Psicologia + Economia
Vera Rita de Mello Ferreira é psicóloga e psicanalista, com doutorado em Psicologia Social. É representante da International Association for Research in Economic Psychology (Iarep) no Brasil e consultora em psicologia econômica, arquitetura da escolha e educação financeira. Dá aulas na B3 – a bolsa de valores brasileira - e é autora de vários livros.
De modo geral, como é o comportamento econômico dos brasileiros?
Vera Rita de Mello Ferreira: A psicologia econômica não vê muita diferença cultural entre os brasileiros e os cidadãos de outros países, os ocidentais pelo menos. No geral, somos todos impulsivos, olhamos para o presente em detrimento do futuro (não nos preparamos para a velhice), odiamos ser frustrados, odiamos perder e, para tentar não perder ou porque estamos com muita raiva porque perdemos, acabamos correndo mais riscos do que correríamos normalmente. Além disso, somos otimistas além da conta e exageradamente autoconfiantes. Algumas características brasileiras só pioram a situação. Por exemplo, os juros altíssimos. Quem contrai uma dívida e paga juros de 15% ao mês, se ficar inadimplente um, dois, três meses, leva um tombo do qual não se recupera mais.
E os juros altos não fazem as pessoas terem medo de se endividar?
VRMF: Não, porque elas olham para o presente. Eu chamo de semáforo emocional. É como se tivéssemos um semáforo em nossa mente, que funciona diante de todas as decisões que tomamos, de forma inconsciente e só considerando o curto prazo. Se algo desprazeroso, chato, complicado, que exige esforço e que ameaça nos frustrar aparece, uma luz vermelha acende na nossa cabeça. Não queremos entrar em contato com aquilo e varremos para debaixo do tapete. Pode ser o fato de não ter dinheiro suficiente para fazer uma compra ou ter de organizar o décimo terceiro.
Quando algo me promete satisfação, traz alívio, parece a solução para todos os problemas, é agradável e converge com as minhas expectativas, minhas crenças e meus valores, a luz verde se acende. Lembrando que não nos damos conta de que tudo isso está acontecendo. É uma escolha binária: prazer ou desprazer.
Essa despreocupação com o futuro tem um nome?
VRMF: Sim, desconto hiperbólico subjetivo do tempo. Consiste na tendência de minimizar o valor dos ganhos a serem recebidos no futuro, por estarem temporalmente muito distantes. E a pessoa não se dá conta de que tem um problema, de que está sendo vítima de uma grande ilusão ao seu próprio respeito. Por exemplo, ela gasta todo o décimo terceiro, mas tudo bem, porque em janeiro ela vai economizar o dobro. Não vai, né? Mas ela acha que sim por conta do otimismo e da autoconfiança exagerados.
No livro Decisões econômicas – você já parou para pensar? você fala de algumas armadilhas às quais os consumidores estão sujeitos. Qual delas você destacaria?
VRMF: A contabilidade mental, que é o fato de a gente atribuir “etiquetas” para o nosso dinheiro. Nós nos relacionamos com o dinheiro de uma maneira que a economia tradicional não reconhece. Para a economia tradicional, R$ 100 são sempre R$ 100. Mas se for uma nota de R$ 100, ela dura mais na carteira. Se forem dez notas de R$ 10, elas vão embora mais rapidamente. A gente se relaciona com o dinheiro de acordo com a forma como ele se apresenta e do nome que atribuímos a ele.
Outro exemplo: é muito comum se relacionar com o 13º salário de maneira absurda. A começar pelo fato de que as pessoas raramente sabem quanto ganham. Elas confundem o salário bruto com o líquido. Alguém que recebe R$ 10 mil bruto terá apenas R$ 7 mil e pouco na conta, mas ela monta o orçamento em cima dos R$ 10 mil. Então, ela resolve comprar o iPhone de R$ 4.500 e, tudo bem, porque vão sobrar R$ 5.500. Nesse mesmo dia, ela parcela um produto porque a parcela é “só” de R$ 200. No outro dia, ela acha que dá para fazer uma viagem de R$ 3 mil. Pronto, ela já gastou tudo. Mas ela não percebe que cada gasto foi tirado do valor total de R$ 7 mil e pouco. A cada dia, ela achava que estava se relacionando com R$ 10 mil.
Tendemos a viver num mundo ilusório, em que dá para ter tudo, em que o dinheiro não acaba nunca. Não é simples cair na real. É frustrante ser adulto.
Quando a pessoa sabe que esses comportamentos existem é mais fácil se controlar?
VRMF: Mais ou menos. Pode ajudar algumas pessoas, pois a ficha cai. Mas para muita gente não. Mesmo quem estuda a área não está imune, eu mesma vivo caindo em ciladas. Somos todos humanos, falíveis. Minha frase de cabeceira, do psicanalista inglês Wilfred Bion, diz: “a razão é escrava da emoção e existe para racionalizar a experiência emocional”.
Durante a maior parte da história da humanidade, nós funcionamos à base das emoções, dos instintos, dos impulsos. Não havia a capacidade de pensar como agora. E como o homem vivia pouco, cerca de 25 anos, fazia sentido pensar no presente. Não adiantava pensar no futuro, porque o tigre vinha, comia e acabou. Mas desenvolvemos meios de sobrevivência.
Na década de 1940, a expectativa de vida no Brasil era de 45 anos. Hoje, é de 75 mais ou menos. O avanço tem sido muito rápido, e a nossa mente não conseguiu acompanhar. A gente ainda está funcionando como o homem das cavernas em muitos sentidos. Isso nos ajuda a sobreviver, mas não ajuda a desenvolver a capacidade de pensar, de abstrair, de olhar para o futuro. Se na hora que bate o impulso de comprar você estiver sereno, ok. Mas se estiver com muitas emoções, a chance de fazer besteira é muito grande, como podemos nos proteger de nós mesmos, daquele “diabinho” que quer tomar a decisão errada?
VRMF: Não é diabinho, é o lado primitivo. E ele é muito útil, pois nos ajuda a fazer coisas criativas e inovadoras. Sem ele, não daríamos conta da vida, pois se tivéssemos de pensar em absolutamente tudo o que fazemos, ficaríamos paralisados, e a vida seria muito chata. Mas é importante aperfeiçoar a capacidade de fazer escolhas. Daniel Kahneman, nosso grande guru [teórico da economia comportamental que ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 2002], fala que devemos adiar decisões importantes. Se respirarmos um pouco, conseguimos nos pegar no flagra. Mas, às vezes, é preciso uma opinião de fora, que pode ser de um analista, um planejador financeiro, um consultor ou um coach.
Grande parcela da população brasileira ainda mantém o dinheiro na poupança, mesmo não sendo o investimento mais rentável. Como funciona a cabeça do investidor? Quais as principais ciladas em que ele pode cair?
VRMF: Ele vai decidir com base do semáforo emocional. A caderneta é atrativa porque é familiar, e temos o viés da familiaridade (as pessoas conhecem ou acham que conhecem o funcionamento da poupança). Eu não jogo pedra na poupança, pois acho melhor guardar nela do que não guardar. Ela é útil para formar o hábito de juntar dinheiro.
Quando uma pessoa faz uma aplicação e começa a perder dinheiro, na bolsa ou em algum fundo, por exemplo, ela não consegue se desfazer dela. A tendência é se apegar, porque ela pensa: “Se eu resolvi investir nisso e eu sou o cara, então vai ter de dar certo. Vou esperar um pouco porque vai virar”. Só que se continuar caindo, a pessoa acaba se desfazendo quando já perdeu muito. Isso se chama falácia dos custos irrecuperáveis. É uma pena, porque a pessoa fica sem condição de investir de novo, e a experiência traumatiza.
Tem também o efeito manada: as pessoas entram numa fila para pegar senha para cometer uma loucura qualquer. No ano passado, foi o bitcoin que ferveu. Quem não tinha entrado de 2012 a 2014 começou a sentir uma pressão enorme para comprar, só que ele já estava superalto. Até poderia subir mais, mas comprar naquele momento não parecia uma boa ideia, muito menos investir todo o dinheiro como teve gente maluca que fez. Hoje, o biticoin está se arrastando. A manada é uma espécie de pânico de entrada – todo mundo quer entrar naquilo – seguido do pânico de saída. Fantasiamos que os outros estão se dando bem e sabem o que estão fazendo. Então, é melhor fazermos o mesmo, principalmente, quando for endossado por uma autoridade.
O termo "educação financeira" tem sido muito difundido, e várias iniciativas realizadas para conscientizar a população sobre a necessidade de saber lidar com seu dinheiro, planejar e consumir conscientemente. Quais são os principais desafios para alcançar resultados efetivos que derrubem os indicadores de superendividamento, que há 10 anos se mantém em patamares elevados, atingindo cerca de 60% dos consumidores?
VRMF: A educação financeira é uma andorinha, sozinha ela não faz verão. Ela precisa ser combinada a outros elementos, que eu chamo de quinteto fantástico. Os conhecimentos que já temos sobre psicologia e tomada de decisão, psicologia e impulsos, psicologia e funcionamento mental precisam ser usadas. Então, precisamos da psicologia para formular melhor as iniciativas de educação financeira e políticas públicas, introduzindo o que já sabemos sobre como funciona a cabeça das pessoas e, principalmente, como ela não funciona.
A defesa do consumidor também deve se basear na psicologia. Outro ponto é a regulação pelo governo, que precisa ser adequada a como os seres humanos funcionam de fato, não como eles deveriam funcionar.
E, por fim, a arquitetura de escolha, que é o marketing do bem. Ela propõe transformar os nossos vieses em aliados. Por exemplo, programar o investimento para que ele seja feito automaticamente. Como um dia decidimos que íamos guardar X Reais todo mês, acabamos não cancelando, assim como não cancelamos aquela assinatura de revista que não interessa mais. A educação financeira, a defesa do consumidor, a regulação e a arquitetura de escolha precisam funcionar de forma articulada para ajudar as pessoas a desenvolver a capacidade de fazer melhores escolhas financeiras.
Hoje, não existe no Brasil a disciplina “educação financeira” nas escolas. Como ela poderia ser aplicada?
VRMF: Eu sou consultora da Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef), que elaborou livros para o Ensino Médio, introduzindo, pela primeira vez no mundo, a psicologia econômica nas escolas. O ideal é começar na infância, porque aumentam as chances de criar o hábito da sustentabilidade, que é o conceito central da educação financeira. A educação financeira deveria seguir o mesmo caminho da educação ambiental.
E em casa, o que os pais deveriam fazer?
VRMF: Deveriam educar, não ficar olhando o celular. Eles têm de estar atentos aos filhos e se dar conta da sua responsabilidade na educação, que é diária. E, claro, dar o exemplo, sempre considerando a sustentabilidade.
Ainda falando de educação financeira, hoje as redes sociais estão cheias de influenciadores que ensinam como gastar menos e também a investir, e que tem como principal público os mais jovens. Como a senhora vê essa forma de adquirir conhecimento?
VRMF: Recebo muitas mensagens de pessoas falando que as minhas pílulas de psicologia, que publico no meu canal no Youtube, fizeram com que elas mudassem a vida, o comportamento. Mas para atingir mais pessoas é preciso juntar forças. Tem que ter a proteção do consumidor e a regulação juntas. Porque uma pessoa endividada pode tentar evitar o crédito após assistir a um vídeo na internet, mas os bancos continuam empurrando crédito, o que é complicado.
Nesta edição da revista, temos uma matéria sobre minimalismo, uma tendência cada vez mais forte. Como a psicologia econômica vê esse movimento de pessoas que perceberam que consumir demais não garante a felicidade e resolveram viver com menos, dando mais valor ao que realmente importa para elas?
VRMF: A ideia de fazer escolhas diferentes é importante. Até porque não haverá planeta para todo mundo. Temos que reduzir o consumo. Tomara que as escolhas passem a ser feitas da melhor forma, pois não dá para termos tudo. Gostaria que o minimalismo fosse ainda mais difundido.
As instituições financeiras e os estabelecimentos comerciais promovem um discurso de pertencimento social que enaltece a cultura do ter para ser. Como podemos fortalecer os conceitos da psicologia econômica no cotidiano das pessoas, para que elas tomem decisões mais equilibradas?
VRMF: Eu não acredito só na consciência, não. Eu sou cética. Para muitas pessoas não vai funcionar trabalhar a disciplina e o autocontrole. Então, defendo fazer algum tipo de investimento automático (toda vez que cair o salário, x% vai para a aplicação). Se para algumas pessoas fazer um plano de previdência é o único jeito de conseguir ter o desconto automático, que seja assim. É melhor do que não guardar nada. As pessoas não pensam duas vezes para fazer crédito consignado, que desconta em folha, mas não conseguem guardar dinheiro para elas mesmas. Não desconta pra dar de presente para o banco? Dá de presente pra você!
Em família, ajuda se todos tiverem o mesmo objetivo: vamos guardar para comprar outra casa ou para fazer uma viagem. Família que poupa unida permanece unida. Tem gente que já vem com chip, guarda porque sabe que é importante, mesmo sem destino específico. Mas para o resto dos mortais é um desafio, então ajuda pensar que está guardando para determinada meta.
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