Saúde: futuro incerto
Em dezembro do ano passado, foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55, mais conhecida como PEC do Teto, que estabelecerá um limite para os gastos públicos nos próximos 20 anos. Uma das áreas afetadas por essa redução de gastos será a da saúde, cujo financiamento já era insuficiente. Enquanto isso, o Ministério da Saúde fala em planos de saúde "acessíveis", mais baratos, mas com cobertura restrita, como se fossem a salvação da lavoura.
Par entender melhor a situação da saúde pública e privada no Brasil e quais são as perspectivas para 2017, conversamos com Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Diretor do Idec. Bastante crítico, ele considera o cenário dramático. Leia a seguir a entrevista.
Qual é o principal problema de saúde pública no Brasil hoje?
Mario Scheffer: É o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), problema crônico que vai se agravar com a aprovação da PEC 55, que prevê congelamento dos gastos nos próximos 20 anos.
Quais prejuízos a aprovação da PEC 55 trará para o sistema de saúde brasileiro?
MS: Antes da PEC, as despesas com saúde estavam vinculadas a um percentual de arrecadação de impostos. As regras eram ruins, mas garantiam minimamente o financiamento do SUS. Agora, o repasse será reajustado de acordo com a inflação do ano anterior. Vários economistas já demonstraram que o SUS vai perder muito nos próximos anos.
O orçamento do SUS é composto de recursos federais e municipais. Com a queda na arrecadação por conta da recessão, já está havendo um racionamento nas redes públicas municipais e estaduais, com redução da capacidade de realizar consultas e exames, fechamento de leitos, dificuldade para repor profissionais etc. A situação é dramática, pois enquanto esses recursos diminuem, cresce a demanda, com uma população cada vez mais idosa e doente. Temos péssimos índices de saúde: alta prevalência de doenças infecciosas; transtornos mentais; obesidade; diabetes; hipertensão; alcoolismo; câncer de pulmão, próstata, colo e mama; além de causas externas, como acidentes e violência. Tudo isso exigiria novos aportes [para o SUS]. Os recursos já serão insuficientes para custear a assistência, imagine para investir na prevenção de doenças, como a aids, no controle de epidemias, como dengue, zika e chikungunya, na realização de pesquisas etc. Precisaremos nos mobilizar para denunciar esse retrocesso.
Quem serão os maiores prejudicados por esse corte de gastos com a saúde?
MS: Toda a população. Todos nós dependemos do SUS de alguma forma. Três quartos dos brasileiros só contam com o sistema público, os demaistêm plano de saúde, mas usam a assistência farmacêutica, as campanhas de vacinação, os setores de urgência e emergência e os procedimentos de alta complexidade do SUS. Ou seja, tudo o que os planos privados restringem.
Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou a intenção de criar planos de saúde acessíveis, mais baratos, mas com restriçãodos serviços prestados. Quais serão as consequências se essa ideia for efetivada?
MS: Este é o velho sonho das empresas de planos de saúde: a desregulamentação do mercado. Eles sempre quiseram liberar o comércio de planos mais baratos e com menos coberturas assistenciais. Pelo que foi divulgado até agora, não há nenhuma novidade, pois todos esses arranjos já foram rechaçados pela população, pelos médicos e pela Justiça. Por exemplo, os planos ambulatoriais, que só cobrem consultas e exames, estão previstos na lei [de Planos de Saúde], mas só 4% dos usuários optaram por essa modalidade.
Não está muito claro o que são esses planos acessíveis. Alguns falam em planos que dão direito à internação, mas com restrição a procedimentos de média ou alta complexidade; em esquemas de copagamento ou franquia que pesam no bolso a cada utilização e, por isso, inibem a prevenção de doenças; em planos regionais com redes insuficientes; e até em dispositivos controladores de médicos, como o médico triador, uma espécie de "porteiro" que breca o acesso direto a especialidades e procedimentos mais caros. Tudo isso já foi praticado e não deu certo, só aumentou os conflitos e as ações judiciais.
Os planos acessíveis não são novidade, então?
MS: Antes da Lei de Planos de Saúde, de 1998, e do engajamento do Idec e de outras entidades por uma regulamentação, imperavam os planos com limites para internação e procedimentos, além de exclusão de várias doenças. Havia muitas denúncias na mídia e nos órgãos de defesa do consumidor, além de ações na Justiça. Essa insatisfação coletiva forçou a regulamentação. A lei sofreu com o lobby dos planos, saiu com problemas e lacunas, mas estabeleceu coberturas obrigatórias e, depois, um rol de procedimentos que é atualizado pela ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] a cada dois anos. Com a aprovação desses planos acessíveis, voltaríamos à época pré-regulamentação.
A intenção é antiga e reincidente. Em 2001, com Fernando Henrique; em 2013, com Dilma Rousseff; e mais recentemente, via emenda do ex-deputado Eduardo Cunha, as operadoras tentaram emplacar planos segmentados, baratos e populares. Eles não foram adiante devido à mobilização do Idec e de entidades da saúde. A novidade agora é a proximidade dos planos com o núcleo de poder, já que o próprio ministro da Saúde, que teve sua campanha de deputado financiada por um dono de operadora de planos de saúde, é porta-voz dos interesses dessas empresas.
Uma das justificativas do Ministério da Saúde é que esses planos mais baratos vão aliviar o SUS...
MS: O SUS em nada será aliviado. Pelo contrário: além de absorver a imensa população que recentemente perdeu o emprego e parou de pagar seu plano, terá de atender a todas as situações mais caras e complexas que estarão fora dos contratos dos tais planos acessíveis. O objetivo não é aliviar o SUS, mas criar um nicho de mercado para lavancar o negócio de planos de saúde, para capitalizar um setor com problemas sérios de gestão e que não entrega aquilo que vende. Basta ver, por exemplo, o endividamento e a quebra de várias Unimeds.
Se aprovados, os planos acessíveis devem aumentar o número de ações judiciais no setor?
MS: Sim, infelizmente, os tribunais serão o caminho natural de quem adquirir os planos acessíveis, caso o governo aprove essa aberração. Um dos efeitos adversos dos planos acessíveis será, sem dúvida, o aumento da judicialização, que explodiu nos últimos anos por causa de reajustes abusivos e negativas de cobertura. Em 2016, foram julgadas mais de 10 mil ações judiciais contra planos de saúde em segunda instância, só no Estado de São Paulo. Um alento é que, em mais de 90% dos casos, a Justiça tem dado ganho de causa ao cidadão.
O senhor comentou sobre a quebra das Unimeds Paulistana e Rio, que levantou questionamentos sobre a eficácia da regulação do setor. O que pode ser feito para evitar outros casos como esses?
MS: Esses são exemplos assustadores da irresponsabilidade dessas empresas e da fraca atuação fiscalizatória da ANS. A agência só age tardiamente, assim mesmo, preocupada com a saúde financeira do mercado e não comprometida em solucionar os danos causados aos milhares de clientes. As Unimeds estão endividadas, com dívida com a União superior a R$ 1,2 bilhão. Alegam que as dificuldades têm a ver com o modelo de negócios das cooperativas, com a inflação, a incorporação de novas tecnologias e até com a judicialização. Mas o maior problema parece ser a má gestão. Impressionante que empresas tão mal administradas ainda possam ganhar de presente a autorização para vender planos acessíveis, que surgem como tábua de salvação para um mercado que vai mal das pernas. Para evitar outros casos, a ANS tem de cumprir o seu papel de defesa do interesse público na assistência suplementar. Hoje, há uma frouxidão regulatória, muito pela proximidade e captura da agência pelo mercado que ela devia regular [com a nomeação de diretores que atuaram em operadoras].
Quais são as principais expectativas para este ano na área da saúde?
MS: Os rumos são preocupantes. De um lado, vemos o desmonte do SUS, com o congelamento dos recursos e a retração da rede pública nos municípios. De outro, tem-se apostado na desregulação do setor privado visando ao crescimento de planos populares que não darão conta de atender à população e não guardam nenhuma semelhança com experiências internacionais exitosas. Plano de saúde é um modelo caro, com dinâmica ultrapassada de remuneração de prestadores, excludente, centrado na prática médica especializada e na assistência hospitalar, sem compromisso com prevenção e promoção da saúde e pouco adequado a dar respostas ao envelhecimento e aos problemas crônicos de saúde. A saída é aprimorar a regulação sobre os planos de saúde, coibir os abusos hoje permitidos e recompor o sistema universal, com o financiamento público adequado para viabilizar, de fato, o SUS, com ampliação de uma rede pública efetiva e com qualidade.
Quais modelos internacionais deveríamos seguir tanto em relação à saúde pública quanto à privada?
MS: O modelo adequado é o sistema nacional de saúde. Todos os estudos mostram que o sistema financiado por impostos e contribuições sociais, compostos principalmente de recursos públicos, são os mais eficientes. Só que nós temos o inverso, mais gastos privados do que públicos com saúde. Se houvesse um financiamento público adequado e uma regulação rigorosa, que cumprisse o seu papel, o mercado de planos de saúde seria menor.
Exemplos a ser seguidos são os sistemas universais canadense, inglês e espanhol. Um sistema de saúde predominantemente privado, como o dos Estados Unidos e o da Colômbia, não é viável no Brasil porque é caro, fragmentado e excludente. Os EUA têm o sistema mais caro do mundo e mesmo assim, lá, os indicadores são ruins, com uma parcela grande da população desatendida.