Ultra divulgados para crianças
Pesquisa do Idec mostra cenário preocupante na área de alimentos e bebidas: a cada dez comerciais de produtos ultraprocessados, seis usam técnicas abusivas para atingir o público infantojuvenil
Uma cena comum na rotina das famílias brasileiras é: as crianças assistem ao seu programa favorito na TV e, no intervalo, aparece uma sucessão de anúncios dos mais variados produtos usando personagens, atores-mirins, jingles apelativos e animações. Considerando esse fato, o Idec e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) decidiram fazer um estudo inédito: analisar o uso de técnicas abusivas em anúncios de alimentos e bebidas veiculados em canais abertos de televisão (veja como a pesquisa foi realizada no quadro ao lado/abaixo).
Os resultados não poderiam ser mais preocupantes. Das 858 peças publicitárias analisadas, 10,1% eram voltadas exclusivamente para o público infantojuvenil. Outros 75,4% miravam o público em geral, enquanto apenas 14,5% focavam os adultos. Ou seja, crianças e adolescentes eram alvo de 85% dos anúncios de alimentos. Isso já seria uma má notícia, mas ela fica pior: 90,8% das propagandas anunciavam ao menos um produto ultraprocessado. Os refrigerantes eram tema de 28,9% das peças publicitárias; 13,8% delas eram de fast-food; e 10%, de ultraprocessados à base de carne, como nuggets. E, do total de propagandas de ultraprocessados, 57,7% usavam algum tipo de estratégia abusiva para atingir crianças e adolescentes: personagens ou apresentadores infantis estavam em 14,1% delas, assim como desenhos e animações.
Além disso, quase todos os anúncios (97,6%) tinham mensagens que induziam os consumidores a fazer escolhas prejudiciais à saúde. A maioria (92,5%) tinha imagens aludindo ao consumo excessivo do produto e 22,6% ofereciam promoções ou brindes. Isso num cenário em que muitas evidências científicas apontam para a necessidade de reduzir a quantidade de ultraprocessados na dieta, já que a obesidade está relacionada a doenças crônicas não transmissíveis graves, como diabetes, pressão alta e alguns tipos de câncer. Pesquisas recentes também relacionaram o consumo de ultraprocessados ao ganho de peso, a doenças do coração e a mortes prematuras. “Já supúnhamos que havia uso disseminado de estratégias abusivas e marketing excessivo de ultraprocessados. Agora, sabemos exatamente o tamanho do problema e pretendemos continuar o monitoramento”, explica Rafael Claro, nutricionista, pesquisador da UFMG e um dos autores do estudo.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Durante oito dias não consecutivos de abril de 2018, escolhidos ao acaso (quatro em fins de semana e quatro em dias de semana), gravamos a programação das três emissoras da TV aberta com maior audiência: Globo, Record e SBT. Ao todo, foram 432 horas e 858 propagandas de alimentos e bebidas.
Essas peças publicitárias foram inseridas em um banco de dados com as principais informações a respeito de cada uma, como a categoria dos alimentos anunciados segundo a classificação NOVA (veja quadro na página 18) e o público-alvo (crianças, adultos ou público em geral).
Então, analisamos os comerciais tendo em vista o Código de Defesa do Consumidor e a Resolução no 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Esse estudo recebeu apoio financeiro do International Development Research Centre (IDRC).
Laís Amaral, nutricionista e pesquisadora do Idec
CONSUMIDORES IDEAIS (PARA A INDÚSTRIA)
Expor crianças a propagandas que usam imagens positivas a alimentos maléficos é extremamente prejudicial. “Uma criança que consome determinado produto desde o começo da sua vida acaba se tornando ‘consumidora fiel’, o que é interessante para as empresas”, afirma a nutricionista do Idec Laís Amaral, responsável pela pesquisa. Mas embora o estudo dê a impressão de que no Brasil a propaganda é livre para qualquer idade, a legislação brasileira é forte e protetiva.
Segundo Lívia Cattaruzzi, advogada do Instituto Alana, a proteção começa na própria Constituição Federal e também consta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. No mesmo ano, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu que qualquer publicidade deve ser veiculada de modo que os consumidores possam identificá-la fácil e imediatamente como tal – o que crianças não conseguem fazer. Determinou ainda que toda publicidade abusiva ou enganosa é proibida e definiu que se aproveitar da deficiência de julgamento da criança e induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial à saúde são características da publicidade abusiva.
Anos mais tarde, em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou a Resolução no 163, que detalha as técnicas abusivas voltadas para crianças e adolescentes: linguagem infantil; efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras com músicas infantis ou cantadas por crianças; representação de criança; pessoas ou celebridades que o público infantil gosta; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou animação; bonecos; promoção com distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis; e promoção com competições ou jogos.
“Com base em todas essas normas, entendemos que, na realidade, toda publicidade voltada para crianças é abusiva e, portanto, proibida no Brasil”, afirma a advogada do Alana. A indústria, por outro lado, pressiona para anunciar mais livremente e defende que cabe aos responsáveis pela criança controlar o consumo. “Por mais que possamos dialogar com as crianças, o impacto da publicidade é muito grande. Ao mesmo tempo, muitas famílias não têm informações necessárias sobre os produtos”, pontua Desireé Ruas, da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc) e do Movimento BH pela Infância. Nesse sentido, mesmo a atuação de organizações em defesa da infância é difícil: “Não temos os mesmos instrumentos nem o mesmo poder da indústria”, ela lamenta.
ONDE ESTÁ O PROBLEMA?
A pesquisa revelou que algumas propagandas utilizam várias estratégias abusivas. Por exemplo, os anúncios dos refrigerantes Dolly, cujo “garoto-propaganda” é um personagem animado em forma de garrafa que canta jingles atrativos com voz infantil. A rede de fast-food McDonald’s insiste em promover lanches junto com brinquedos colecionáveis. Um comercial da bolacha Oreo tinha excesso de cores e divulgava uma promoção cujo prêmio era uma viagem para a África do Sul. Na propaganda do suco Tang, encenada por crianças, foram detectados excesso de cores e trilha sonora infantil.
O Idec enviou os resultados do estudo para as empresas responsáveis pelas marcas Dolly, McDonald’s, Tang e Oreo. A primeira devolveu o documento sem resposta. A segunda alegou que não existem estudos científicos que comprovem que os produtos do McDonald’s ofereçam risco à saúde dos consumidores e que sua publicidade está de acordo com a legislação vigente. A dona das marcas Tang e Oreo não se manifestou até o fechamento desta edição.
No Brasil, a indústria tem um sistema de autorregulação por meio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Contudo, sua atuação é problemática. Apenas membros do Conselho – representantes da indústria e de agências publicitárias – podem decidir sobre a regulação. E como é um ente privado, ele não pode penalizar os infratores, apenas fazer recomendações, que os anunciantes escolhem seguir ou não.
Por parte do Estado, o sistema capaz de penalizar as empresas ainda é insuficiente, segundo o advogado Adalberto Pasqualotto, professor e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito do Consumidor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS): “Os Procons podem aplicar multas às empresas, mas a maior parte dos municípios brasileiros ainda não possui Procons, e, onde eles existem, nem sempre a estrutura é adequada. Ainda assim, eles têm feito um bom trabalho”. Em 2009, por exemplo, o Procon-SP multou a Sadia em R$ 305 mil por oferecer bichos de pelúcia junto aos produtos.
Outra via possível são as ações do Ministério Público. Em 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) baniu pela primeira vez um anúncio da Bauducco que se referia à venda casada de biscoitos com um brinquedo (Shrek). A decisão veio nove anos após uma denúncia do Instituto Alana. “Isso mostra o quanto é um trabalho longo, difícil, de ‘formiguinha’, mas que há vitórias”, comenta Cattaruzzi. E Amaral completa: “Daí a importância do monitoramento e das denúncias. Cada decisão reforça o que dizem as leis e funciona como precedente para os próximos casos”.
O QUE SE PODE FAZER
Para Pasqualotto, o ideal seria criar um órgão de regulação estatal interdisciplinar com ampla representação da sociedade civil e mandatos periódicos. Ele poderia criar normas e fiscalizar o seu cumprimento”, ele diz. Mas, nas condições que temos hoje, uma das medidas mais importantes é pautar o tema na sociedade. Com esse objetivo, em abril, o Idec e parceiros da sociedade civil criaram o Observatório de Publicidade de Alimentos (OPA), para recolher denúncias de campanhas abusivas ou enganosas, avaliá-las e fazer o melhor encaminhamento jurídico.
SAIBA MAIS
Guia Alimentar para a População Brasileira
Observatório de Publicidade de Alimentos (OPA)