Idec sugere modelo inovador de rotulagem de alimentos à Anvisa; proposta inclui advertências obrigatórias sobre excesso de nutrientes, além de letras maiores
Xarope de milho, fonte de fibras, contém glúten, gorduras saturadas, calorias por porção... Tudo isso em letras miúdas. Você provavelmente tem dificuldade de ler e, principalmente, entender as informações nutricionais no rótulo de alimentos. Pensando nesses problemas, o Idec apresentou uma proposta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de como essas informações devem ser exibidas na embalagem de produtos alimentícios. A reformulação das regras atuais está em discussão na agência.
De acordo com a nutricionista e pesquisadora do Idec Ana Paula Bortoletto, o atual modelo é ultrapassado e insuficiente para ajudar a população a fazer escolhas saudáveis. “Hoje, há uma grande confusão entre o que é informação e o que é publicidade, o que acaba fazendo o consumidor comprar um produto sem saber quais são as suas características reais e se ele é saudável ou não”, explica.
A principal mudança proposta pelo Idec é a inclusão de um selo de advertência na parte da frente da embalagem do produto, indicando eventual excesso dos nutrientes que mais impactam a saúde – açúcar, sódio, gorduras totais e saturadas –, além da presença de adoçante e gordura trans em qualquer quantidade. “Queremos mostrar para a população quais alimentos possuem perigos ‘ocultos’, ou seja, porções altas de nutrientes não saudáveis que os consumidores não conseguem identificar pela atual rotulagem”, diz Bortoletto.
A proposta é inspirada no modelo chileno, em vigor há pouco mais de um ano, mas com algumas diferenças. No Chile, são apenas quatro advertências – não há aviso sobre adoçantes nem gorduras totais e trans. Outra diferença é a inovação em aspectos gráficos. O Idec fez uma parceira com especialistas em design da informação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) para identificar a melhor forma de comunicar as advertências, e chegou ao formato de um triângulo – no Chile, usa-se o octógono, que imita a placa de trânsito “Pare” [veja abaixo].
De acordo com Carla Spinillo, pesquisadora de design da informação em saúde na UFPR, o triângulo é uma forma mais simples e fácil de ser entendida e, por convenção, é considerada símbolo de advertência. “Aparece em placas de sinalização, na tela do computador e nos produtos alimentícios que contêm transgênicos”, diz.
A cor escolhida para o triângulo foi o preto, para que haja mais destaque. “A indústria alimentícia usa nas embalagens cores quentes e vivas, como vermelho, laranja e amarelo, para atrair o consumidor”, explica Spinillo. “Além disso, o preto é a cor convencionada para comunicar algo que é de regulação governamental”, completa a pesquisadora. É o caso dos alertas em cigarros, por exemplo.
Critérios e outras mudanças
A proposta do Idec segue a classificação de alimentos da Organização Panamericana de Saúde (Opas). Assim, seriam obrigados a apresentar advertências apenas produtos processados e ultraprocessados – enlatados, pratos congelados, bebidas lácteas prontas, sucos de caixinha, refrigerantes etc. “São alimentos que merecem atenção por serem desbalanceados em relação ao conteúdo de nutrientes como açúcar, sódio e gordura”, explica a nutricionista do Instituto. Porém, nem todos os produtos dessas categorias teriam necessariamente os selos de alerta, apenas os que contivessem excesso de algum nutriente específico, de acordo com as recomendações nutricionais da Organização Mundial da Saúde (OMS)
Os alimentos in natura e minimamente processados, como vegetais, arroz, feijão e leite, não estariam sujeitos à rotulagem frontal, mesmo que embalados ou empacotados para comercialização. Nesse caso, eles – e todos os demais produtos embalados – trariam melhorias sugeridas pelo Idec na lista de ingredientes e na tabela nutricional, informações que já são obrigatórias hoje.
A lista de ingredientes ficaria posicionada em local de maior destaque, acima da tabela nutricional, com letra maior e mais contraste. O Idec sugere ainda que os ingredientes de natureza semelhante sejam agrupados (por exemplo, juntar todos os ingredientes fonte de açúcar adicionado) e sua nomenclatura padronizada. Hoje, por exemplo, o açúcar pode aparecer na lista como maltodextrina, sacarose, xarope, entre outros.
Em relação à tabela nutricional, a principal mudança seria a obrigatoriedade de discriminar o teor de açúcar livre. Hoje, apenas os carboidratos totais são obrigatórios. “O açúcar livre é um tipo de carboidrato específico associado a diferentes consequências negativas à saúde, como cáries, excesso de peso, obesidade e diabetes”, explica Bortoletto.
A tabela nutricional sofreria ainda outra alteração: as informações seriam apresentadas não mais por porção, mas por 100g e pela quantidade total da embalagem. Isso acabaria com a margem de manobra que a indústria tem para diminuir o tamanho da porção sugerida, de modo que o teor de nutrientes “indesejados” apareça igualmente em quantidades menores.
Por fim, a última alteração proposta pelo Idec incide sobre os chamados ingredientes culinários (produtos necessários para cozinhar, como sal, açúcar, óleo e azeite). Nesse caso, não haveria advertências sobre excesso – afinal, esses ingredientes não são consumidos puros – mas apenas um aviso para que sejam utilizados com moderação ao cozinhar e temperar. Bortoletto explica que, apesar de no Brasil existir o hábito de se utilizar bastante sal e açúcar nas receitas, esta não é a maior preocupação. “Sabemos que a ingestão de açúcar e sal está aumentando no País por causa do crescimento do consumo de ultraprocessados, com sal e açúcar embutidos”, explica.
Proposta da Indústria
A Anvisa mantém um grupo de trabalho desde 2014 para debater mudanças na rotulagem nutricional e, entre os participantes, além do Idec, estão representantes da indústria de alimentos. A proposta defendida por esse setor é um modelo de rotulagem frontal chamado “semáforo nutricional”, utilizado voluntariamente em países como o Reino Unido.
O semáforo atribui as cores vermelho, amarelo e verde para indicar, respectivamente, os conceitos de ruim, razoável e bom, de acordo com o teor de determinados nutrientes. Spinillo aponta que, embora o modelo tenha o propósito de ajudar o consumidor a identificar o quanto o alimento é saudável, ele tem sérias falhas, como a difícil comparação entre produtos. “Qual produto é mais saudável: o que apresenta dois amarelos e dois verdes ou o que tem três verdes e um vermelho? Eu não saberia responder”, destaca. Ela aponta ainda que, como o semáforo emprega cores “quentes e vivas”, comuns também nas embalagens, sua visualização fica prejudicada.
A pesquisadora da UFPR explica que a proposta do Idec em conjunto com a universidade e a da indústria têm abordagens totalmente distintas. “A nossa informa uma advertência, enquanto o semáforo fornece dados nutricionais gerais”, ela compara. Isso não foge muito do modelo atual e, pior, pode abrir margem para ser usado de forma marqueteira. Por exemplo, um refrigerante, produto que sabidamente deve ser evitado, ostentaria um semáforo verde denotando “pouca gordura”. Distorção ainda maior ocorreria com os refrigerantes “zero”, que ganhariam mais um símbolo verde – relativo a pouco açúcar –, a despeito da indesejável presença de adoçantes.
Outro problema é que as informações continuariam sendo apresentadas por porções, abrindo uma brecha para que um sinal vermelho fosse transformado em amarelo, por exemplo, simplesmente reduzindo a sugestão de porção a ser consumida. Spinillo conta que todos esses aspectos negativos já foram detectados em pesquisas nos países onde o semáforo nutricional é adotado. “Na verdade, a indústria está propondo o semáforo para evitar que a rotulagem de advertência seja adotada no Brasil, como foi no Chile”, analisa.
O grande ponto, segundo ela, é que as advertências vão impactar significativamente a decisão de compra do consumidor. “Mudar o comportamento do consumidor brasileiro para que faça escolhas mais saudáveis não é do interesse das grandes indústrias de ultraprocessados”, diz Spinillo. A nutricionista do Idec concorda e acrescenta que as empresas do setor apoiam o semáforo justamente por ser um formato que pode gerar dúvidas ao consumidor.
Quando muda?
Questionada pela Revista do Idec sobre o prazo para a revisão das regras de rotulagem, a Anvisa comunicou que “realizará no segundo semestre de 2017 reuniões para retomar a discussão do tema”, mas que não é possível precisar uma data. No entanto, Bortoletto, representante do Idec no grupo de trabalho do órgão, diz que a perspectiva é de que o modelo definido pela agência entre em consulta pública ainda este ano e que a nova resolução seja publicada em 2018.
A nutricionista diz estar confiante de que um modelo de advertência, como o proposto pelo Idec, seja adotado em detrimento da proposta mais frouxa da indústria. “Já há evidências muito contundentes de que esse modelo é melhor do que o semáforo nutricional. Vamos fazer muita pressão. Estamos na disputa e com chance de que algo bem próximo da nossa proposta seja aprovado”, diz.
Uma das iniciativas do Idec para conseguir aprovar sua proposta é a realização de pesquisas de opinião para apurar a percepção do consumidor sobre o modelo de rótulo frontal e as demais mudanças sugeridas. As etapas finais estavam em andamento quando esta edição foi fechada, mas os resultados preliminares já eram bem satisfatórios.
“Os indicadores de atenção, visibilidade, facilidade de leitura, compreensão da advertência e influência na decisão de compra tiveram nota positiva de 4,3 pontos, numa escala de 1 a 5 pontos. Esses resultados atestam não apenas a aceitação da nossa proposta, como também sua eficácia comunicativa”, antecipa a pesquisadora da UFPR. “Os consumidores relataram que usariam esse símbolo como um dos critérios para escolher um produto”, completa Bortoletto.