Nas alturas
Pesquisa do Idec constata que medidas para coibir reajustes abusivos em planos de saúde coletivos não funcionam. E mais: mercado é concentrado, grandes operadoras praticam reajustes acima da média e “falsos coletivos” estão em expansão
Não é novidade que está cada vez mais difícil encontrar planos de saúde individuais e familiares. Há anos, as grandes operadoras começaram a minimizar essa oferta e, quando ela existe, os preços são muito altos. Ao mesmo tempo, vai ficando mais simples contratar planos coletivos – mesmo que, frequentemente, eles sejam compostos por apenas um microempreendedor individual e sua família. Hoje, os contratos coletivos representam mais de 80% do mercado. O grande problema é que o poder de regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre essa categoria de planos é muito baixo (veja o quadro da página 19).
Isso motivou o Idec a levantar informações sobre os reajustes nos planos coletivos, para compreender se os consumidores estão sendo prejudicados e, se sim, de quanto é esse prejuízo. A pesquisa decifra a dinâmica de funcionamento desse mercado. “Pretendemos mapeá-lo, mostrar o quanto ele é concentrado, identificar seus nós regulatórios e, enfim, propor uma recomendação para melhorar a regulação”, informa a advogada do Idec Ana Carolina Navarrete, que supervisionou o estudo.
A ANS não forneceu ao Instituto as informações pedidas via Lei de Acesso à Informação. Desse modo, só foi possível trabalhar com os dados disponibilizados no site da agência reguladora, que se referem aos contratos com menos de 30 vidas, de 2013 e 2017.
A “EXPLOSÃO” DOS PLANOS PEQUENOS
Uma das descobertas da pesquisa é que, embora o número de usuários de planos coletivos tenha caído, a quantidade de contratos com até 30 vidas está aumentando. No período analisado, o número de usuários desses pequenos planos saltou de 3,3 milhões para 5,29 milhões. Assim, enquanto em 2013 eles correspondiam a 6,6% do mercado de planos de saúde, em 2017 chegou a 11,2%.
Mas isso não é tudo. Enquanto o número de usuários de planos pequenos aumentou 60%, o número de contratos cresceu muito mais – 91%. Isso quer dizer que o tamanho dos planos é cada vez menor: a média de usuários em cada um caiu de 6,2 em 2013 para 5,21 em 2017. Os dados podem indicar que está havendo um crescimento de pequenas empresas que contratam planos para seus empregados ou o fenômeno da “pejotização” (pessoas físicas que possuem CNPJ e estão contratando planos empresariais como se fossem individuais ou familiares, os chamados “falsos coletivos”). “Não tenho como assegurar, mas tendo a acreditar que essa última hipótese é a mais provável”, aposta o economista Carlos Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que estuda o mercado da saúde suplementar. “Essa seria uma estratégia de sobrevivência das famílias para reduzir os custos com planos de saúde, pois os individuais estão cada vez mais raros e caros e, ao mesmo tempo, há incertezas em relação ao SUS no contexto da Emenda 95”, explica ele, referindo-se à emenda constitucional aprovada em 2016 que congela os gastos da União com saúde até 2036.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Coletamos o valor dos reajustes médios praticados nos contratos coletivos com até 30 vidas entre abril de 2013 e maio de 2017 no site da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A ideia era analisar também informações dos contratos com mais de 30 consumidores, mas o pedido – feito via Lei de Acesso à Informação –, foi negado. Estamos recorrendo dessa decisão da agência reguladora.
A partir dos dados disponíveis, calculamos médias, valores mínimos e máximos, e fizemos agrupamentos por percentuais. Reunindo esses cálculos e outros dados da ANS, pudemos verificar como se deu o crescimento dos planos coletivos, quais foram os tipos de contrato que sobressaíram, como se comportam as maiores operadoras e quais são as tendências em relação ao aumento dos preços.
Ana Carolina Navarrete, advogada e pesquisadora em saúde do Idec, e Matheus Falcão, analista em saúde do Idec
VAZIO REGULATÓRIO
Historicamente, a ANS optou por regular com mais afinco apenas os planos individuais e familiares. Já nos coletivos, as operadoras têm liberdade para rescindir contratos e definir reajustes. A justificativa é que haveria, nesses casos, maior poder de barganha junto às operadoras pelo fato de o contratante ser uma pessoa jurídica.
O argumento, no entanto, é no mínimo discutível. “No plano para MEI, por exemplo, o que se tem, na realidade, é uma relação entre uma pessoa física (que tem CNPJ) e o plano de saúde. Não é de fato uma relação entre duas empresas. Então, a possibilidade de negociação é mínima”, pontua a advogada do Idec. Mesmo em organizações maiores, essa capacidade de barganha é complicada, sobretudo do ponto de vista do consumidor final. “Eu, como funcionário do Ipea, nunca discuti nem o preço, nem a cobertura, nem a qualidade dos serviços do plano contratado pela instituição”, exemplifica Ocké-Reis, completando: “Essa foi uma justificativa construída ideologicamente para sustentar o fato de que a política regulatória só abrange 20% do mercado, que é a fatia ocupada pelos planos individuais e familiares”.
NÚMEROS DA PESQUISA
RESOLUÇÃO INEFICAZ
Não por acaso, os aumentos abusivos em planos coletivos são tema constante em processos judiciais movidos contra operadoras. E, em contratos com menos vidas, as coisas se complicam. O reajuste feito uma vez ao ano inclui não apenas a inflação, mas também a sinistralidade, aplicada quando há uso do plano acima do previsto pela empresa. Imagine um contrato com cinco pessoas em que, em determinado ano, uma delas teve câncer e precisou fazer quimioterapia. No ano seguinte, o reajuste vai levar em conta o aumento do uso por conta desse caro tratamento, e o ônus acabará sendo dividido entre os cinco consumidores. Como são poucos, o total para cada um fica pesado.
Para evitar esse tipo de problema, a ANS editou, em 2012, a Resolução no 309, que obriga as operadoras a agrupar todos os seus contratos com menos de 30 vidas ao calcular o reajuste anual. Assim, a sinistralidade é diluída entre mais consumidores e, em tese, impacta menos cada um deles. “[Com a medida], acreditamos que haja uma inibição do risco por parte da operadora, garantindo que ela dispense um tratamento mais igualitário a todos os contratos. Ademais, as operadoras são obrigadas a divulgar os percentuais em seu portal, reduzindo, assim, a assimetria de informação, tornando o reajuste mais transparente e dando maior poder de decisão ao consumidor”, informa a agência, por meio de sua assessoria de comunicação.
A pesquisa do Idec, porém, mostra que a resolução não está sendo eficaz. “Identificamos alto crescimento no número de usuários de contratos com menos de 30 vidas, o que deveria ter levado a uma redução nos reajustes. No entanto, o reajuste médio se manteve estável, mais ou menos entre 12% e 13%. Ou seja, o risco não está sendo de fato diluído”, aponta Navarrete. E há muito mais por trás desses percentuais médios. A pesquisa revela, ainda, que os maiores aumentos de cada ano estiveram acima de 40% e, em alguns casos, atingiram 150%.
Além disso, as cinco operadoras que praticaram os maiores aumentos em todos os anos analisados são de pequeno ou médio porte. Mas isso não significa que reajustes altos sejam exclusividade das operadoras menores. Apesar de elas liderarem esse ranking, algo interessante – e preocupante – vem à tona quando se observam as dez maiores operadoras em número de clientes. “Vimos que elas têm reajustes muito acima da média geral do mercado, que foi de 12,9%. O percentual das maiores empresas foi de 16,65%”, diz a advogada do Idec. Assim, justamente as operadoras que possuem mais clientes – e, portanto, poderiam teoricamente diluir mais os sinistros –, são as que praticam reajustes altos.
O problema fica ainda mais sério porque o mercado está concentrado, conforme detectou a pesquisa. Em 2013, as dez maiores operadoras já eram responsáveis por 52% do mercado; em 2018, por 63%. Isso quer dizer que a maior parte dos usuários de planos coletivos tem contrato com essas empresas. Como seus reajustes estão acima da média, a maioria das pessoas com planos coletivos com menos de 30 vidas também sofre reajuste acima da média, que beira os 20%. Vale ressaltar que, no caso dos planos individuais e familiares, o teto estabelecido pela ANS no período estudado foi de, em média, 11,9%.
PLANOS INDIVIDUAIS x PLANOS COLETIVOS
Planos individuais e familiares são aqueles em que uma pessoa física contrata diretamente a operadora. Já nos coletivos, os contratos são firmados entre a operadora e uma pessoa jurídica. Os coletivos podem ser empresariais, oferecidos por uma empresa a seus trabalhadores; por adesão, oferecidos por uma entidade de classe, associação ou sindicato a seus filiados ou associados; e MEI, contratados por um microempreendedor individual.
Os mais protegidos pela ANS são os planos individuais e familiares, que têm um teto para reajuste definido por ela. Além disso, o contrato não pode ser cancelado pela operadora, a não ser em casos bem específicos. Já nos planos empresariais e por adesão, a rescisão é possível a qualquer momento, e o reajuste fica totalmente a cargo das operadoras. Nos planos MEI, há uma tímida proteção, porém, ela não tem sido suficiente.
PRESSÃO SOBRE A ANS
Especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes ao apontar a necessidade de pulso firme da ANS para coibir os aumentos abusivos. Quando, no ano passado, a agência modificou a metodologia de reajuste dos planos individuais e familiares, o pleito era para que houvesse uma extensão da regulação para os coletivos, mas isso não aconteceu. “Essa nunca foi a opção regulatória da ANS”, lamenta a advogada Juliana Kozan, especialista na área de saúde.
Nesse contexto, a diminuição da oferta de planos individuais não é coincidência: “É mais interessante para as operadoras se concentrarem em um mercado pouco regulado. No fim, os consumidores são atraídos pelos planos coletivos, que têm valores iniciais mais baixos, mas nos anos seguintes os aumentos surpreendem”, constata Kozan. E, sem condições de negociar com as operadoras, os contratantes ficam de mãos atadas. “Se o consumidor questiona o reajuste, a operadora pode rescindir o contrato. Resta a ele aceitar ou trocar de empresa”, afirma a advogada.
Uma saída – não acessível para muita gente – é a judicialização. Mesmo assim o diálogo é difícil, e a transparência passa longe. “Fizemos no Idec uma pesquisa sobre processos judiciais e concluímos que não há transparência em relação às tabelas dos custos das operadoras. Elas simplesmente não são incluídas nos processos: apresentam o valor do reajuste, mas não os cálculos que levaram a determinado percentual. Algumas empresas preferem perder o processo a mostrar os dados”, declara Navarrete.
Resta aos consumidores pressionar (e torcer) para que a ANS passe a regular o reajuste dos planos coletivos. “Também recomendamos a adoção de políticas que incentivem as operadoras a ofertarem planos individuais”, finaliza Navarrete.
SAIBA MAIS
Acesse aqui a matéria “Tábua da salvalção”, sobre processos judiciais.