De olho na concorrência
Recém-criado (em janeiro deste ano), o Observatório do Poder Econômico (OPE) – projeto de extensão da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – pretende monitorar as concentrações econômicas, as condutas empresariais e a atuação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (que abrange o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade – e a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência – Seprac –, do Ministério da Economia). Essa iniciativa inovadora, parceira do Idec no monitoramento de temas de interesse dos consumidores, pretende contribuir para o enfrentamento dos impactos sociais, econômicos e políticos da concentração econômica no Brasil.
Para entender como o observatório – formado por alunos de graduação, pós-graduação e docentes de distintos campos do conhecimento, principalmente, do direito, da economia e das relações internacionais – pode beneficiar os consumidores, entrevistamos seu coordenador, Iagê Zendron Miola. Confira a seguir:
Por que os temas “concorrência e concentração do poder econômico” são importantes para os consumidores?
Iagê Zendron Miola: A concentração do poder econômico é um de três grandes “nós” que precisam ser desatados. Os outros são: desigualdade (vivemos em uma era de extrema e crescente concentração de riqueza) e crise da democracia (a descrença nas instituições democráticas e a ascensão de discursos abertamente autoritários sugerem que vivemos em uma era de forte apoio a projetos de concentração de poder político).
A concentração do poder econômico é uma das causas da concentração de riqueza e do aumento da desigualdade e está em tensão com importantes valores democráticos, contribuindo para a insatisfação com os arranjos políticos em vigor.
Quais os problemas dessa excessiva concentração do poder econômico, sobretudo para os consumidores?
IZM: Quanto menos empresas ofertam um produto ou serviço, ou seja, quanto mais concentrado é um mercado, mais elas tentam extrair riqueza dos consumidores cobrando mais caro. Outro problema é a formação de cartéis por empresas que trabalham com preços parecidos e dividem o mercado. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que os cartéis aumentam o preço de 10% a 20% em relação a um mercado efetivamente competitivo.
Um terceiro possível efeito da excessiva concentração é o chamado preço predatório: empresas praticam preços abaixo do mercado durante um tempo para eliminar rivais.
Por outro lado, temos exemplos de mercados em que há grande concentração do poder econômico sem, no entanto, resultar em custo alto ou produtos de má qualidade. Como exemplo temos o Facebook e a Amazon. Isso não significa que o gigantismo empresarial seja inofensivo ou mesmo positivo. Precisamos enxergar que o poder econômico privado concentrado significa maior capacidade de influência de interesses privados sobre políticas públicas e o Estado.
Quais as áreas mais afetadas pela concentração e falta de competitividade? Há estudos sobre esse tema?
IZM: Há estudos acadêmicos brasileiros que mapeiam a concentração em diferentes setores e os dados produzidos por instituições governamentais e organizações da sociedade civil. Conforme estudo do Monitoramento da Propriedade de Mídia, uma parceria entre o coletivo Intervozes e a organização Repórteres Sem Fronteiras, quatro grupos empresariais concentram 70% da audiência da televisão aberta no Brasil. No setor financeiro, segundo dados do Banco Central, em 2016, cinco bancos detinham 82% dos ativos totais do mercado – o que coloca o setor bancário entre os mercados mais concentrados do mundo. No setor agropecuário, dados antigos, porém sugestivos, de 2006, apontavam que 55% da produção de soja era controlada por cinco empresas. Em 2015, a Repórter Brasil, em parceria com a Fundação Friedrich Ebert, identificou que entre 60% e 70% dos produtos comprados pelas famílias brasileiras nos supermercados são de dez grandes empresas, como Unilever, Nestlé, Procter & Gamble, Kraft e Coca-Cola. No ensino superior privado, dados públicos indicam que dez grupos concentram mais de 40% das matrículas.
Tendo em vista a relevância dos impactos da concentração econômica na sociedade e na economia brasileiras e a limitada disponibilidade de dados sobre esse fenômeno, penso ser urgente a produção de estudos e diagnósticos sobre o tema no Brasil. Entre outras razões, é para isso que foi criado o Observatório do Poder Econômico.
Qual o papel do Observatório do Poder Econômico (OPE) e como ele pode ajudar as organizações de defesa do consumidor a melhorarem o seu trabalho?
IZM: O OPE tem como missão principal estimular o debate público sobre as problemáticas implicações sociais, econômicas e políticas da concentração do poder econômico no Brasil a partir de evidências e pesquisas. Para isso, irá monitorar e estudar as concentrações e condutas de empresas e como o Estado atua para prevenir e coibir os abusos. Nosso foco é acompanhar as pautas legislativa, regulatória e de políticas públicas relacionadas ao poder econômico, especialmente a atuação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) – que abrange o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (Seprac), do Ministério da Economia.
Por ser um projeto de extensão universitária, o OPE não quer que o material produzido por seus pesquisadores fique “encastelado” na universidade, mas que promova transformações reais. Por diversas razões, a regulação da concorrência entre empresas sempre foi pouco explorada pela sociedade civil organizada. Assim, o conhecimento produzido pelo Observatório pode servir de insumo para ela. Esperamos que os estudos produzidos sirvam para que organizações da sociedade civil participem do debate público junto a instituições estatais como o Cade e a agências reguladoras, defendendo os direitos dos diferentes grupos impactados pelos abusos do poder econômico, inclusive dos consumidores.
O Cade é o único órgão responsável pela garantia da livre concorrência?
IZM: O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça que tem como missão zelar pela livre concorrência e reprimir o abuso do poder econômico, conforme estabelecido pela Constituição Federal – exerce três funções relevantes: preventiva, repressiva e educativa.
No papel preventivo, o Cade analisa se a aquisição ou fusão de empresas ameaçam a livre concorrência. Após a análise, o órgão pode aprovar, reprovar ou aprovar mediante algumas condições a serem seguidas pela companhia, por exemplo, que se desfaça de determinadas unidades produtivas para que a companhia resultante não seja tão dominante no mercado.
No papel repressivo, o Cade investiga e julga comportamentos que podem ser considerados infrações à ordem econômica. O exemplo mais conhecido é o do cartel, que ocorre quando concorrentes combinam preços, dividem entre eles mercados consumidores ou combinam quotas de produção para controlar preços. O Cade pode aplicar penalidades aos infratores – por exemplo, multas –, determinar que o comportamento seja cessado e punir administradores das empresas envolvidas.
Por fim, o papel educativo é difundir o princípio da livre concorrência por meio de publicações acadêmicas ou voltadas ao público em geral, parcerias com instituições públicas e associações, realização de eventos etc.
Ainda que seja o órgão mais conhecido, o Cade não está sozinho no papel de defender a livre concorrência no Brasil. A Seprac também integra o SBDC. Ela é responsável por defender o princípio constitucional da livre concorrência a partir de estudos, análises e opiniões técnicas sobre propostas de leis que tramitam no Congresso Nacional ou políticas públicas que possam afetar a concorrência. As agências reguladoras também devem se preocupar com a proteção da concorrência, sobretudo no caso de setores em que há “monopólios naturais”.
Que julgamentos feitos pelo Cade você citaria para ajudar o consumidor a compreender o que está em jogo?
IZM: Um bom exemplo da função preventiva do Cade é o veto, em fevereiro de 2018, à aquisição da Liquigás pela Ultragaz, por concluir que ela teria efeitos anticompetitivos no mercado de gás de cozinha, considerado extremamente concentrado. Se a aquisição se confirmasse, a Ultragaz passaria a realizar mais de 40% das vendas em vários estados, o que, para o Cade, resultaria em prejuízos aos consumidores, com uma possível elevação do preço do botijão. Esse caso ilustra a preocupação do órgão em garantir a livre concorrência, preservando o bem-estar do consumidor. É importante, porém, colocá-lo em perspectiva. Dos 404 casos de concentração analisados pelo Cade em 2018, esse foi o único reprovado pelo órgão. A seis empresas o Cade impôs algum tipo de condição ou restrição para a aprovação. Contudo, aprovou 384 (95%). Essa média de aprovação sem limitações pode ser observada ao longo da história do Conselho, desde meados dos anos 1990.
Um exemplo do papel repressivo, também de 2018, é a condenação do chamado “cartel do sal”. Em um processo iniciado em 2013, o Cade investigou a ocorrência de um cartel entre empresas que atuam no mercado nacional de sal marinho, que teria durado de 1992 a 2012. O órgão constatou que quase 20 empresas, com o auxílio de uma associação e dois sindicatos do setor, tabelavam preços, dividiam o mercado e controlavam a oferta do produto influenciando o preço. Isso afetou toda a cadeia de produção de sal no Brasil, da extração ao refino, impactando o preço para o consumidor final. O Cade condenou as empresas, as entidades sindicais e mais de 30 pessoas envolvidas, impondo multas que, somadas, chegaram a quase R$ 290 milhões.
Como a sociedade civil organizada pode recorrer ao Cade?
IZM: Qualquer cidadão pode apresentar denúncias ao Cade, sejam elas relacionadas a concentrações econômicas ou a condutas anticoncorrenciais. Também pode participar de consultas públicas. Um instrumento previsto no artigo 50 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei no 12.529/2011) pode ser utilizado por organizações da sociedade civil que queiram apresentar estudos, dados e argumentos sobre os impactos de um determinado caso para os direitos por ela defendidos. Ainda que esse tipo de mobilização pela sociedade civil não seja muito frequente na história do Cade, acredito tratar-se de uma importante ferramenta para a democratização dessa esfera de regulação econômica.
O consumidor final pode ser ressarcido pelos danos decorrentes de cartéis condenados pelo Cade?
IZM: Sim. A forma mais conhecida de reparação dos danos causados pela formação de cartéis é a aplicação de multa pelo Cade. O valor arrecadado é destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça, que tem por finalidade reparar danos causados, entre outros, ao consumidor em casos de infrações à ordem econômica. Em 2018, foram quase R$ 560 milhões arrecadados. A reparação acontece de forma indireta, isto é, por meio do financiamento a projetos e iniciativas que atendam a interesses difusos e coletivos.
Outra forma é a chamada reparação civil, que pode ser demandada por um consumidor que tenha sido direta ou indiretamente prejudicado por um cartel. Essa reparação acontece na esfera judicial – ou seja, fora do Cade - e tem caráter indenizatório pelas perdas e danos sofridos pelo consumidor em razão da prática anticoncorrencial. A responsabilização civil das empresas infratoras pode ser demandada por meio de ação individual ou coletiva.
Ainda que garantida pela Lei de Defesa da Concorrência e pelo Código de Defesa do Consumidor, a reparação civil por danos provocados por cartéis é um processo que enfrenta alguns desafios para que tenha êxito no Judiciário. Por exemplo, a necessidade de individualização e mensuração dos danos causados aos autores da ação. Por essa razão, dentre outras, é fundamental que entidades de defesa de direitos acompanhem os processos que tramitam no Cade.