Cesáreas fora de controle
Regras para reduzir partos cirúrgicos desnecessários nos planos de saúde são avanço,mas ainda há muitos desafios para combater a epidemia de cesarianas no Brasil
De cada 10 brasileiros que nasceram na rede privada de saúde no Brasil em 2013, oito foram por cesariana. Com 84,5% de ocor-rências nos planos de saúde e 55% consi-derando a rede pública e privada, o Brasil atingiu um nível de partos cirúrgicos alarmantemente superior ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 15%. Não por acaso, a situação passou a ser classificada como epidemia. Quando realizada sem indicação, a cesárea representa riscos desnecessários à saúde da mulher e do bebê: aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios e triplica a chance de morte da mãe.
Nesse cenário, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se viu forçada a baixar uma norma para controlar essa epidemia nos planos de saúde – os principais responsáveis por colocar o País na posi-ção de campeão mundial de cesarianas. A Resolução Normativa (RN) no 368 entrou em vigor em julho de 2015 e, entre as principais medidas, garantiu às con-sumidoras o direito de saber o percentual de partos normais e cesáreas realizado por sua operadora, por médico e por hospital da rede de seu plano no período de um ano. A informação deve ser fornecida por escrito, em linguagem clara, no prazo de 15 dias úteis.
A norma também passou a exigir o fornecimento de documentos, como o cartão da gestante, com dados sobre a gravidez ao longo de todo o pré-natal, e a carta à gestante, com informações sobre os riscos da cesárea e os direitos da usuária, como ter acompa-nhante durante o parto. Além disso, os médicos foram obrigados a realizar o partograma, um documento que registra a evolução do parto, com dados sobre dilatação, contrações etc. para auxiliar, inclusive, a troca de plantão.
As regras já estão em vigor há mais de um ano e meio, mas até o fechamento desta edição, a ANS não havia divulgado se a norma está ajudando ou não a reduzir o número excessivo de cesáreas no Brasil. A reportagem fez essa pergunta à agência, que, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que um balanço da norma estava em produção, no fim de fevereiro, mas nenhum dado sobre a quantidade de cesarianas realizadas antes e após a adoção da norma foi antecipado à REVISTA DO IDEC.
Quem recebeu tais números previamente foi a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo Juvenal Borriello, diretor de Defesa e Valorização Profissional da entida-de, "houve uma pequena melhora" nas taxas de cesá-rea após a norma, mas ele não detalhou os resultados. Sem tais dados em mãos, a reportagem consultou especialistas de diversas áreas para saber como eles avaliam as medidas em vigor e para entender quais são os desafios para estancar a sangria desatada de cesá-reas no Brasil.
Doula: profissional cuja função é dar apoio e suporte físico e emocional à mulher antes, durante e após o parto. Utiliza técnicas não farmacológicas para alívio da dor e cria um ambiente acolhedor para o parto. Não possui necessariamente graduação na área da saúde, mas normalmente tem um curso de formação rápida.
Enfermeiro obstetra: graduado em enfermagem com pós-graduação em obstetrícia. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais, além de todas as atividades de enfermagem.
Obstetriz: profissional com graduação específica em obstetrícia e ênfase na promoção da saúde da mulher. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais.
Violência obstétrica: comportamentos e procedimentos inadequados realizados por profissionais de saúde durante a gestação, trabalho de parto, pós-parto etc. Esses tratamentos violam os princípios de atendimento humanizado e os direitos humanos. Por exemplo, intervenções médicas sem autorização da mulher, gritos, ofensas e ausência de alimentação ou água durante o trabalho de parto.
AVANÇOS E LIMITAÇÕES
Para Raquel Marques, mestre em saúde pública e presidente da organização feminista Artemis, as regras criadas pela ANS não resolvem o problema do excesso de cesáreas nos planos de saúde, mas elas são impor-tantes para a indução de boas práticas, além de serem parte de um processo de mudança cultural. "A norma indica que certas práticas não serão mais toleradas", avalia. "E com o partograma, por exemplo, o médico precisa demonstrar que pelo menos tentou realizar um parto normal", comenta.
A presidente da Artemis também considera muito importante a divulgação do percentual de cesáreas. "Isso dá um horizonte para a mulher que procura pelo parto normal na rede privada". A advogada e pesqui-sadora em saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete, concorda que a medida é positiva e que pode dar uma visão mais crítica à gestante, mas acha que apenas informar é pouco. Mesmo que tenha acesso às infor-mações sobre a taxa de cesáreas de seu médico e saiba dos riscos desse tipo de parto, pode ser muito difícil para a mulher questionar a opinião do profissional caso ele diga que a cirurgia é necessária. "A gestante tem menos conhecimento técnico para influir nas decisões que são tomadas sobre a sua saúde e a do bebê", pondera a advogada.
Segundo o Inquérito Nacional Nascer no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz em 2012, a taxa de mulheres que querem fazer cesariana aumenta muito no decorrer da gestação – vai de 28% a 66% –, o que pode sugerir uma influência do profissional que acom-panha o pré-natal nessa decisão. "Há muitas pesquisas que mostram que a mulher é levada a acreditar que teve uma gestação ou parto problemático, quando na verdade não teve, e a cesariana foi feita por conveniêcia médica", aponta Marques.
DESVINCULAÇÃO DO MÉDICO
A relação entre a influência do obstetra e a alta incidência de cesáreas tem a ver, entre outros fatores, com a forma como os planos de saúde remuneram os médicos pelos partos. A maioria das operadoras paga ao profissional o mesmo valor pelo procedimento vagi-nal ou cirúrgico. No entanto, considerando que o even-to fisiológico é imprevisível e pode demorar muito mais do que a cesárea, a cirurgia acaba sendo mais cômoda e financeiramente vantajosa para o médico.
Embora afirme que o honorário pago pelos convê-nios pelos partos é inadequado, Borriello, da Febrasgo, rejeita sua vinculação com o alto índice de cesáreas nos planos de saúde. "A remuneração [do médico] está dentro de um pacote de outros problemas", afirma. A federação defende o pagamento pelo tempo que o obs-tetra fica disponível para a realização do parto. Mas, em vez de negociar com as operadoras, os obstetras tentam repassar esse custo às consumidoras de plano de saúde. "A operadora lava as mãos", diz o diretor da Febrasgo. Porém, nesse caso, a corda não pode estou-rar para o lado mais fraco. Cobrar taxa da usuária é ilegal. "A negociação do pagamento de quaisquer pro-cedimentos deve ser feita entre o profissional e a ope-radora. A função da operadora é, justamente, fazer a intermediação financeira entre o consumidor e o pres-tador credenciado", declara a advogada do Idec.
Em janeiro, uma decisão judicial proferida em São Paulo reiterou esse entendimento, rejeitando o pedido de uma associação de obstetras do Estado, que tentava legitimar a taxa.
No entanto, as usuárias de plano de saúde também não têm o direito de exigir que o médico que acompanhou sua gestação realize o parto. "Nenhum contrato, de nenhuma operadora, diz que o médico que faz pré-natal tem de fazer o parto. A beneficiária tem direito ao parto com [o médico] plantonista", destaca Borriello. "Temos de brigar para que o plantão seja competente", completa.
Nesse ponto, Raquel Marques concorda com ele. A presidente da Artemis defende que é preciso acabar com a associação entre pré-natal e parto, e criar um vínculo com o serviço de saúde – ou seja, com estabelecimentos que adotem protocolos únicos, que garantam que o atendimento será qualificado independentemente do profissional que fizer o parto. "É muito difícil pensar em uma forma de remuneração justa para o atual modelo. Quanto o médico tem de ganhar para ficar disponível para o parto normal? Seis vezes mais? Doze vezes mais? Ainda que isso fosse possível, não resolveria o problema, pois essa dedicação exclusiva à gestante tem limite, o médico também cansa", argumenta Marques.
Fato é que, hoje, muitas mulheres criam um vínculo afetivo com o obstetra que acompanha sua gestação e, mais do que isso, têm medo do atendimento que vão receber de um plantonista – na recente decisão que proibiu a cobrança de taxa da usuária de plano de saúde, a juíza levanta essa questão, inclusive. Mas, segundo Marques, o atendimento por esse médico com quem a gestante já tem uma relação não garante que ela não vá sofrer violência obstétrica (entenda o conceito no quadro da página 17). "Às vezes, o profissional que é um fofo no pré-natal tem rotinas violentas", alerta.
Cesária desnecessária: caso a mulher perceba que foi submetida a uma cesárea sem indicação clínica e esta tenha provocado consequências nefastas à sua saúde ou à do bebê, pode pleitear na Justiça reparação pelos danos sofridos. A constatação da necessidade ou não do parto cirúrgico pode ser feita por meio de consulta ao partograma ou ao prontuário médico.
Taxa do obstetra: se a usuária de plano de saúde deparar com a cobrança de taxa de disponibilidade por um obstetra credenciado, pode denunciar a prática à operadora e à ANS. Caso tenha pago pelo procedimento, a consumidora pode pedir ressarcimento apenas ao médico (se entender que ele violou a norma) ou a todos os envolvidos (operadora, médico e estabelecimento de saúde). Caso a taxa seja informada apenas no momento do parto, a abusividade é ainda maior.
MAIS ENFERMEIRAS
Mais do que desvincular o parto do profissional que faz o pré-natal, especialistas defendem que o parto deve ser dissociado da figura do médico como detentor do processo. Nesse sentido, consideram fundamental incorporar outros profissionais ao atendimento à gestante, como enfermeiras obstétricas ou obstetrizes e doulas. "Nenhum país conseguiu diminuir a taxa de cesáreas sem enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Nos países com os melhores índices de assistência obstétrica, como Reino Unido e Holanda, são esses os profissionais responsáveis pelo atendimento ao parto, muitas vezes IDECsem a participação de médicos", informa Nadia Zanon Narchi, professora de obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP).
Marques concorda. "A enfermeira obstétrica e a obstetriz são profissionais aptas a atender pré-partos e partos de risco habitual [sem complicações]. Todas nós, ao engravidarmos, deveríamos ser encaminhadas a uma dessas profissionais. Se ela identificar algum problema, aí encaminha para o médico, que deveria atender ape-nas os casos graves. É assim que ocorre na maioria dos países", explica.
No ano passado, a ANS publicou uma norma (RN no 398/2016) que determina o credenciamento de enfermeiras obstétricas ou obstetrizes pelos planos de saúde quando viável. A regra foi baixada por força de uma determinação judicial, a partir de uma ação do Ministério Público Federal. Mas há muitas dúvidas sobre a eficácia dessa norma. Tanto o diretor da Febrasgo quanto a professora da USP dizem desco-nhecer casos de credenciamento e de atendimento ao parto por esses profissionais em São Paulo, por exem-plo. "É um modelo de assistência que não existe na rede privada", observa Narchi. A ANS também não esclareceu como essa norma vem sendo implementada; apenas demonstrou apoio à maior atuação desses profissionais, dizendo, por exemplo, que ela "pode contribuir para a promoção de boas práticas e a melhora da segurança e da experiência do cuidado com o parto e o nascimento".
Uma barreira para a inclusão desses profissionais é que eles são escassos no mercado. O curso de obs-tetrícia da USP, do qual Narchi é docente, é o único existente no Brasil. Segundo ela, que atua na área desde a década de 1970, nos anos 80 e 90 houve um desestí-mulo muito grande à formação na área e, por isso, há pouca procura por esses cursos. "Se os planos de saúde começarem a incentivar de fato a inclusão desses pro-fissionais no atendimento à gestante, a demanda [pela formação] deve aumentar", acredita.
PARTO ADEQUADO, MAS RESTRITO
Muitos pontos levantados pelos especialistas como medidas necessárias para atacar a epidemia de cesáreas no Brasil estão sendo trabalhados no projeto Parto Adequado, desenvolvido pela ANS em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein e o Institute for Health- care Improvement, com apoio do Ministério da Saúde.
A primeira etapa do projeto ocorreu entre fevereiro de 2015 e outubro de 2016, e contou com a participa-ção de 35 hospitais privados e públicos de todo o País. As diretrizes do projeto envolvem a incorporação de equipe multiprofissional nos hospitais, treinamento dos profissionais e revisão das práticas de atendimento. O Hospital Nipo-Brasileiro, um dos participantes da pri-meira fase do projeto, informa ter adotado medidas de adequação do ambiente, como ampliação das salas de parto, e parcerias com operadoras para remuneração médica e hospitalar para partos vaginais, por exemplo.
Diferentemente dos impactos da norma aprovada em 2015, a ANS divulga amplamente os resultados do projeto Parto Adequado. Segundo a agência, a taxa de partos vaginais nos 26 hospitais que fizeram parte do grupo piloto (que participaram de todas as estra-tégias adotadas), cresceu em média 76%: passou de 21% em 2014 para 37% ao final do projeto, em 2016. Considerando os 35 hospitais, o aumento foi de 43%. "Em 18 meses, mais de 10 mil cesáreas sem indicação clínica foram evitadas", informa a ANS.
A segunda fase do projeto está começando, com a participação de 150 hospitais, e será desenvolvida ao longo de dois anos. A ANS destaca que o número de estabelecimentos participantes é quatro vezes maior do que na primeira etapa, mas não respondeu se considera viável expandir esse modelo para toda a rede privada no Brasil nem em quanto tempo isso seria possível.