O Exemplo Chileno
Desde junho de 2016, os consumidores do Chile têm um aliado na hora de escolher quais alimentos levar para casa. Trata-se de um selo preto, impresso em destaque na parte da frente da embalagem, que informa se o produto contém alto teor de sódio, açúcar ou gorduras. O selo é parte da chamada Ley de Etiquetados, que vem sendo elogiada mundialmente e servindo de inspiração para outros países atualizarem suas regras de rotulagem de alimentos, dentre eles o Brasil.
Para entender como foi o processo de aprovação dessa lei e quais estão sendo seus impactos, conversamos com a nutricionista Camila Corvalán, professora da Universidade do Chile, que esteve no Rio de Janeiro (RJ) em setembro para um congresso sobre alimentação e prevenção do câncer. Corvalán participou da discussão da norma e agora coordena uma série de pesquisas que estão avaliando os resultados de sua implementação. A expectativa é de que a lei contribua para controlar a incidência de obesidade e sobrepeso no País, problemas que afetam mais de 60% da população em geral e 25% das crianças – um dos piores índices do mundo.
Camila Corvalán: O Chile vem adotando, há muitos anos, diferentes medidas para frear a epidemia de obesidade. A primeira grande ação ocorreu há cerca de 15 anos, com a exigência de declaração dos nutrientes que compõem os alimentos no rótulo. Porém, estudos mostravam que as pessoas não entendiam a tabela nutricional. Cerca de uma a cada quatro pessoas conseguia compreender a ideia geral, e esse número baixava a uma proporção quase insignifican-
te nos estratos [da população] com menor nível educacional. Então, estava claro que era importante colocar no rótulo algum indicador mais gráfico e fácil
de compreender.
CC: Acredito que a regulação na área de alimentos envolve uma quebra de paradigma, o que demanda tempo e paciência. O Chile tem um cenário adverso à regulação: é um país com uma economia de livre mercado e com uma sociedade civil pouco participativa. Penso que o processo foi exitoso porque houve negociação. A lei aprovada no Senado trouxe apenas princípios, foi a primeira etapa. A responsabilidade de definir as regras foi dada ao Ministério da Saúde, que fez algo muito importante: convocou diferentes atores e gerou discussão interna no Governo, com oposição do Ministério da Economia e do Ministério da Agricultura. Nesse processo de negociação, algumas demandas foram perdidas, sendo a principal delas a aplicação imediata dos critérios estabelecidos para definir quais produtos devem receber os selos. O que se negociou com a indústria foi uma aplicação progressiva desses critérios durante quatro anos.
CC: A lei pretende atingir dois objetivos principais: diminuir os nutrientes críticos (açúcares, gordura saturadas e sal) nos produtos e melhorar a compreensão das pessoas na hora de escolher os alimentos. Uma das estratégias para isso é a etiquetagem frontal com um sinal de “pare”, que, no fundo, quer transmitir a mensagem: “consuma menos alimentos com selos e, oxalá, prefira alimentos naturais”. Outra estratégia é regular o marketing de alimentos, restringindo não somente a publicidade televisiva, como também campanhas promocionais para colecionar embalagens, por exemplo. O terceiro aspecto é tentar promover espaços escolares mais saudáveis. Para isso, a lei proíbe a venda e o marketing de alimentos considerados pouco saudáveis em escolas.
CC: Um dos principais objetivos da lei é que as pessoas possam se informar no momento da compra e escolher melhor os alimentos. Nesse sentido, dados preliminares mostram que 80% das mães e dos adolescentes entendem que quanto mais selos, menos saudável é o produto; e quase a totalidade declara considerar muito bom que o governo forneça informações em relação à qualidade nutricional dos alimentos. A porcentagem de pessoas que estão utilizando atributos nutricionais para escolher alimentos aumentou de 25% a 35% no primeiro ano de implementação da lei, enquanto os atributos associados ao marketing, como a marca, vêm caindo, particularmente entre as mães; e cerca de 40% ou 50% das pessoas mencionam que utilizam o selo para definir se o alimento é saudável ou não.
CC: A avaliação é bem global: inclui a reformulação de produtos, a aplicação do selo, estratégias de marketing etc. Também vamos verificar mudanças de preço, assim como a percepção da população. Uma das questões mais importantes a serem analisadas é a equidade propiciada pela regulação, ou seja, como a percepção da norma varia dentro dos segmentos socioeconômicos. O Chile fez muitos avanços para superação da pobreza, mas lamentavelmente ainda somos um dos países mais desiguais do mundo, assim como são nossas políticas de saúde e de alimentação. Por isso decidimos fazer nossos estudos quantitativos com os estratos socioeconômicos médio e baixo, porque são onde as mudanças devem causar maior efeito.
AS CRIANÇAS ESTÃO COMEÇANDO A ENTENDER QUE NÃO DEVEM CONSUMIR PRODUTOS COM SELOS E QUE DEVEM DAR PREFERÊNCIA A ALIMENTOS NATURAIS. ISSO ME PARECE UM RESULTADO MUITO POTENTE NO LONGO PRAZO
CC: Estamos avaliando ainda. Então, por enquanto, só temos dados da própria indústria, de que cerca de 20% dos alimentos teriam sido reformulados. Na semana passada [meados de setembro], a Coca-Cola anunciou que está diminuindo em 50% o açúcar da Fanta e da Sprite, e que irá reformular de 50% a 60% dos produtos que oferta no Chile.
CC: Acredito que há consequências indesejadas em qualquer regulação de saúde pública. Estamos tentando gerar um indicador para o uso de edulcorantes e outros aditivos. Os edulcorantes são os mais conhecidos, mas os alimentos processados contêm uma série de ingredientes prejudiciais à saúde. O Ministério da Saúde chileno está interessado nesse tema e convocou, há algumas semanas, um comitê de especialistas para discuti-lo. É um assunto muito complexo, que envolve muitas questões em relação aos níveis de toxicidade e às recomendações de uso. Há também um aspecto relacionado à [formação de] preferências alimentares, principalmente com o uso de edulcorantes em produtos dirigidos às crianças, pois sabemos que eles são muito mais doces do que os açúcares. Provavelmente, o Ministério da Saúde fará recomendações sobre alergias alimentares e restrições ao uso [de adoçantes] em produtos dirigidos a menores de dois anos.
CC: A rotulagem frontal é uma das ações prioritárias, e acredito que irá acontecer na maioria dos países nos próximos anos, principalmente na América Latina. Creio que, com isso, vamos gerar um ponto de inflexão nas ações regulatórias para promover uma alimentação mais saudável. Nesse sentido, acho necessário haver uma articulação entre o governo e os agentes técnicos e acadêmicos para obter evidências para o desenvolvimento dessa política. Simultaneamente, é preciso trabalhar com a população para que ela perceba esse tipo de ação como um direito e demande mudanças aos tomadores de decisão. Muita gente diz que adotar essa rotulagem é caminhar para um Estado paternalista, mas paternalismo é pedir às pessoas que comam sem saber o que comem. Então, é preciso reforçar a ideia de que saber o que comemos é um direito.
Além disso, recomendo unir forças de diferentes setores em relação à mensagem que a regulação pretende passar, que deve ser simples e concreta. Também é necessário um consenso quanto ao que é esperado da ação. O que estamos vendo no Chile é que alguns resultados parecem maravilhosos, mas, por outra perspectiva, podem não parecer tão positivos. Podemos dizer que 80% das pessoas reconhecem o selo, já a indústria argumenta que 20% das pessoas não o veem. Se não houver esse consenso, pode haver um discurso de que a política falhou. Outro bom conselho é adotar ações com resultados imediatos, porque os governos sempre estão dispostos a retroceder, lamentavelmente.
CC: O próximo passo é avaliar o que está ocorrendo em termos de equidade. A discussão mais importante agora é como assegurar dietas sustentáveis para toda a população chilena. Dentre as ações que precisam ser articuladas ou discutidas estão a modificação do programa de alimentação escolar e a adoção de imposto sobre açúcares – que, na verdade, gostaríamos que fosse sobre alimentos ultraprocessados. Enfim, há muito a se fazer ainda. Deve sair em breve uma nova pesquisa nacional sobre saúde alimentar e pode ser que estejamos novamente entre os quatro países com a maior taxa de obesidade do mundo. É isso o que queremos mudar.