Cruzada pela saúde
No passado, pandemias de doenças contagiosas dizimaram populações inteiras. Com o avanço da ciência, esses riscos foram sendo superados. Atualmente, porém, são as chamadas doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como hipertensão, diabetes e câncer – relacionadas à obesidade –, que assombram o mundo. Não existe vacina para controlar essa epidemia global, mas há prevenção: entre elas, políticas públicas que promovam a alimentação saudável. É com esse intuito que a Bloomberg Philanthropies, organização sem fins lucrativos com sede em Nova York (EUA), financia iniciativas em diversos países – entre eles o Brasil – desde 2012. O Idec é uma das organizações apoiadas nessa empreitada.
Nesta entrevista cedida por e-mail, Kelly Henning, líder do Programa de Saúde Pública da organização, explica as principais estratégias para combater a epidemia mundial de obesidade e frear o avanço das DCNTs, comenta as medidas que vêm dando certo, bem como os desafios para enfrentar a influência da poderosa indústria global de alimentos e bebidas não saudáveis.
Quais são as principais frentes e formas de atuação do Programa de Saúde Pública da Bloomberg Philanthropies para frear a epidemia global de obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis?
Kelly Henning:O programa teve início em 2012, no México e, desde então, expandiu-se para Brasil, Colômbia, Jamaica e África do Sul. Seu objetivo é responder às crescentes taxas de obesidade e de doenças a ela relacionadas em países de baixa e média renda com políticas públicas; e, uma vez implementadas, avaliar rigorosamente os impactos dessas medidas.
Apoiamos organizações da sociedade civil que defendem políticas para prevenir e controlar a obesidade, entre as quais destacam-se a adoção de impostos sobre bebidas açucaradas [como refrigerante e suco de caixinha] e alimentos não saudáveis; rotulagem nutricional adequada na parte da frente da embalagem; restrições ao marketing de alimentos e bebidas dirigido a crianças; e melhorias no ambiente escolar. Essas medidas mostram-se as mais promissoras para controlar e reverter o aumento das taxas de obesidade.
Quais particularidades e desafios vocês veem no cenário brasileiro em comparação com os demais países abrangidos pelo programa?
KH: Estamos orgulhosos de apoiar os esforços de prevenção da obesidade no Brasil, que tem uma rica história de políticas progressistas para prevenção da obesidade e promoção da alimentação saudável. Essas medidas vão desde diretrizes sobre a merenda escolar e o Guia Alimentar para a População Brasileira, reconhecidos mundialmente, até a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que protege as crianças do marketing de produtos não saudáveis. Vemos o Brasil como um líder na região. As próximas eleições, assim como o cenário de incerteza política, são desafios para os defensores da saúde pública no País. Outro desafio, que infelizmente não é exclusivo dos brasileiros, é a interferência da indústria na elaboração de políticas de saúde.
Por que a Bloomberg decidiu apoiar o trabalho do Idec no Brasil? Qual é a importância de ter uma organização de defesa do consumidor atuando na pauta de saúde pública?
KH: O Idec tem uma longa história na defesa dos consumidores brasileiros, inclusive na área de políticas para a alimentação saudável. As organizações de defesa do consumidor têm os interesses do público no coração, o que traz credibilidade e é fundamental para o sucesso desse tipo de medida. Estamos entusiasmados em apoiar os esforços do Idec nessa área, pois sabemos do impacto dessas políticas na redução da demanda dos consumidores por alimentos e bebidas não saudáveis.
A Bloomberg também incentiva campanhas midiáticas e a cobertura da imprensa para promover a agenda de saúde pública. Quais são os objetivos dessa estratégia?
KH:Reconhecemos a importância de envolver o público nesse debate. Infelizmente, a discussão sobre ambientes alimentares pouco saudáveis e saúde pública ainda está em estágio inicial em muitos países. Grande parte do público é bombardeada com anúncios que contêm informações enganosas, que não são contrabalançadas por informações claras e baseadas em evidências científicas. Assim, ainda falta uma compreensão clara dos efeitos nocivos de muitos produtos disponíveis no mercado. Por isso apoiamos campanhas na mídia para ajudar o público em geral a compreender a raiz do problema e a importância da prevenção da epidemia de obesidade.
GRANDE PARTE DO PÚBLICO É BOMBARDEADA COM ANÚNCIOS COM INFORMAÇÕES ENGANOSAS. ASSIM, AINDA FALTA UMA COMPREENSÃO CLARA DOS EFEITOS NOCIVOS DE MUITOS PRODUTOS DISPONÍVEIS NO MERCADO
Quais são os obstáculos que os países assistidos pelo programa têm enfrentando para avançar com a agenda de saúde pública, sobretudo a prevenção da obesidade?
KH: Cada país é único. No entanto, observamos que todos eles enfrentam um grande adversário comum: a indústria de alimentos e bebidas. A indústria procura minar as campanhas da sociedade civil para prevenção da obesidade e os esforços políticos que podem conter a epidemia. Ela também questiona a ciência regularmente e trabalha para reduzir o impacto das medidas sugeridas.
E quais são as medidas que mais têm dado certo? Já existem resultados concretos?
KH: Estudos sobre a tributação de bebidas açucaradas no México e na cidade de Berkeley, na Califórnia [EUA], mostram que a medida é efetiva e vem reduzindo a venda desses produtos, que comprovadamente contribuem para o ganho de peso e para a obesidade. As pesquisas também mostram que, nesses locais, as pessoas estão optando por alternativas saudáveis, como água; e que a redução na venda de bebidas açucaradas não está afetando o emprego e o lucro do comércio.
As políticas de prevenção da obesidade ainda são relativamente novas. Nos próximos anos, a avaliação dos impactos do aumento do imposto sobre bebidas açucaradas na Filadélfia [EUA] e na África do Sul, assim como da lei de rotulagem e de comercialização de alimentos não saudáveis do Chile, vão contribuir com evidências importantes para a literatura sobre o tema.
Em janeiro, a Bloomberg lançou uma força-tarefa para enfrentar as doenças crônicas por meio de políticas fiscais. Que tipo de medida fiscal pode ser adotado e por que essa estratégia ainda é subutilizada pelos governos?
KH: Essa força-tarefa será focada em tributos que incidem sobre produtos em prol da saúde pública. Há provas suficientes em todo o mundo que mostram que aumentar o preço do tabaco e do álcool através do aumento de impostos reduz o consumo. Para as bebidas açucaradas, há cada vez mais evidências de que a tributação contribui no mesmo sentido. Os impostos sobre esses produtos são muito baixos na maioria dos países e, portanto, há uma oportunidade para aumentá-los e, assim, salvar vidas.
Existem dados sobre quanto os países poderiam economizar com gastos em saúde pública se investissem mais em estratégias para prevenção de DCNTs e na promoção da alimentação saudável?
KH: Estima-se que países de baixa e média renda sofram prejuízos de 500 bilhões de dólares por ano em decorrência de DCNTs. Evidências disponíveis mostram que a adoção de políticas como rotulagem adequada, taxação e restrição ao marketing de alimentos e bebidas não saudáveis pode melhorar o ambiente alimentar e facilitar dietas mais saudáveis. Por meio de estudos, prevemos que o benefício dessas medidas a longo prazo é a redução da ocorrência dessas doenças crônicas e dos custos a elas relacionados. Por exemplo, no México, uma redução permanente de 10% no consumo de bebidas açucaradas entre 2013 e 2022, por conta da taxação desses produtos, resultaria em uma economia de 983 milhões de dólares.
O programa de controle do tabaco realizado pela Bloomberg há 16 anos provocou mudanças nas políticas públicas em diversos países. Como a luta contra o tabaco pode ajudar no enfrentamento da epidemia global de obesidade?
KH:Há décadas, há evidências que mostram quais políticas funcionam para controlar o consumo de tabaco. Elas foram utilizadas pela OMS [Organização Mundial da Saúde] para desenvolver um “pacote” com as seis estratégias mais eficazes para o controle do tabagismo. Existe certa congruência entre as políticas efetivas de controle do tabagismo e as evidências emergentes sobre prevenção da obesidade. Por exemplo, em relação à tributação dos produtos. O objetivo da Bloomberg é produzir evidências científicas sobre políticas efetivas de alimentação e nutrição adotadas no mundo para que possamos desenvolver um pacote de medidas parecido com o do tabaco para a prevenção da obesidade.
Além disso, tanto o controle do tabagismo quanto a prevenção da obesidade têm grandes indústrias como oponentes e, pelo que podemos perceber, os fabricantes de alimentos e bebidas interferem na formulação de políticas públicas para o setor da mesma maneira que a indústria do tabaco.
E quais são as medidas que mais têm dado certo? Já existem resultados concretos?
KH: Estudos sobre a tributação de bebidas açucaradas no México e na cidade de Berkeley, na Califórnia [EUA], mostram que a medida é efetiva e vem reduzindo a venda desses produtos, que comprovadamente contribuem para o ganho de peso e para a obesidade. As pesquisas também mostram que, nesses locais, as pessoas estão optando por alternativas saudáveis, como água; e que a redução na venda de bebidas açucaradas não está afetando o emprego e o lucro do comércio.
As políticas de prevenção da obesidade ainda são relativamente novas. Nos próximos anos, a avaliação dos impactos do aumento do imposto sobre bebidas açucaradas na Filadélfia [EUA] e na África do Sul, assim como da lei de rotulagem e de comercialização de alimentos não saudáveis do Chile, vão contribuir com evidências importantes para a literatura sobre o tema.
Em janeiro, a Bloomberg lançou uma força-tarefa para enfrentar as doenças crônicas por meio de políticas fiscais. Que tipo de medida fiscal pode ser adotado e por que essa estratégia ainda é subutilizada pelos governos?
KH: Essa força-tarefa será focada em tributos que incidem sobre produtos em prol da saúde pública. Há provas suficientes em todo o mundo que mostram que aumentar o preço do tabaco e do álcool através do aumento de impostos reduz o consumo. Para as bebidas açucaradas, há cada vez mais evidências de que a tributação contribui no mesmo sentido. Os impostos sobre esses produtos são muito baixos na maioria dos países e, portanto, há uma oportunidade para aumentá-los e, assim, salvar vidas.
Existem dados sobre quanto os países poderiam economizar com gastos em saúde pública se investissem mais em estratégias para prevenção de DCNTs e na promoção da alimentação saudável?
KH: Estima-se que países de baixa e média renda sofram prejuízos de 500 bilhões de dólares por ano em decorrência de DCNTs. Evidências disponíveis mostram que a adoção de políticas como rotulagem adequada, taxação e restrição ao marketing de alimentos e bebidas não saudáveis pode melhorar o ambiente alimentar e facilitar dietas mais saudáveis. Por meio de estudos, prevemos que o benefício dessas medidas a longo prazo é a redução da ocorrência dessas doenças crônicas e dos custos a elas relacionados. Por exemplo, no México, uma redução permanente de 10% no consumo de bebidas açucaradas entre 2013 e 2022, por conta da taxação desses produtos, resultaria em uma economia de 983 milhões de dólares.
O programa de controle do tabaco realizado pela Bloomberg há 16 anos provocou mudanças nas políticas públicas em diversos países. Como a luta contra o tabaco pode ajudar no enfrentamento da epidemia global de obesidade?
KH: Há décadas, há evidências que mostram quais políticas funcionam para controlar o consumo de tabaco. Elas foram utilizadas pela OMS [Organização Mundial da Saúde] para desenvolver um “pacote” com as seis estratégias mais eficazes para o controle do tabagismo. Existe certa congruência entre as políticas efetivas de controle do tabagismo e as evidências emergentes sobre prevenção da obesidade. Por exemplo, em relação à tributação dos produtos. O objetivo da Bloomberg é produzir evidências científicas sobre políticas efetivas de alimentação e nutrição adotadas no mundo para que possamos desenvolver um pacote de medidas parecido com o do tabaco para a prevenção da obesidade.
Além disso, tanto o controle do tabagismo quanto a prevenção da obesidade têm grandes indústrias como oponentes e, pelo que podemos perceber, os fabricantes de alimentos e bebidas interferem na formulação de políticas públicas para o setor da mesma maneira que a indústria do tabaco.
A América Latina está sendo pioneira na adoção de políticas de regulação de alimentos. Ao mesmo tempo, a região sofreu, nas últimas décadas, forte aumento das taxas de obesidade, com uma transição rápida do cenário de subnutrição para o de sobrepeso. Há relação entre os dois fatos?
KH: À medida que ocorre uma transição de dietas tradicionais, baseadas em comida de verdade, para o consumo de produtos ultraprocessados – ricos em calorias, açúcar, sal e gordura –, vemos aumentos bruscos nas taxas de obesidade. Infelizmente, em alguns casos, o aumento da obesidade é acompanhado da permanência da subnutrição, porque os produtos ultraprocessados não oferecem micronutrientes essenciais. O chamado duplo fardo da má alimentação pode ser revertido por meio de mudanças nas políticas públicas – muitas das quais estão sendo defendidas em toda a América Latina –, que ajudarão a substituir o ambiente obesogênico por um ambiente alimentar que facilite a alimentação saudável e nutritiva.
O Chile, em particular, destaca-se pela recente implementação de uma lei que tem sido considerada por especialistas como a mais ambiciosa do mundo para restaurar a cultura alimentar local e frear a obesidade a longo prazo. Você acredita que o modelo chileno será seguido por outros países?
KH: A lei chilena, que exige selos de advertência no rótulo de alimentos ricos em calorias, açúcar, gorduras saturadas ou sal, restringe a comercialização desses produtos e os mantém fora das escolas, é, de fato, uma das mais abrangentes políticas nacionais de prevenção da obesidade. Como é uma lei pioneira, estamos apoiando parceiros no Chile para avaliá-la de forma abrangente ao longo de vários anos.
Já estamos vendo muitos países, na América Latina e em outras regiões, olhando para o modelo do Chile ao avaliar a adoção de políticas de prevenção da obesidade.
Como está o cenário de prevenção da obesidade e das doenças crônicas nos Estados Unidos, sede da Bloomberg? O governo Trump tem mudado também as políticas nessa área?
KH: A obesidade e as doenças a ela relacionadas têm sido problemas persistentes de saúde pública nos Estados Unidos. Um terço dos adultos e 17% das crianças e adolescentes são obesos. Existem disparidades significativas entre os grupos raciais e étnicos, bem como entre os estratos socioeconômicos: as taxas de obesidade são mais altas entre negros e latinos do que entre brancos, e maiores também entre a população de baixa renda.
Atualmente, não há um movimento nacional para promover políticas de saúde pública nos Estados Unidos. No entanto, há um progresso importante acontecendo localmente: há três anos, nenhuma cidade norte-americana tinha imposto sobre bebidas açucaradas, e agora sete cidades adotam a medida. Apesar dessa importante vitória política, a prevalência da obesidade ainda é muito alta no País. Portanto, é preciso fazer mais para reverter essa tendência.