Superendividado é bom pagador
O consumidor superendividado é um bom pagador, e a inadimplência é, às vezes, o remédio que poderia evitar essa situação extrema; na hora de escolher entre muitas dívidas a pagar, deve-se priorizar não as com juros mais altos, mas as que vão garantir qualidade de vida; o crédito consignado é o maior vilão do superendividamento no Brasil.
Essas ideias fogem do senso comum, mas são fundamentais para entender tanto o que leva um indivíduo a ficar atolado em dívidas quanto o que pode ajudá-lo a sair dessa situação. As análises são da defensora pública Patrícia Cardoso Tavares, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que mantém desde 2005 a Comissão de Prevenção e Tratamento ao Superendividamento.
Nesta entrevista, Tavares explica como funciona o atendimento da comissão para renegociação de dívidas e defende que defensorias e Procons se unam no trabalho de prevenção e assistência ao superendividado.
Qual é a diferença entre uma pessoa endividada e uma superendividada?
Patrícia Cardoso Tavares: Todos nós somos endividados em certo grau, porque temos sempre dívidas para pagar. Mas existem pessoas que estão endividadas numa tal grandeza que não conseguem subsistir. Todo o dinheiro que recebem, e às vezes até mais, vai para o pagamento das dívidas. Existe um conceito do superendividado: uma pessoa de boa fé, que possui dívidas que ultrapassam em muito a sua renda, retirando o mínimo de dignidade para sua sobrevivência.
Qual é o perfil do superendividado? É uma pessoa irresponsável?
PCT: Existe muito preconceito em relação a essa pessoa. A sociedade e as próprias instituições públicas entendem que é uma pessoa desorganizada, que gasta mais do que pode e que, por isso, está naquela situação. É uma ideia errada, estereotipada. O superendividado não é uma pessoa de má fé. Na maioria das vezes, ele chega a esse ponto porque não quer ficar inadimplente. Se ele tivesse deixado a primeira dívida do cartão de crédito para trás, não teria pego um empréstimo consignado para cobri-la, depois outro e outro. É muito fácil se superendividar no Brasil: uma ou duas escolhas financeiras erradas são o bastante.
Como a Defensoria identifica e atende essas pessoas?
PCT: O diagnóstico é muito preciso, pois cada pessoa é atendida individualmente: ela traz muitos documentos e responde a milhares de perguntas. O trabalho na Comissão de Prevenção e Tratamento ao Superendividamento é artesanal. São quatro casos novos por dia, porque cada defensor só consegue atender duas pessoas nesse período. O primeiro atendimento é muito longo. Muitas pessoas estão entrando em contato com o problema pela primeira vez. Elas chegam a um grau de desespero tão grande que, muitas vezes, não conseguem nem abrir o envelope de cobrança, trazem ele ainda lacrado.
Qual é a estrutura dessa comissão dentro do Nudecon?
PCT: Ela conta com dois defensores, uma funcionária de apoio e quatro estagiários. Só! E para educação financeira, temos um convênio com a Escola de Educação Financeira do Rioprevidência [Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro]. A escola é ligada ao Instituto de Previdência do Estado, do funcionalismo público estadual. Anos atrás, verificou-se que cada aposentado ou pensionista do Rio tinha, em média, dois ou três empréstimos consignados. Aí resolveram montar essa escola. Os professores são voluntários, e o diretor, Carlos Batalha, é funcionário do Rioprevidência. A gente dá aula e faz atendimento lá uma vez por mês, e eles dão aulas e fazem palestras para famílias aqui.
Você acha que o poder público está mal estruturado para dar suporte ao superendividado?
PCT: Acho que tem que ter vontade de fazer e material humano. E também um projeto por trás, com início, meio e fim. O Nudecon está estruturado para atendimento e conciliação. São setores diferentes, mas o atendimento apoia-se na conciliação, porque temos de oferecer um acordo real, que chegue a um valor que a pessoa possa pagar. E quem está atendendo tem que ter poder de demandar em juízo [entrar na Justiça]. Não adianta um órgão administrativo como o Procon fazer sozinho. O trabalho fica cortado.
O trabalho dos Procons e das defensorias no atendimento ao consumidor superendividado é diferente?
PCT: É. Eu defendo que os Procons e as defensorias se unam, até porque os públicos são parecidos. Os Procons fariam o atendimento administrativo e as conciliações; e a defensoria ajuizaria e acompanharia as ações. Isso não acontece porque as pessoas querem ser donas dos projetos, e os Procons são muito instáveis em suas coordenações porque são cargos políticos.
A estrutura que tenho aqui [no Nudecon] é mínima, mas é um privilégio. Acho exagerado dizer que o Estado não tem estrutura para atendimento aos superendividados, porque existem Procons e defensorias. Falta iniciativa para se unirem e montarem um projeto. Aqui, a comissão foi inaugurada em 2005, pouco depois da “pimentinha” jogada pelos empréstimos consignados, em 2003. Aliás, eu afirmo: o empréstimo consignado é um dos culpados pelo superendividamento no Brasil.
Por que o consignado é vilão?
PCT: Porque começaram a oferecer empréstimo acima do percentual permitido [em relação ao salário]. Do consignado pra cá, os contratos bancários passaram a ser todos feitos com desconto em conta corrente. É quase um outro tipo de consignado, porque ninguém consegue ficar inadimplente. Se o cliente não tiver dinheiro em conta pra pagar aquele CDC [crédito direto ao consumidor, o empréstimo mais tradicional] que fez, o banco desconta do seu cheque especial. E a pessoa paga juros duas vezes: do empréstimo e do cheque especial. Muitas vezes, para controlar o endividamento ou o superendividamento é preciso passar pela inadimplência.
O SUPERENDIVIDADO NÃO É UMA PESSOA DE MÁ FÉ. NA MAIORIA DOS CASOS, ELE CHEGA A ESSE PONTO PORQUE NÃO QUER FICAR INADIMPLENTE
Como uma proposta de renegociação de dívidas é montada?
PCT: Fazemos contato com credores separadamente. Não juntamos todos pra negociar as dívidas ao mesmo tempo, primeiro porque não temos condição de fazer isso, e também porque entendemos que separado é melhor. Quando o superendividado decide – a partir da análise feita aqui, muito profunda – quem ele vai pagar primeiro, ele traz para si o poder, e ele é quem vai escolher o primeiro passo. E o primeiro passo pode ser só mudar hábitos para sobrar dinheiro para negociar. Tem [consumidor] assistido que sai daqui só com a orientação de cortar a TV por assinatura para poder abrir uma possibilidade de renegociar; tem quem sai com a petição de limitação [de crédito consignado] pronta para entrar na Justiça; tem quem sai com a audiência de conciliação marcada.
Quais dívidas você acha que tem de pagar primeiro? As com juros muito altos? Não! São as dívidas que vão permitir viver com mais dignidade. E se a pessoa tem dívidas que estão tirando dinheiro diretamente do salário dela, são essas que ela tem de privilegiar. Pode significar, por exemplo, pagar o aluguel e não pagar o banco.
É artesanal e é complexo fazer isso, mas é muito eficiente. O superendividado faz essa mudança radical de vida com entusiasmo, deixa de ser coadjuvante nas decisões financeiras da vida dele e passa a ser protagonista.
O que você acha de propostas de renegociação feitas por bancos sem a presença de um defensor público?
PCT: Acho que tem sempre que ser feito com aconselhamento, com um profissional de proteção do consumidor, porque as pessoas muitas vezes se enfiam numa situação de superendividamento porque tomam decisões sem o auxílio de alguém.
Mas os grandes bancos privados estão mudando [seu comportamento], não estão mais emprestando como no passado. Já os bancos públicos são um desastre. Não veem os devedores pessoa física e não dão desconto na entrada de renegociação. Uma das causas do superendividamento é a não negociação de contratos ainda adimplentes. A pessoa vê o sinal vermelho acendendo, vai ao banco negociar, e nada.
Vai entrar em vigor um normativo da Febraban [Federação Brasileira de Bancos] orientando os bancos a negociarem contratos adimplentes. Isso pode ser um divisor de águas. Essa prática é oriunda do dever de cooperação previsto no Código de Defesa do Consumidor. O banco deve observar quando aquela pessoa está perdendo a capacidade de pagamento por conta das circunstâncias e redefinir os termos daquilo que foi pactuado lá atrás. Se deixar, vai colher inadimplência. E a opção de dar continuidade a um contrato, mesmo em outras bases, mas adimplente, é mais vantajoso para o banco, é mais inteligente.
Agora, existe uma barreira ainda muito difícil, quase intransponível, que é o consignado. Os bancos não querem negociar porque já emprestaram com juros mais baixos e têm total garantia do recebimento. E tem ainda o cartão consignado, cuja comercialização deveria ser proibida.
Não há nenhum projeto de lei no Brasil que organize um sistema de proteção ao superendividado?
PCT: O PL [projeto de lei] de atualização do Código de Defesa do Consumidor [no 3515/2015] tem uma seção sobre o superendividamento. Está tramitando há anos, a passos de cágado. O texto original era mais voltado para uma solução vinda do Poder Judiciário, mas na última redação que li, se prestigiavam as conciliações e soluções promovidas pelos órgãos de defesa do consumidor. Mas não tem nenhum parágrafo que diga que o Estado tem de manter um serviço de atendimento ao superendividado.
Você arrisca dizer qual seria a tendência para 2018?
PCT: Com a crise atual no Rio, os dois últimos anos foram os piores para a comissão, porque tem muito funcionário público enrolado no consignado, sem receber salário. Sinceramente, não vejo perspectiva de melhora a curto prazo. A situação é devastadora. Num Estado lotado de cargos públicos, antiga capital da República, ter funcionários públicos sem dinheiro significa arrasar com a economia.