Internet: essencial, porém restrita
Usuários de telefonia móvel têm direito a navegar pela rede mundial de computadores mesmo depois de esgotada a franquia de dados. Mas as operadoras bloqueiam o acesso e praticam o zero rating, disponibilizando apenas alguns apps. O Idec é contra esse modelo.
O Marco Civil da Internet – MCI (Lei no 12.965/2014), que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, é claro ao determinar em seu artigo 7o que “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania” e que “a conexão da internet não pode ser suspensa, salvo por inadimplência do consumidor”. Contudo, o MCI não está sendo respeitado pelas operadoras de telefonia móvel, que têm como padrão o modelo de franquia, ou seja, por volume de dados. Dessa forma, quando a franquia contratada acaba, a internet é bloqueada, sendo possível acessar apenas alguns poucos aplicativos, geralmente WhatsApp e Facebook. Essa prática, de autorizar apenas o uso de determinados apps – que não são descontados da franquia – após o bloqueio da internet é chamada de zero rating. “Ao final da franquia, a empresa poderia reduzir a velocidade da conexão, mas jamais interromper a prestação do serviço, já que o MCI garante que ele seja continuado”, afirma Flávia Lefèvre Guimarães, associada do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
De acordo com a pesquisa do CGI.br – Cetic 2017, nas classes D e E, 83% dos usuários de Internet utilizam exclusivamente dispositivos móveis, e na classe C, 53%. “Temos, então, uma internet para os ricos e outra para os pobres, em descompasso com os objetivos do MCI, que é promover a inclusão digital e a democratização da comunicação” constata Guimarães. Outra pesquisa, a “Domésticas conectadas: acessos e usos de internet por trabalhadoras domésticas em São Paulo”, realizada pela organização InternetLab, corrobora essa percepção: 98% desse público navega na internet pelo celular. Além disso, 46% usam aplicativos que não são contabilizados no pacote de dados.
Assim, o Idec avaliou 45 planos de celular das operadoras Claro, Oi, Tim e Vivo. Destes, apenas dois da TIM (3G Controle) não trabalham com zero rating. Dentre os demais, 93% oferecem WhatsApp “gratuito”; 48%, Messenger; e 40%, Facebook. “O problema é que parte substancial da população está entrando no universo digital por meio das conexões móveis e, como mostram os dados, quem usa a internet no celular tem acesso mais limitado do que o de quem possui internet fixa em casa, pois essas pessoas podem navegar à vontade e utilizar a rede de uma forma mais orgânica, explorando toda a potencialidade da internet”, destaca Diogo Moyses, pesquisador e coordenador do programa Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec e responsável por este levantamento.
NEUTRALIDADE DA REDE DESRESPEITADA
A neutralidade da rede é um dos princípios presentes no MCI. A ideia é que os provedores de internet permitam o acesso a todos os sites e aplicativos com as mesmas condições de tráfego, sem bloqueio ou discriminação de conteúdo. Assim, garante-se uma internet aberta, plural e diversa, com acesso público e irrestrito. Mas não é o que acontece quando se pratica o modelo atual, de zero rating, porque quando a operadora limita a navegação depois de terminada a franquia a apenas certos apps, como Facebook e WhatsApp, ela está valorizando alguns conteúdos em detrimento de outros, e isso é ilegal. E também prejudicial ao consumidor, principalmente, para as pessoas mais pobres, que têm planos com franquias baixas. Estas têm acesso restrito à internet, acessando apenas o que a sua operadora permite que elas acessem, enquanto os mais ricos têm mais opções, desfrutando do direito à informação e ao conhecimento. “A partir do momento em a internet é bloqueada, o acesso a apenas determinadas aplicações é violação explícita à neutralidade da rede e, portanto, uma afronta ao princípio da internet livre e aberta consagrado na legislação brasileira”, argumenta Moyses.
USUÁRIOS DESINFORMADOS
Diogo Moyses, do Idec, acredita que o modelo pautado no zero rating favorece a disseminação da desinformação, ou seja, das fake news. “Quando um usuário tem sua franquia bloqueada e o seu acesso à internet reduzido a poucos aplicativos, se ele receber uma notícia pelo WhatsApp, ele não vai conseguir abrir o link enviado nem checar a informação em outros sites”, comenta o pesquisador. Além disso, quem tem plano de dados limitado não pode escolher o veículo de comunicação que quer acessar para se manter informado. “Isso é totalmente contra o que o Marco Civil da Internet estabelece”, ele declara.
O MODELO IDEAL
O Idec vem lutando para que as operadoras adotem o modelo baseado na velocidade de conexão, que é usado na internet fixa. “E enquanto o modelo de franquia existir, queremos que a velocidade seja reduzida em vez de a conexão bloqueada”, defende o pesquisador do Idec. A diferença de modelos se dá porque a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) proíbe o acesso por franquia pela rede fixa, mas permite franquia e tarifas diferenciadas (quanto menor a franquia, maior o preço cobrado por gigabyte), além do zero rating, pela rede móvel, penalizando justamente os consumidores de baixa renda, que navegam na internet principalmente pelo celular. “Que as empresas queiram lucrar sobre a escassez de infraestrutura, restringindo investimentos e conseguindo mais clientes é compreensível. Mas o que é difícil de aceitar é que a Anatel e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) fechem os olhos para as distorções ocorridas no mercado, em desacordo com direitos conquistados após a aprovação do MCI, com impactos negativos inclusive para a concorrência”, critica Guimarães.
Para a associada do Intervozes, para se conquistar o modelo ideal de internet, que respeite as regras do MCI, é preciso mobilizar as autoridades competentes, que têm estado pouco comprometidas em por em prática as garantias conquistadas com o Marco Civil. “Além disso, é preciso conscientizar os consumidores a respeito de seus direitos, para que lutem por eles nas esferas administrativa e judicial”, ela finaliza.