Marco Civil da Internet faz cinco anos
Desde 2014, os internautas brasileiros têm seus direitos garantidos por lei: o Marco Civil da Internet, sancionado em 23 de abril e regulamentado em 2016. Mas até a sua aprovação, houve muito debate, muita polêmica, muitas idas e vindas e muito esforço de entidades da sociedade civil, entre elas o Idec. Assim, os usuários da internet têm muito a comemorar, já que a Lei nº 12.965 estabeleceu princípios que tornam a web livre e democrática, embora ainda haja questões que precisam ser melhoradas para que ela seja 100% efetiva.
Para celebrar os cinco anos do Marco Civil da Internet, conversamos, por telefone, com a advogada Veridiana Alimonti, que trabalhou no Idec de 2010 a 2015 e participou das discussões que antecederam a aprovação. A seguir, ela avalia os pontos positivos e negativos dessa importante lei brasileira.
Você participou das discussões que culminaram no Marco Civil da Internet (MCI) quando era advogada do Idec. Quais regras favoráveis ao consumidor você destacaria?
Veridiana Alimonti: Várias. O Marco Civil da Internet (MCI) tem quatro pilares relacionados à defesa do consumidor. O primeiro é o direito de todos os cidadãos de acessar a rede mundial de computadores, como prevê os artigos 4o, que trata da universalização, e 7o, que reconhece a sua essencialidade.
Outro pilar é a neutralidade da rede, que trata da qualidade do acesso. Esse é um dos tópicos mais polêmicos, que teve bastante oposição das empresas de telecomunicações. O artigo 9o diz que as operadoras não podem discriminar o acesso (não podem bloquear, fazer um site funcionar melhor do que o outro etc.), o que garante qualidade ao serviço.
O terceiro pilar é a privacidade de dados. É claro que não aborda tudo sobre esse tema, porque a Lei de Proteção de Dados Pessoais já estava em consulta pública. Mas contém alguns princípios e algumas regras fundamentais para o consumidor, como a necessidade de consentimento qualificado e expresso para que os dados sejam tratados por provedores de acesso a aplicativos e também para que sejam compartilhados com terceiros. Trata ainda do princípio da finalidade, pois diz que os dados só podem ser utilizados para fins que justifiquem a sua coleta.
E o último pilar é a liberdade de expressão, que está muito clara no artigo que estabelece os fundamentos da lei. Nele, entra a responsabilidade de intermediários – no caso as plataformas online – em relação ao que as pessoas postam. No artigo 10o, o MCI estabelece, como regra geral, que com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações só pode ser responsabilizado por conteúdo de terceiros se houver uma ordem judicial determinando a retirada do conteúdo e ele descumprir – não apenas uma notificação extrajudicial.
O Judiciário é mais preparado para avaliar conflitos de liberdade de expressão. Se fosse responsabilidade da plataforma decidir se o conteúdo é legítimo ou não, ela tenderia a retirá-lo para garantir sua segurança.
E alguma questão importante ficou de fora?
VA: O MCI não aprofundou duas questões que foram discutidas paralelamente: a proteção de dados pessoais em estabelecimentos físicos e os direitos autorais. Em caso de conteúdo protegido por direitos autorais, o MCI diz que, enquanto não se aprovar outra lei, deve-se aplicar a Lei de Direitos Autorais. Enquanto a questão da privacidade de dados avançou, com a aprovação de uma lei específica, a ideia de modernizar a Lei de Direitos Autorais e de colocá-la num contexto de economia digital e de acesso ao conhecimento, não. Esse assunto está parado até hoje.
Embora aprovado em 2014, o Marco Civil da Internet só foi regulamentado em 2016 por meio do Decreto nº 8.771. Quais os impactos da regulamentação na vida dos usuários?
VA: A regulamentação detalhou alguns pontos da lei, oferecendo mais proteção aos internautas. Por exemplo, a neutralidade da rede e uma prática generalizada no Brasil, o zero rating – acesso a alguns aplicativos sem que haja desconto na franquia –, que é polêmico, porque muitos consumidores acham que é bom, mas é ruim. Algumas operadoras deixaram de oferecê-lo depois do Decreto, mas de forma geral, ele continua existindo. Ele foi até discutido no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do ponto de vista concorrencial. O órgão, numa análise que eu considero muito superficial, avaliou não haver problema.
Algo importante que o Decreto proporcionou foram padrões de segurança e sigilo dos registros de dados pessoais e de comunicação privada, ou seja, para que os provedores de aplicação e conexão guardem os dados dos usuários. Isso também está na Lei de Proteção de Dados Pessoais, mas ela não existia na época.
Por que o zero rating é ruim?
VA: As pessoas acham que é bom porque elas acessam alguns aplicativos, geralmente Facebook, WhatsApp e Twitter, sem que haja desconto de sua franquia. Isso significa que a franquia delas é baixa, porque se fosse uma superfranquia, isso seria dispensável. Ou seja, a franquia de dados é o problema. E a franquia tem a ver com a neutralidade da rede, porque quando acaba a franquia, o usuário só consegue acessar os sites gratuitos. Então, claramente, tem uma discriminação no tráfego.
O artigo 10o do Decreto [que regulamentou o MCI] prevê uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como meio para promoção do desenvolvimento humano, econômico e social. Esse caráter irrestrito fica comprometido com a franquia de dados, assim como a internet única e aberta. A combinação de franquia de dados com zero rating leva a um acesso que privilegia algumas poucas plataformas em detrimento de tudo o que existe na internet.
Por isso o zero rating é problemático, embora a priori pareça ótimo. O problema começa com a existência de franquia e com o acesso precário à internet. Políticas de universalização são necessárias para que esse acesso seja diferente.
Você saberia dizer quais as regras impostas pelo Marco Civil foram mais violadas desde a sua aprovação?
VA: Não tenho um levantamento disso, mas a neutralidade da rede, principalmente o zero rating, é um desafio. Essa prática precisa ser debatida. E a própria sociedade civil pode provocar novamente o Cade.
Também há escândalos recorrentes sobre privacidade.
O Marco Civil afirma que o acesso à internet é essencial para o exercício da cidadania, mas ainda há um contingente enorme de pessoas sem qualquer acesso e milhões de consumidores com acesso precário, por meio da telefonia móvel e com planos com limitação de dados. Por que o Brasil não consegue fazer valer o que está na Lei? O que falta?
VA: MCI foi importante para a universalização do acesso e para combater o PLC no 79, que tenta mudar pontos importantes da Lei Geral de Telecomunicações. O MCI reconhece que o acesso à Internet é essencial e deve estar disponível a todos. A universalização sempre esteve em debate, e esse debate tem a ver com como a Lei Geral de Telecomunicações é hoje. Ela diz que qualquer serviço de telecomunicação que seja essencial não pode ser prestado só com as regras da lei, que são mais voltadas ao livre mercado. Eles também devem ser prestados por meio de concessões, com uma atuação do Estado mais forte em relação a políticas públicas, para determinar, por exemplo, onde as empresas têm de investir e até quando.
Falta investimento. Não queremos que as empresas invistam onde não terão lucro nem que tenham prejuízo. A gente quer que o Esta- do invista para levar esse serviço a lugares onde não há interesse econômico.
Há projetos de lei (PLs) tentando modificar o Marco Civil? Há risco de retrocessos?
VA: Tem muitos. Tem um que quer mudá-lo para que não haja franquia de dados e tem um que quer alterar a responsabilidade de intermediários (inclusive, há uma ação na Justiça questionando a constitucionalidade do artigo que aborda esse tema no MCI), por exemplo.
Há ainda PLs bizarros, como os que abordam as fake news. Temos de ter em vista que elas são um problema, mas não vamos resolver isso criminalizando quem posta ou compartilha uma notícia falsa. E também não acredito que vai resolver tornar a plataforma responsável por um conteúdo falso postado. Seria dar a essas plataformas o poder de decidir o que é falso e o que é verdadeiro.
Tem alguns PLs que querem que as plataformas derrubem fake news em 24 horas após a notificação. Isso é bastante temerário, principalmente em contexto eleitoral, em que há interesses políticos. Além disso, uma notícia que exagera um aspecto é muito diferente de uma totalmente falsa. Por isso é muito complicado dar mais esse poder às plataformas.
Embora o acesso à internet seja fundamental para diversos aspectos da vida e, inclusive, considerado um direito do cidadão, hoje há uma série de maus usos da web, como a propagação de discursos de ódio e fake news, violações à privacidade e uso indevido (e, às vezes, criminoso) de dados pessoais, entre outras questões. As coisas ruins da internet podem superar as coisas boas? Como você vê o futuro da internet?
VA: Na época em que discutimos o Marco Civil estávamos na fase de utopia com a internet. Agora, estamos vivendo um momento de decepção, de distopia. Contudo, ressalto que a internet não cria nada, ela só potencializa questões negativas que já existem na sociedade. Sempre existiu preconceito, discurso de ódio e notícias falsas, inclusive disseminadas pelos grandes veículos de comunicação e pela mídia tradicional. É importante ter em vista que muitas vezes os grandes veículos de massa se colocam como os grandes guardiões da verdade, mas eles também contribuíram para a desinformação em importantes momentos da política brasileira.
Estamos vendo que a internet pode potencializar não apenas coisas boas, mas também ruins. Contudo, não é porque estamos decepcionados que devemos esquecer tudo de positivo que ela oferece para a cultura, o acesso ao conhecimento e à informação e a inovação tecnológica. Temos de lidar com os problemas sem colocar em xeque que o acesso à internet e à tecnologia da informação é essencial para o exercício de direitos fundamentais de forma cada vez mais ampla e profunda. Se acharmos que a solução é “fechar” a internet, bloquear conteúdo e criar entraves ao acesso estaremos jogando tudo fora.
Eu não acho que os problemas da internet vão superar as vantagens, do mesmo jeito que os problemas da sociedade não superam os pontos positivos. Temos de apostar nos benefícios e lidar com os obstáculos de forma esperançosa.