Cultura de transparência
Nunca se falou tanto em transparência de dados públicos como nos dias atuais. Os escândalos envolvendo corrupção aguçaram a discussão sobre o tema, sobretudo, sobre os gastos do País com serviços públicos, já que o dinheiro sai do bolso de cada um de nós, cidadãos brasileiros. Em ano de eleições para presidente e governadores dos Estados, o assunto ganha ainda mais importância.
Nessa entrevista, concedida por e-mail, um dos mais antigos membros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro Mauro Luiz Campbell Marques, defende a transparência de dados públicos – o que coloca em prática em seu gabinete –, e uma mudança cultural para que a sociedade brasileira cobre isso dos órgãos públicos.
Por que é importante que o cidadão fique atento aos dados dos serviços públicos, principalmente aos da Justiça?
Mauro Luiz Campbell Marques: Eis um ponto que precisa evoluir bastante, a começar por esclarecer desde os bancos escolares o papel do Judiciário na vida cotidiana de todos nós. Isso fará com que a cobrança por uma prestação de serviço jurisdicional qualificada e célere passe a ser rotineira e construtiva. Para tanto, devemos ter como base o que está na Constituição e no modelo de Judiciário por ela constituído, nunca pelo que cada um de nós, juízes, idealiza para a Justiça. Dito de outra forma, nós, juízes, devemos ser os primeiros a dar exemplos de cumprimento da Constituição e demais Leis, ao mesmo tempo em que temos de demonstrar serenidade, equilíbrio, qualificação técnica, humildade, sensatez e, sobretudo, coragem, ao ponto de fazer cumprir a Lei sem pudores. Não podemos buscar o apoio popular para dar sustância ao nosso mister julgador, tampouco podemos nos submeter à vontade popular quando se trata de processos subjetivos. Somente na jurisdição constitucional restrita é que alguns temas devem sofrer a influência do sentimento popular e, mesmo assim, com a temperança técnica para angariar virtudes ao julgamento.
Como os diferentes setores da sociedade – educação, saúde, transportes etc. – podem melhorar a forma como compartilham seus dados com os cidadãos?
MLCM: Penso que dentre os setores acima exemplificados devemos incluir também a “segurança pública”. Entendo que é necessário requintar a forma didática de exposição dos dados. Para tanto, creio que o Ministério Público deve exercer seu papel de cobrar tal conduta do Poder Público.
Mas de nada adianta os órgãos públicos serem transparentes se não houver interesse por essas informações. Pensando em toda a população brasileira, qual seria o nível de interesse dos cidadãos por esses dados?
MLCM: Certamente, a população vem mudando sua postura e aprendendo a cobrar o retorno dos elevados impostos que paga. O problema é quando isso ruma para o ódio, a desagregação e o maniqueísmo. Ou seja, a cobrança desses dados deve ser feita pelas vias legais e democráticas, e jamais envolver vandalismo, depredação de bens públicos e outros meios marginais à Lei.
Estudos de gestão pública sugerem que a transparência dos dados de desempenho permite melhorar a gestão e aumenta a participação/importância do cidadão na vida pública. O senhor concorda?
MLCM: Concordo integralmente. Certa feita, um articulista renomado redigiu um artigo expondo dados estarrecedores sobre a gestão de um tribunal brasileiro, e logo houve quem, desse tribunal, tivesse a ideia de processar o redator. Mas em boa hora, um integrante do tribunal ousou discordar e indagou ao presidente da tal Corte se os dados expostos no famigerado artigo seriam verdadeiros. A resposta foi positiva, e o deslindamento foi a cobrança de uma melhor gestão pública no âmbito dessa Corte e mais transparência. Não vejo alternativa mais eficiente e célere para a aferição de uma prestação de serviços senão a de fazer transparecer os dados da administração, continuadamente. Os benefícios vão aflorar naturalmente, e as soluções antes tidas por inexequíveis passarão a ser executadas rotineiramente. Tomemos por exemplo o trabalho desenvolvido pela área de gestão ambiental do STJ [Superior Tribunal de Justiça]: a simples transparência dos dados de utilização de papel, toner para impressoras, copos de plástico, dentre outros itens, fez com que uma salutar disputa se instalasse entre os gabinetes. E quem ganhou com isso foram os contribuintes.
O senhor defende a transparência de informações não apenas no discurso, mas na prática. O seu gabinete tem as “contas abertas”, ou seja, divulga tudo o que é feito, julgado, o que chegou para julgar, o que falta etc. Sabemos que “abrir as contas” não se trata apenas de uma simples reforma administrativa. Como foi o processo para essa “abertura”? O que foi necessário?
MLCM: Penso ser inerente à gestão pública a transparência de seus dados, até para que os integrantes da equipe de gestão sintam-se corresponsáveis pelo êxito dela e a aperfeiçoem continuamente. Para isso, é necessário que o gestor crie um ambiente propício a tais práticas, fomentando a camaradagem e estimulando o comprometimento de toda a equipe. Feito isso, o resultado é a satisfação do destinatário do serviço público. É obvio que, para os gestores que não têm compromisso com os princípios da publicidade e transparência, o processo de abertura sempre será mais dificultoso. Por isso foi necessário promulgar a Lei de Acesso à Informação, para que a sociedade tenha ciência de como, quando e onde estão sendo aplicados os recursos públicos.
Com base na sua experiência, o que é possível fazer em prol da transparência? Quais os desafios?
MLCM: Devemos estimular a população a cobrar transparência, pois de nada adianta cobrarmos da administração que transpareça dados se nós não os avaliarmos ou nos limitamos a reclamar pontualmente sempre que enfrentarmos alguma dificuldade nos balcões administrativos. Os desafios são culturais. Temos de evoluir como cidadãos e, assim, constranger somente os que merecem ser submetidos ao constrangimento. Essa qualificação na análise dos dados transparecidos e a consequente indução de políticas públicas estimulará o câmbio cultural.
Não basta disponibilizar as informações se elas não forem compreensíveis. Elas precisam ser claras para os cidadãos, conforme prevê o Decreto no 6.932/2009, que institui a Carta de Serviços ao Cidadão. Isso é possível, na prática, considerando que a gestão governamental é algo complexo?
MLCM: Por mais que priorizemos o esclarecimento dos dados, diante da complexidade de uma administração, haverá sempre setores cujos dados expostos serão mais difíceis de assimilar. O mais importante é que o cidadão busque sindicar melhor as informações para ajudar a qualificar a gestão pública.
DEVEMOS ESTIMULAR A POPULAÇÃO A COBRAR TRANSPARÊNCIA, POIS DE NADA ADIANTA COBRARMOS DA ADMINISTRAÇÃO QUE TRANSPAREÇA DADOS SE NÓS NÃO OS AVALIARMOS OU NOS LIMITARMOS A RECLAMAR PONTUALMENTE SEMPRE QUE ENFRENTARMOS ALGUMA DIFICULDADE NOS BALCÕES ADMINISTRATIVOS
O governo lançou o Portal da Transparência – ligado ao Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União – no qual os cidadãos podem pesquisar despesas, receitas, empresas punidas, impedidas, sancionadas, entre outros dados. Como o senhor avalia essa iniciativa? MLCM: Foi uma salutar inciativa, e espero que esse portal reflita os anseios de transparência de toda a sociedade brasileira.
A Lei de Acesso à Informação (LAI) é outra ferramenta disponibilizada aos cidadãos. O senhor acha que a população e os órgãos de imprensa, por exemplo, tem sabido usar esse mecanismo? E as instituições que precisam divulgar seus dados têm contribuído ou dificultado o uso dela?
MLCM: Penso que há um nítido processo de evolução desse exercício de cidadania de controlar a prestação de serviços públicos através do livre acesso aos dados administrativos da gestão pública. Também é de fácil conclusão que tal evolução leva ao melhor respeito, por parte do poder público, à Lei de Acesso à Informação, com requintes de detalhamento capazes de franquear de forma mais didática as devidas informações. Porém, não estou afirmando que a situação já está bastante evoluída, há ainda um longo caminho a ser percorrido.
Um assunto bastante debatido quando se fala da LAI é o limite entre o direito à informação e à privacidade. Como o senhor vê esse “dilema”, visto que não temos uma Lei que regulamente o direito à privacidade?
MLCM: A resposta está na Lei, e esta fez questão de indicar as balizas e as raras exceções. Portanto, não estando a informação solicitada entre as exceções, a regra geral de acesso pleno deverá ser aplicada.
A internet é uma poderosa ferramenta para a divulgação de dados públicos. Mas vivemos em um país onde nem todo mundo tem acesso a ela. Como envolver todos os cidadãos nas atividades do setor público, de forma que exerçam a sua cidadania num Estado democrático de direito, considerando esse fator?
MLCM: Há órgãos públicos que devem ser veículos propagadores do acesso às informações governamentais. Cito o Ministério Público e a Defensoria Pública, pelo relevante serviço social intrínseco a eles. Registro que o Prêmio Innovare já laureou o Ministério Público de Rondônia por ter colocado totens à disposição do público nas comarcas longínquas do Estado amazônico.
Como o Brasil está em relação a outros países no quesito transparência de informações. O senhor teria exemplos de países que estão melhores do que o Brasil e nos quais poderíamos nos inspirar? E exemplos de países mais atrasados do que o Brasil nesse quesito?
MLCM: Existem fatores sociais, culturais, dentre outros, que influenciam diretamente a postura dos governantes em relação à transparência. Nesse sentido, basta observar os Estados Unidos, onde é tradição que associações não governamentais fiscalizem as ações governamentais. Bem diferente da experiência brasileira, bastante modesta nessa seara. Não obstante, vale ponderar também, em contraponto, que a Suíça e os Estados Unidos lideram o ranking dos países com menor transparência fiscal do mundo, de acordo com relatório elaborado pela Tax Justice Network, rede internacional independente que, desde 2003, avalia o nível de sigilo bancário dos países. O sigilo bancário facilita delitos financeiros e fluxos ilícitos, o que inclui práticas como lavagem de dinheiro, corrupção e evasão fiscal. Posso citar como exemplos inspiradores a Suécia, a Noruega, o Reino Unido e a Alemanha. E como exemplos a não serem seguidos, Angola, Somália, Coreia do Norte e Síria.
PENSO SER INERENTE À GESTÃO PÚBLICA A TRANSPARÊNCIA DE SEUS DADOS, ATÉ PARA QUE OS INTEGRANTES DA EQUIPE DE GESTÃO SINTAM-SE CORRESPONSÁVEIS PELO ÊXITO DELA E A APERFEIÇOEM CONTINUAMENTE