
RF: O Japão tem, no país inteiro, solução para todas as formas de locomoção. A primeira vez que pedalei lá, em 2002, eu pirei, porque percebi que equidade significa desenhar a cidade para todo mundo. Eu chegava num viaduto enorme e pensava: “como vou atravessar?”, daí via a sinalização para ciclistas e pedestres. E todas as calçadas – que são espaços sagrados – têm ciclovias. O respeito pelo espaço público é cultural.
A solução no Brasil, então, seria redesenhar as cidades?
RF: Totalmente. E com foco no “visão zero”. Para acabar com as mortes no trânsito, a Suécia criou, em 1997, um conceito batizado de “visão zero”, ou seja, nenhuma morte no trânsito é tolerável. Eles partem do princípio de que não há justificativa para mortes ou lesões e de que se há ser humano envolvido pode haver erro humano e transgressão. Mas eles não colocam a culpa no buraco, no motorista, no semáforo desligado. A responsabilidade é do sistema – dos projetistas e gestores, incluindo os projetistas dos veículos.
No “visão zero”, a lição número 1 é reduzir a velocidade nas vias, porque está mais que provado que uma pessoa atropelada por um carro a 60 km/h irá morrer, a 50 km/h tem 5% de chance de sobreviver, a 40 km/h a chance sobe para 60% e a 30 km/h o motorista consegue frear antes e não há colisão. Mas não basta colocar a placa com limite de velocidade se o desenho das vias permite andar mais rápido. É preciso desenhar as vias de forma que as travessias sejam mais curtas, que o motorista tenha de reduzir a velocidade para virar à direita etc.
Hoje, na Suécia e em outros países desenvolvidos, de 100 óbitos no trânsito, 33 são pedestres, 33 são ciclistas e 33 são motoristas. No Brasil, a cada 100 que morrem, 12 estavam em carro, o resto a pé ou em moto. Só com o redesenho será possível promover a equidade. Não podemos ter cidades em que 80% do espaço público é reservado para carros circularem ou estacionarem, sendo que 33% dos deslocamentos são feitos a pé e 33% por pessoas que vão a pé até o transporte público. Além do redesenho, precisamos de políticas públicas para restringir o uso de veículos individuais.
E qual foi o melhor lugar onde você já pedalou no Brasil?
RF: Tem muitos lugares interessantes, mas eu diria Afuá, no Pará, onde não passa nem moto nem carro. Lá, o espaço público é tão igual que uma bicicleta de R$ 20 mil não é boa, a boa é a de R$ 200. As crianças pedalam levando outras três na garupa sem as mães se preocuparem que elas podem ser atropeladas. E o modelo existente em Afuá pode ser aplicado em qualquer lugar: rotas para ciclistas e pedestres, incluindo crianças e idosos, livres de qualquer tipo de veículo motorizado.
Em São Paulo, por exemplo, deveria haver espaços onde carros não entram. E pode ter certeza de que essas áreas seriam valorizadas. Mas para que isso aconteça, a sociedade precisa entender que isso é bom para ela. Ou seja, é preciso aceitar que os carros individuais no espaço público não fazem mais sentido. Quando você tem uma política pública que faz as contas corretas, de quantas pessoas estão no SUS por causa de acidentes de trânsito ou por conta da poluição, quanto custa para remendar as ruas ou para o bombeiro socorrer uma pessoa que faleceu no hospital etc., percebe-se que o subsídio para carros é muito alto, daria para construir muitas linhas de metrô.
Mas convencer a população acostumada a usar carro de que eles são prejudiciais não é complicado?
RF: Dá para mudar. Quem tem direito de questionar não é a classe média que tem ônibus ou metrô na porta de casa, trabalha perto de onde mora a e não precisa chegar muito cedo ao escritório. Esse grupo reclama do transporte público, mas são os mais beneficiados. É escandaloso usar o carro pra um percurso de 5 km ou 6 km.
Quem tem direito de reivindicar a falta de infraestrutura? Quem está na periferia fazendo viagem de 30 km ou 40 km. Para esse pessoal o paradigma do carro é real. A infraestrutura e o planejamento urbano aprovado - que seria parte da solução – não resolvem o problema. O que resolve é ter emprego na periferia ou moradia no centro, além de trajeto cicloviário, para que essas pessoas possam gozar do direito de morar perto do trabalho. Essas pessoas, sim, precisam de carro. Mas quem reclama e força a barra pra não ter ciclovia é quem não precisa.
22 de setembro é o Dia Mundial sem Carro. Você acredita que esse tipo de iniciativa ajuda a resolver o problema da mobilidade? Ou esse não é o caminho?
RF: Sim, esse é o caminho. Essa data, que começou há uns 30 anos, catapulta outros eventos. Antigamente, todas as atividades relacionadas à mobilidade aconteciam em setembro [o Mês da Mobilidade]. Este ano, a Rede Nossa São Paulo divulgou, em agosto, a semana do caminhar. E por conta disso eu fui a pé para a Rádio CBN. Esse tipo de iniciativa consegue atingir os cidadãos, especialmente quando se tem todo um sistema de apoio, não só o poder público.
A primeira vez que eu filmei o Dia Mundial sem carro em São Paulo, em 2002, tinha dez pessoas. Em 2004, nós fomos até a Prefeitura e eles fecharam a porta como se nós fôssemos bandidos. O Dia Mundial sem Carro era tratado como uma manifestação indesejada. Mas isso foi mudando lentamente.
O 22 de setembro é importante porque ele se desmembra em outras ações, como o Dia do Pedestre [8 de agosto], criado por conta da foto tirada por Iain MacMillan [que clicou os Beatles atravessando a rua Abbey, em Londres]. Isso é maravilhoso!
Em 27 de setembro comemora-se o Dia do Idoso. Os direitos de quem tem mais de 60 anos têm sido respeitados nos transportes em São Paulo?
RF: Não, e posso dizer porque tenho 65 anos. Enquanto o secretário de transportes Sergio Avelleda estava atuando, ele cobrava dos motoristas que não dirigissem de forma bruta. Agora isso acabou. Eu ando muito de transporte público e é absurdo o modo como os condutores dirigem. O único ponto positivo é não pagarmos tarifa.
O que as cidades ganham com mais pedestres e ciclistas?
RF: Todos ganham. Mais pedestres e mais ciclistas, além de transporte público de qualidade, significa melhor qualidade de vida para todos, inclusive para quem prefere ficar parado em congestionamento, pois o trânsito ficará mais fluido. Haverá menos poluição, menos mortes no trânsito e mães mais tranquilas quando seus filhos saírem na rua. Quem mais vai ganhar serão as mulheres, as crianças, os idosos e as pessoas com deficiência. Ou seja, aqueles que não estão nas ruas hoje. Parece que temos poucos cadeirantes em São Paulo, mas é porque eles estão em casa.
Existem projetos para quem anda a pé em São Paulo?
RF: Se o [Bruno] Covas fizer o que está prometendo [a reforma das calçadas], ele gastará mais com a mobilidade ativa combinada com o transporte público do que com o próprio transporte público. Eu, como cidadã, quero aplaudir, não um partido, mas a política pública emplacada. É muito importante a gente “despartidarizar” a questão da mobilidade.
O compartilhamento de bicicletas por aplicativo é uma boa ferramenta para as mudanças necessárias na mobilidade das cidades?
RF: As bicicletas compartilhadas são como asas para os cidadãos evitarem o transporte público ou chegarem até ele. Elas são um sucesso, porque em vez de as pessoas ficarem 40 minutos num ônibus, elas pedalam 15 minutos. Elas pagam mais, mas ganham tempo e ainda se divertem.
Atualmente, patinetes passaram a ser alternativa de transporte em grandes cidades do mundo, mas são polêmicas. Algumas cidades proibiram, outras criaram regras para o uso. Qual a sua opinião?
RF: As patinetes fazem parte da chamada micromobilidade [categoria que inclui veículos com menos de 500 kg, acionados por motor elétrico e utilizados como meio de transporte] e vieram para ficar. Elas dependem da mesma infraestrutura que os ciclistas usam. E é lá mesmo que elas têm de andar.
Eu, como ciclista, não faço parte da micromobilidade. Eu divido a infraestrutura, eu junto forças para batalhar pela redução da velocidade dos carros para que patinetes possam andar na rua em vez de na calçada, mas vejo com cautela a junção da mobilidade ativa com a micromobilidade, pois são duas coisas diferentes. A mobilidade ativa precisa estar acima da micromobilidade, porque esta só existe com motor, o qual depende de bateria, que não sabemos como descartar. A mobilidade ativa tem que ser reverenciada, pois ciclistas e pedestres não poluem.
Os carros elétricos são um avanço ou uma estagnação se considerarmos uma mobilidade mais humana, inclusiva e sustentável?
RF: Eles são melhores do que os tradicionais. Contudo, não podemos deixar de questionar para onde vão as baterias e de onde vem a eletricidade. O carro elétrico continua sendo pesado, volumoso e ocupando muito espaço com pouca eficiência. Ele polui menos, mas continua sendo carro.
Substituir vans, ônibus, carros de idosos e deficientes, ambulâncias, táxis e carros de aplicativo por modelos elétricos vai melhorar a qualidade do ar. No entanto, eles não vão resolver o problema da mobilidade urbana individual.