O SUS FAZ 30 ANOS!
Em 5 de outubro de 2018, o Sistema Único de Saúde – nosso SUS – trintou. Nessa data, em 1988, foi promulgada a Constituição Federal Brasileira, que estabeleceu ser dever do Estado garantir saúde a todos os cidadãos brasileiros. Contudo, a criação do SUS não aconteceu da noite para o dia. Foi preciso que muitas pessoas se reunissem no chamado movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), nas décadas de 1970 e 1980, e clamassem por um sistema público de saúde universal.
Há três décadas, o SUS atende à parte da população do Brasil e é alvo de fortes críticas, como se não houvesse pontos positivos. Mas há muitos motivos para nos orgulharmos, de acordo com o médico Jairnilson Silva Paim, um dos ativistas da reforma sanitária. Ele nos concedeu esta entrevista em outubro, por e-mail, pois mora em Salvador (BA), onde leciona na Universidade Federal da Bahia.
Do que foi planejado na época da criação do SUS, o que de fato se tornou realidade?
Jairnilson Silva Paim: O SUS foi concebido como um sistema universal, mas passou por vários “filtros”. Um dos primeiros foi a Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), quando o setor privado se fez representar e mudou a tática para sabotar a proposta, não participando da 8a CNS [Conferência Nacional de Saúde]. A partir de então, fez proposições de acordo com seus interesses. Outro filtro foi o próprio capítu- lo da Constituição, quando a proposta de concessão pública foi substituída por “relevância pública”, além do artigo estabelecendo que a saúde é livre à iniciativa privada. Posteriormente, vieram as leis no 8.080/1990 e no 8.142/1990 e as Normas Operacionais Básicas (NOBs).
Nenhum dos governos após a promulgação da Constituição de 1988 comprometeu-se com o projeto da RSB e com o SUS como sistema universal. Transitaram entre um SUS para pobres e um SUS real ou pragmático, mas não implementaram o SUS democrático e constitucional.
Apesar disso, tornou-se realidade a difusão do direito à saúde, com distintas interpretações. O reconhecimento, ainda que formal, desse direito tem possibilitado a divulgação dessa conquista na sociedade.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a verba destinada à saúde em alguns países chega a ser três vezes maior do que no Brasil. Na Suíça, por exemplo, é de 23%, enquanto aqui, este ano, foi de 3,6%, bem abaixo da média mundial, que é de 11,7%. O subfinanciamento é o principal problema do SUS?
JSP: Sim, o subfinanciamento crônico representa o maior obstáculo para o SUS, atualmente agravado pela vigência da EC [Emenda Constitucional] no 95, que estabelece um teto para o gasto público com saúde, comprimindo o valor per capita nos próximos anos, até 2036. É de se esperar que países ricos gastem mais com saúde do que o Brasil, em valores absolutos. Mas em termos relativos, o percentual do PIB [Produto Interno Bruto] gasto, próximo a 9%, não está muito distante daquele do Reino Unido e dos países da OECD [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]. O nosso maior problema é que o gasto público é inferior ao gasto privado, especialmente se considerarmos que o SUS, legalmente, é universal. E o gasto privado não é das empresas, mas das famílias, que desembolsam, proporcionalmente, mais do que a União, os Estados e os municípios. Um absurdo, portanto.
Pergunta exclusiva do site
Então podemos dizer que a EC 95/2016 pode prejudicar a saúde dos brasileiros?
JSP: Entre 2017 e 2036, a população de idosos vai duplicar, requerendo mais recursos para o enfrentamento de doenças crônicas e degenerativas, bem como de transtornos mentais. Além disso, a violência e os acidentes, assim como doenças transmissíveis negligenciadas, emergentes ou “reemergentes”, tendem a pressionar a demanda por serviços pré-hospitalares, ambulatoriais, pronto-atendimento, urgência, emergência, hospitalização e reabilitação, com aumento de gastos.
Do mesmo modo, procedimentos de alto custo rejeitados pelas operadoras de planos de saúde sobrecarregam o SUS. E a variação cambial decorrente de políticas macroeconômicas também repercute no SUS, uma vez que muitos medicamentos, vacinas, equipamentos e insumos são importados e pagos em dólar. Consequentemente, o aumento dessa moeda e a desvalorização do real incidem sobre o aumento de gastos do SUS.
A fixação do teto de gastos tende a comprometer não só o SUS, mas o nível de saúde da população brasileira. A literatura registra que as crises econômicas comprometem a saúde das pessoas, e o “remédio” acionado - a austeridade fiscal - prejudica ainda mais. No Brasil, já é possível constatar a redução do ritmo de decréscimo de alguns indicadores de saúde, inclusive com inflexão da curva da mortalidade infantil para cima.
Quais outros problemas graves o senhor apontaria?
JSP: Nos últimos anos, a ameaça mais grave é a radicalização da privatização do sistema de saúde brasileiro, especialmente com a expansão da intermediação e da financeirização. A invasão desmedida do capital financeiro redefine concretamente as regras básicas da estrutura do sistema de saúde. E a Lei no 13.097/2015, que permite a penetração de capital estrangeiro no setor torna ainda mais complexa a privatização, bem como a regulação, uma vez que muitos dos centros decisórios ultrapassam o território nacional e vinculam-se à lógica do mercado financeiro globalizado.
Quais os principais desafios enfrentados pelo SUS ao longo dessas três décadas?
JSP: Tenho argumentado que o maior desafio é político, porque o SUS lida com uma articulação público-privada em detrimento do interesse público; enfrenta boicotes passivo (subfinanciamento público) e ativo (subsídios para o setor privado) do Estado brasileiro através dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; tenta responder às desigualdades historicamente produzidas pela estrutura social brasileira a partir de determinantes econômicos, sociais e culturais; disputa os fundos públicos e sofre as consequências da financeirização do orçamento público; e dispõe de bases sociais e político-ideológicas relativamente restritas face ao poder de empresários, da grande mídia, de certos partidos [políticos], do capital financeiro, do fisiologismo e do clientelismo.
Além do desafio político, vale destacar os desafios para a superação do modelo médico hegemônico, da gestão do trabalho e da educação dos profissionais diante de tradições políticas patrimonialistas, corporativas e partidárias.
Muito se fala dos problemas do SUS. Mas há avanços que merecem destaque?
JSP: O SUS contribuiu para o aumento da expectativa de vida dos brasileiros; reduziu diversos indicadores de mortalidade e de fatores de risco; ampliou a cobertura de serviços em todo o território nacional, inclusive diminuindo desigualdades regionais; permitiu o acesso de milhões de brasileiros a serviços de saúde; desenvolveu sistemas de vigilâncias sanitária e epidemiológica reconhecidos internacionalmente; vinculou mais de 60% da população brasileira a equipes de saúde da família; qualificou milhares de trabalhadores da área de saúde; avançou no desenvolvimento de centros de pesquisa e ensino; e assegurou a descentralização da gestão com secretarias e conselhos em todos os municípios e Estados. Apesar dos retrocessos recentes, acumula um legado de conquistas, como a vigilância em saúde, a assistência farmacêutica, o Samu, o controle do tabagismo, além da ampliação do Programa Nacional de Imunizações, com progressiva autossuficiência na produção de vacinas. Enfim, não é pouca coisa. Assim, apesar do neoliberalismo, do subfinanciamento e da oposição de empresários e da grande mídia, há motivos suficientes para os brasileiros se orgulharem do SUS!
NENHUM GOVERNO APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 COMPROMETEU-SE COM O PROJETO DA RSB. TRANSITARAM ENTRE UM SUS PARA POBRES E UM SUS REAL OU PRAGMÁTICO, MAS NÃO IMPLEMENTARAM O SUS DEMOCRÁTICO E CONSTITUCIONAL.
O programa “Cultivando Saúde”, do município de Mineiros (GO), foi apontado pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) como referência de práticas bem-sucedidas do SUS e premiado na edição deste ano da mostra “Brasil, Aqui Tem SUS”. Que outros bons exemplos poderiam ser citados?
JSP: Quando há equipes e gestores comprometidos com o SUS democrático e com seus princípios, desenvolvem-se boas práticas. Salvador, por exemplo, apresentava uma rede de atenção básica das mais precárias e limitadas, com baixa cobertura. Filas imensas eram formadas desde a madrugada para atendimento em centros de saúde, a ponto de dirigentes e funcionários afirmarem que se tratava de um problema cultural, pois o povo gosta de fila. Diante disso, foi desenvolvido um projeto em parceria com uma universidade, que implantou o acolhimento humanizado, redefiniu o fluxo de atendimentos, ampliou os dias, horários e meios para a marcação de consultas, sensibilizou e qualificou porteiros, seguranças, recepcionistas e equipe médica. E a fila desapareceu.
A longa fila de espera para marcar consulta no SUS é um problema que tem solução?
JSP: Sim, ainda que não seja simples. Se de um lado exige o aumento dos recursos financeiros para garantir a ampliação da infraestrutura (estabelecimentos, serviços, profissionais etc.), de outro requer medidas para organização de redes regionais, sistemas de regulação, protocolos, práticas de acolhimento e humanização, classificação de riscos, prontuários eletrônicos, sistemas informatizados etc. Para isso, diversas experiências bem-sucedidas podem ser recuperadas dentro e fora do País. A complexidade maior, entretanto, diz respeito à pactuação, harmonização de interesses e superação de conflitos entre os entes da Federação e os gestores federal, estadual e municipal, no que diz respeito à condução do sistema.
TEREMOS TEMPOS MUITO DIFÍCEIS PELA FRENTE. PARA QUE O SUS E O DIREITO A SAÚDE SEJAM PRESERVADOS É NECESSÁRIO EXERCITAR A DEMOCRACIA.
Como os chamados planos “populares” (teoricamente mais baratos), propostos pelo Ministério da Saúde, e o PL no 7.419/2006, que pretende mudar a Lei de Planos de Saúde, ameaçam o SUS?
JSP: Os pesquisadores que estudam a “saúde suplementar” apontam o engodo dos “planos accessíveis”, que não vão entregar aos consumidores aquilo que prometem, além de onerarem o SUS, sobretudo na atenção especializada, na hospitalização e nos procedimentos de alto custo. Já a mudança da Lei no 9.656/1998 protege os interesses das operadoras, retrocedendo até mesmo a regulação precária estabelecida pelo governo FHC [Fernando Henrique Cardoso].
Este ano, o STF finalmente decidiu que o ressarcimento ao SUS pelos planos de saúde é constitucional. Esse entendimento pode fazer alguma diferença na relação entre SUS e planos?
JSP: Essa foi uma vitória moral, apenas para exigir que a lei seja cumprida, obrigando as empresas a honrarem o contrato que assinaram com os consumidores de planos de saúde. Ou seja, se os serviços forem prestados por terceiros, no caso o SUS, elas são obrigadas a pagar. Mas o poder do capital conseguiu adiar o cumprimento da lei por 20 anos! Essa vitória não significa uma captação expressiva de recursos pelo SUS. Mais relevante seria o Ministério da Saúde estabelecer contratos efetivos de gestão com a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] de modo a privilegiar o interesse público, regulando eficazmente o funcionamento das operadoras ao tempo em que os subsídios e financiamentos a essas empresas fossem cancelados.
De que forma o SUS e o direito à saúde podem ser preservados para as gerações futuras?
JSP: Vivemos uma grave crise na sociedade brasileira, com sérias ameaças à democracia e à civilização. Teremos tempos muito difíceis pela frente. Para que o SUS e o direito à saúde sejam preservados, mais do que nunca é necessário defender e exercitar a democracia, combatendo a barbárie.
Pergunta exclusiva do site
Como o senhor enxerga o futuro do SUS, tendo em vista as eleições 2018?
JSP: Mantida a EC-95, teremos um simulacro do SUS. A sigla pode persistir, parte dos serviços públicos talvez se mantenha aos trancos e barrancos, alguma saúde pública residual tende a ser acionada, mas não é o SUS que está na Constituição nem na legislação ordinária. Alguns candidatos apontaram a pertinência da revogação dessa emenda, embora dos pontos de vista jurídico e político não pareça uma missão fácil.
SAIBA MAIS
Leia a entrevista na íntegra no Portal do Idec.