Telefone Móvel
Praga Silenciosa
Cobranças indevidas de serviços e de aplicações no celular, como jogos e notícias, estão expandindo no Brasil. Em 2016, foram registrados mais de 190 mil reclamações.
Operadoras estão incluindo nas linhas de celular serviços e aplicações pagos – como jogos, horóscopo e notícias – sem solicitação dos consumidores. Só em 2016, foram pelo menos 195 mil reclamações contra os chamados Serviços de Valor Adicionado
Quando a dona de casa Olívia Junqueira, de São Paulo (SP), recebeu um SMS anônimo em seu celular informando que ela havia acabado de contratar o serviço Minha Notícia, pelo valor de R$ 3,99 por semana, pensou que se tratava de propaganda, mensagem enviada por engano ou até mesmo algum “vírus” ou armadilha virtual – afinal, ela nunca solicitou ou efetuou tal contratação.
No entanto, e apesar de nunca ter utilizado o serviço de notícias, a cobrança semanal foi lançada em cinco faturas subsequentes de seu plano pós-pago, totalizando R$ 15,96 por mês – quase R$ 80 no período todo. Nas inúmeras vezes em que tentou solicitar à sua operadora de celular o cancelamento e a devolução do valor pago pelo serviço, ouviu como resposta que nada poderia ser feito, pois o serviço fora fornecido por outra empresa, e o cancelamento deveria ser solicitado diretamente ao fornecedor.
Depois de inúmeras tentativas, Junqueira lembrou-se do fatídico SMS, que, por sorte, ainda não havia apagado. Percebeu que, nele, havia também a “orientação” de responder com a palavra “sair” para cancelar o serviço. Só assim foi possível interromper a cobrança indevida.
Mesmo que tivesse chegado a recorrer à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a dona de casa provavelmente não teria tido melhor sorte. É que a Lei Geral de Telecomunicações estabelece que os Serviços de Valor Adicionado (SVAs) – nome sofisticado pelo qual são chamados os aplicativos e serviços pagos de games, horóscopo, notícias de futebol, cursos de idioma etc. fornecidos via celular – não são considerados serviços de telecom.
Na prática, isso significa que, hoje, a Anatel, órgão responsável por fiscalizar o setor de telecomunicações, não tem o poder de regular e punir operadoras que cometam irregularidades na oferta desse tipo de serviço. Atualmente, a indústria de SVAs é autorregulada – ou seja, adota regras criadas pelas próprias empresas do setor. Aqui no Brasil, em tese, vale o código de conduta criado pelo Mobile Entertainment Forum, grupo de empresas que desenvolvem aplicações para celular na América Latina. Porém, há sinais de que essas regras não são cumpridas.
Por exemplo, para que o serviço seja validado pelo consumidor, esse código de conduta diz que é obrigatório o “duplo aceite”, ou seja, o usuário deve confirmar duas vezes que quer de fato contratar o serviço. “Há inúmeros relatos de pessoas reclamando que não passaram por essa dupla etapa de contratação”, denuncia Rafael Zanatta, advogado e pesquisador em telecomunicações do Idec. “O usuário recebe mensagem oferecendo notícias sobre seu time de futebol com as opções ‘cancelar’ e ‘OK’. Ela dá um OK, pensando que se trata de um link para uma notícia e, pronto, contratou o serviço”.
MINA DE OURO
O caso de Junqueira está longe de ser uma exceção. Zanatta explica que, nos últimos três anos, as operadoras de celular vêm perdendo receita considerável com ligações, principalmente por causa da disseminação de aplicativos como o WhatsApp. “Para compensar essas perdas, as empresas estão se voltando para a rentabilização de pacotes de dados [acesso à internet] e para a oferta de SVAs”, diz o advogado.
O problema é que parte significativa dessa receita advém de contratações ilegais e práticas abusivas. Em fevereiro deste ano, a Anatel fez uma minuciosa extração dos dados de seus registros de reclamações e chegou a um número assustador: de 5% a 10% das 3,9 milhões de queixas recebidas de janeiro a outubro de 2016 dizem respeito a problemas com cobrança indevida de SVAs. Ou seja, no mínimo 195 mil (até possíveis 390 mil) casos foram registrados em um período de apenas 10 meses.
Em 2015, o Idec apurou denúncias sobre a cobrança indevida de um serviço de backup oferecido pela Tim, e constatou que apenas 10% dos usuários lesados solicitaram a devolução da cobrança indevida. Além disso, na maior parte dos casos, a operadora limitou-se a fazer a devolução simples, quando a lei prevê a restituição em dobro (veja, na página 23, orientações sobre seus direitos).
Assim, enquanto de um lado milhares de consumidores ficam no prejuízo, do outro, as operadoras parecem ter achado uma mina de ouro. Segundo balanços das operadoras Vivo, Tim e Oi – três das quatro maiores empresas do setor no País –, o nicho de SVAs representou sozinho uma receita de R$ 8,8 bilhões às empresas em 2016 – cerca de 10% a mais do que o registrado em 2015. Procurada, a Claro informou que essa informação não é aberta em seu balanço. “Os SVAs se transformaram em um problema grave, e essa indústria bilionária precisa ser adequadamente monitorada pela Anatel. É preciso saber quem opera nela, como os serviços são ofertados e definir códigos de conduta”, defende Zanatta.
PROPOSTAS NO CONGRESSO
Para acabar com a farra das teles com os SVAs, o Idec vem pressionando os parlamentares por mudanças na legislação, a fim de que fique claro que eles são serviços de telecom e que a Anatel tem o dever de criar regras específicas para eles.
Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos de lei (PLs) sobre o tema. Um deles, o PL no 7.851/2017, é bem recente (foi apresentado na primeira quinzena de junho) e propõe mudanças importantes. Ele reforça que qualquer cobrança em telefonia só pode ser feita mediante solicitação “expressa e inequívoca” de um serviço, e estabelece que caberá à Anatel elaborar um código de conduta a ser seguido pelos provedores de SVAs.
Mas o principal ponto do projeto, de acordo com Zanatta, é esclarecer que, uma vez que os SVAs são cobrados junto com os demais serviços de telecom (em fatura ou crédito pré-pago), as operadoras são, sim, responsáveis em caso de cobrança não autorizada. “Se for aprovado, o PL eliminará o argumento usado pelas teles, fixando uma regra de responsabilidade objetiva – ou seja, de que a operadora é responsável, independentemente de culpa”, explica o advogado. O projeto ainda acrescenta que as cobranças indevidas deverão ser suspensas sempre que forem contestadas pelo usuário, até que o caso seja resolvido.
A outra proposta sobre o tema, o PL no 3.272/2015, está mais adiantada (já passou por duas comissões), mas é mais tímida. O PL apenas obriga as operadoras a enviar informações sobre os serviços contratados com mais agilidade e clareza quanto a tarifas, preços, tempo de validade e instruções para contratação e cancelamento – mas apenas para planos pré-pagos.
O QUE A ANATEL TEM FEITO
Enquanto a solução na esfera legislativa não chega, a Revis- ta do Idec apurou o que a Anatel vem fazendo para remediar o problema que tem afetado tantos usuários de telefonia móvel no Brasil.
Elisa Leonel, superintendente de relações com os consumidores da agência, destaca que a cobrança desses serviços ocorre na fatura do celular ou em descontos nos créditos pré-pagos, “portanto, as operadoras são corresponsáveis”. Apesar desse reconhecimento, Leonel diz que ainda está elaborando um projeto com “medidas para corrigir a causa do problema”, sem dar mais detalhes sobre o plano.
De concreto, a Anatel informa que notificou as quatro maiores operadoras, questionando como ocorre o processo de contratação de SVAs, qual é a relação delas com as empresas que desenvolvem as aplicações e quem são exatamente esses parceiros. A agência já recebeu as respostas, mas ainda não divulgou o que foi alegado pelas operadoras.
PUNIÇÕES À VISTA?
Além da Anatel, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, também pode atuar para solucionar o problema dos SVAs. A reportagem apurou que o órgão elaborou um documento sancionatório sobre o tema, com diversas “obrigações de fazer e de não fazer” – isto é, proibições e obrigatoriedades a serem cumpridas pelas operadoras na comercialização desses serviços – depois de investigar o assunto por um ano e identificar inúmeras irregularidades.
As regras previstas no documento incluiriam informações mínimas a serem fornecidas na venda de um SVA, obrigatoriedade de duplo aceite pelo consumidor e proibição de oferta por meio de pop-ups, por exemplo. O processo está pronto e parado há mais de três meses aguardando ser assinado e publicado.
Questionada, a Senacon informou que os autos do processo estão “em fase final de instrução e deverão seguir posteriormente para decisão da diretora do DPDC [Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor]”. A Secretaria disse também que o departamento colheu as provas e ouviu as empresas, garantindo o direito de resposta e a ampla defesa.
COMO SE LIVRAR DA PRAGA
Como saber se contratei um SVA sem ter solicitado?
- No pré-pago, ao fazer uma recarga, verifique se há redução imediata de seus créditos, antes de usar o celular (seja ligação, mensagem ou acesso à internet). Se diminuir, algum serviço deve estar embutido na sua linha.
- No pós-pago, analise sua conta e verifique se há serviços desconhecidos.
- Cadastre-se na área do consumidor do site de sua operadora para ter acesso às informações detalhadas do seu plano, seja ele pré ou pós-pago. Você pode acessar sua conta a qualquer momento e verificar se há cobrança de serviços adicionados.
Descobri a cobrança de um SVA que não contratei. Quais são os meus direitos?
- Você tem direito de receber os valores pagos indevidamente em dobro, de acordo com o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
- Se desejar, tem direito de continuar recebendo o serviço sem pagar por ele. Pois, como não o solicitou, ele é considerado “amostra grátis”, segundo o CDC.
- Você não é obrigado a provar que não contratou o serviço. O “ônus da prova” é da operadora.
- lPara se prevenir, tire printscreen (foto da tela do celular) das mensagens recebidas com oferta de serviços e guarde como prova.
Como cancelar a cobrança e receber de volta o que paguei?
- Primeiramente, reclame à operadora, por meio de seus canais oficiais, e anote o protocolo do atendimento.
- Se não houver resposta adequada, acesse o site da Anatel (www.anatel.gov.br/consumidor/reclamacao) e clique em “registrar reclamação”. Você pode também baixar o aplicativo Anatel Consumidor no seu celular.
- Você também pode procurar o Procon da sua cidade para abrir uma reclamação ou registrar uma queixa no site consumidor.gov.br, plataforma oficial do Ministério da Justiça.
- Caso decida ir ao Juizado Especial Cível (JEC), leve seus documentos pessoais, protocolos de atendimento e demais provas. Não é preciso advogado para entrar com ação.
NÚMEROS
de 5% a 10% das 3,9 milhões de reclamações recebidas pela Anatel entre janeiro e outubro de 2016 foram sobre cobranças indevidas de SVAs
R$ 8,8 bilhões foi a receita da Oi, Tim e Vivo com SVAs em 2016