Ligações que perturbam
Idec apresenta à Anatel e Senacom propostas para o setor de telemarketing, que precisa ser urgentemente regulado
Em São Paulo, uma mãe de dois filhos para suas atividades cinco vezes ao longo do dia para atender ao telefone. Todas as ligações eram de empresas oferecendo seus produtos e serviços; no Ceará, uma jornalista que trabalhou até tarde no sábado é acordada às 7 horas da manhã de um domingo pelo toque do seu celular – atendeu nervosa, achando que algo ruim acontecera, mas a ligação caiu assim que ela atendeu. E isso se repetiu durante todo o dia; em Porto Alegre, um homem cuja esposa está internada precisa atender ao telefone, pois pode ser alguma notícia do hospital, mas na maioria das vezes ouve uma gravação oferecendo de cápsulas de ômega 3 a tratamentos milagrosos para emagrecimento. Se você mora no Brasil e nunca passou por uma dessas situações pode se considerar muito sortudo, de verdade.
De acordo com pesquisa feita pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da plataforma Consumidor.gov.br, 92,5% dos cidadãos brasileiros recebem ligações indesejadas. Segundo relatos dos consumidores, quase metade dos telefonemas (48,7%) são realizados por um robô e, em 46,9% dos casos, um atendente oferta algum produto ou serviço. Outro dado alarmante é que 65% dos entrevistados contaram que recebem até 10 ligações por semana.
As chamadas feitas por robôs foram batizadas, nos Estados Unidos, de robocalls – elas são disparadas para muitos números simultaneamente e, quando, alguém atende, as demais caem. Segundo estudo feito pelo Truecaller – aplicativo de celular que identifica e registra ligações –, o Brasil é o país onde mais se registrou telefonemas considerados spam (telemarketing, trote ou golpe) em 2018, seguido pela Índia (que em 2017 liderou o ranking) e pelo Chile.
Para o Idec a situação é gravíssima. Entre os abusos mais comuns estão o excesso de ligações em um mesmo dia; ligações em dias e horários inapropriados; dificuldade para identificar a origem das chamadas; uso de números alternativos para inviabilizar o bloqueio das ligações; constrangimento perante a cobrança de dívidas; e assédio a idosos para a venda de produtos diversos, concessão ou portabilidade de empréstimos consignados; entre outros. “As ligações indesejadas de empresas de telemarketing prejudicam a qualidade de vida das pessoas. Além disso, muitas delas deixam de atender ao telefone, correndo o risco de perder alguma ligação realmente importante. Isso porque elas são feitas de números não identificados. E se você bloqueia um, as empresas ligam de outro”, declara Diogo Moyses, coordenador do programa “Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec”.
BLOQUEIO REGIONAL
Quem quiser bloquear ligações feitas por empresas de outros setores que não o de telecomunicações pode se cadastrar no site do Procon de seu estado. Contudo, apenas 20 unidades federativas permitem que seus cidadãos bloqueiem ligações segundo Elisa Leonel, da Anatel. São elas: Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe, Tocantins e o Distrito Federal. Também existem leis municipais no Rio de Janeiro (RJ), em Natal (RN), em Rondonópolis (MT) e em Belém (PA).
“Apesar de termos encontrado legislação que cria projetos de ‘não perturbe’ em todos esses locais, o serviço só funciona, efetivamente, em apenas 14 deles: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Natal (RN), Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo”, aponta Leonel. Segundo o Idec, contudo, nesses estados há inúmeros registros de desrespeito à legislação, e muitos consumidores continuam recebendo ligações mesmo após terem inscrito seu número de telefone nas listas de bloqueio.
NÃO ME PERTURBE
Desde 16 de julho, os cidadãos de todo o Brasil podem cadastrar seus números de telefone fixo e móvel no site “Não me Perturbe” – criado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – para não receber mais ligações de telemarketing de operadoras de telefonia móvel e fixa, TV por assinatura e internet. Até o dia 31 de julho, 1,56 milhão de usuários haviam cadastrado 1,70 milhão de números telefônicos (é permitido registrar mais de um número por CPF).
A iniciativa da Anatel veio em resposta à pressão do Idec, que havia enviado uma carta com propostas para coibir as ligações de telemarketing (veja quais são elas na página 19). Dessa forma, o Instituto considera a lista de bloqueio da Anatel positiva, mas insuficiente para combater práticas abusivas de empresas de telemarketing, já que só serve para ligações feitas por empresas de telecomunicações. Moyses lembra ainda que muitos consumidores nunca saberão da existência do “Não me Perturbe” e, se souberem, terão dificuldades para acessar o site e inscrever seus números de telefone. “Boa parte da população brasileira sequer tem acesso à internet”, ele diz. Assim, o Instituto defende o que é certo e justo de acordo com a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Estatuto do Idoso: “O consumidor precisa autorizar o recebimento de ligações, ou seja, a regra geral deve ser: não pode ligar”, afirma Moyses.
A própria Anatel concorda que a iniciativa não soluciona todos os problemas relativos ao telemarketing. “O ‘Não me Perturbe’ é apenas um primeiro passo que resolverá parte dos problemas no setor de telecomunicações, desde que as operadoras de telefonia façam a sua parte”, reconhece Elisa Leonel, superintendente de Relações com Consumidores da Anatel. Ela reforça que estão acompanhando a discussão internacional sobre medidas para evitar transtornos causados por ligações insistentes de telemarketing e estudando possíveis ferramentas regulatórias e tecnológicas que podem ser implantadas no Brasil.
Após a criação do “Não me Perturbe”, em 27 de junho, o Idec se reuniu com o Comitê de Defesa dos Usuários de Serviços de Telecomunicações (Cdust), da Anatel, e a Senacom a fim de discutir as propostas enviadas anteriormente. “A Anatel vê com bons olhos (e estimula) atitudes como a do Idec, que propôs algumas ações, além da regulação do setor. Mas vale ressaltar que algumas das propostas dependem de alteração da lei atual, o Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações (RGC). Dessa forma, por conta da urgência, a discussão sobre o tema será feita juntamente com a revisão do RGC”, informa Leonel. “Importante mencionar ainda que outras propostas apresentadas na carta do Idec extrapolam o setor de telecomunicações, sendo importante o diálogo com outros atores/entidades”, ela complementa.
ÚNICA SOLUÇÃO
Para o Idec, os consumidores só terão paz quando o setor de telemarketing for regulado. Por isso, na reunião com o Cdust, o Instituto também defendeu a criação de uma regulação que abranja todos os setores, não só o de telecomunicações, e estabeleça sanções em caso de descumprimento por parte das empresas. Para Moyses, há duas opções: 1. Por meio de um decreto federal, como o Decreto do SAC, que regula as regras para o serviço de atendimento ao cliente; 2. Via projeto de lei, envolvendo os parlamentares.
Assim, o Idec defende que os consumidores tenham total poder para decidir se querem autorizar as empresas a ligarem para vender produtos ou serviços. “Nossa proposta é a única forma de se respeitar integralmente a legislação vigente, a LGPD, e acabar com o estorvo que são essas ligações indesejadas”, finaliza Moyses.
PROPOSTAS DO IDEC À ANATEL
Devem ser proibidas:
- Ligações para a oferta de produtos ou serviços sem autorização expressa do consumidor;
- Ligações automatizadas simultâneas (para vários consumidores) sem operadores de telemarketing;
- Ligações de números não identificados;
- Utilização de números alternativos caso o “principal” seja bloqueado;
- Ligações para idosos e beneficiários do INSS, para oferta de produtos e serviços, incluindo a portabilidade de crédito consignado.
Se o consumidor autorizar:
- O horário para a realização de chamadas deve ser restrito das 9h às 18h, de segunda à sexta-feira, e nunca em feriados;
- As ligações só podem ser realizadas, no máximo, duas vezes por dia, mesmo que elas não sejam atendidas ou sejam recusadas pelo consumidor;
- Ligações não completadas ou não ouvidas até o final – no caso de chamada automatizada –, só podem ser novamente realizadas após sete dias.
- Cada ligação realizada, automatizada ou não, deve ser acompanhada da possibilidade de cancelamento da autorização concedida. Além disso, tal autorização poderá ser anulada a qualquer momento por meio do Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), da ouvidoria ou de SMS enviado para a empresa;
- O contato por telefone, SMS e aplicativos para a cobrança de dívidas sempre deverá ser realizado por atendente que conheça os dados da dívida e possa esclarecer as dúvidas do consumidor. É vedado o uso de robôs ou de outras ferramentas eletrônicas que substituam ou retardem o contato pessoal;
- O contato para a cobrança de dívida, por qualquer meio, deverá ser direcionado exclusivamente ao devedor, sendo proibido ligar para terceiros, mesmo que estes tenham parentesco com o devedor;
- Em caso de oferta de serviços de uso contínuo (telefone, internet, luz, água ou gás), o consumidor só pode ser contatado, inclusive por robôs, se houver a opção de falar com um atendente a qualquer momento.