Solução ou armadilha?
Mediação, conciliação e outros métodos de resolução de conflitos têm sido vistos como saída para evitar processos judiciais. Essas alternativas podem ser úteis, mas também oferecem riscos ao consumidor
Em outubro do ano passado, o programador Tiago Moreira, 31 anos, entrou com uma ação contra a Caixa Econômica Federal. O banco havia inscrito seu nome em um cadastro de inadimplentes indevidamente, após seu cartão de crédito ter sido clonado. Ele perdeu as contas de quantas vezes ligou para o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) e de quantos números de protocolo anotou. O problema se arrastava por meses, quando Moreira teve dificuldade para comprar um veículo e contratar um seguro por causa do nome sujo. Foi a gota d'água.
Menos de um mês depois de ingressar com a ação no Juizado Especial Federal, uma decisão liminar garantiu a retirada de seu nome do cadastro. Em janeiro deste ano, ocorreu a audiência de conciliação, que resultou em um acordo: o banco se comprometeu a pagar R$ 5 mil de indenização por danos morais. "Minha advogada falou que a indenização poderia ser maior, mas para mim estava bom. Só queria resolver o problema", conta o consumidor.
Milhares de casos como o de Moreira chegaram ao Judiciário brasileiro no ano passado. Segundo dados do relatório Justiça em Números 2016, divulgado em outubro pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ações judiciais relacionadas a direitos do consumidor discutindo a responsabilidade do fornecedor foram o quarto assunto mais demandado em todas as esferas do Poder Judiciário em 2015, com 5,9 milhões de processos. Considerando só a justiça estadual, o tema ocupou o segundo lugar. Nos juizados especiais e turmas recursais, foi o assunto campeão de processos.
Diante desse grande volume de ações, tem crescido nos últimos anos no Brasil um discurso e algumas iniciativas concretas que visam a reduzir a chamada judicialização ou, pelo menos, fazer com que os processos sejam encerrados rapidamente, como aconteceu com o de Moreira.Diversificar os métodos oficiais de resolução de conflitos, criando alternativas por meio de conciliação, mediação e outras formas de negociação que permitam acordos entre as partes tem sido visto como saída para o problema.
Recentemente, dois novos dispositivos legais entraram em vigor com o objetivo de institucionalizar esses métodos: a Lei de Mediação (Leino 13.140/2015) e o novo Código de Processo Civil (CPC). Segundo Daniela Gabbay, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), a Lei de Mediação traz definições básicas e diretrizes para o uso desse método de resolução de conflitos, principalmente no âmbito extrajudicial (fora dos tribunais). Já o CPC estabelece a mediação ou a conciliação como etapa obrigatória no início de todo processo judicial, com raras exceções. Até o ano passado, a conciliação era obrigatória apenas nos juizados especiais.
Amparados por essas novas leis, como esses métodos consensuais de resolução de conflitos estão sendo aplicados na prática? Quais são as vantagens e os riscos para o consumidor? É o que vamos discutir a seguir.
MEDIAÇÃO, CONCILIAÇÃO E SEUS LIMITES
Na teoria, mediação e conciliação são parecidas, mas não exatamente a mesma coisa. Ambos são métodos autocompositivos (sem a intervenção de um juiz), que contam com a participação de um terceiro (mediador ou conciliador) para estimular as partes envolvidas a encontrar uma solução para o conflito. Mas segundo Gabbay, o papel do mediador é diferente do papel do conciliador: enquanto o primeiro deve ser meramente facilitador do diálogo, o segundo pode ser mais avaliativo – ou seja, pode interferir um pouco mais a fim de promover o acordo. Embora tenham diferenças conceituais, na prática os métodos ainda são tratados como sinônimos em muitos casos.
Tanto a mediação quanto a conciliação podem ocorrer extrajudicialmente ou durante um processo judicial. Os dois métodos também podem ser realizados por órgãos públicos, como o Judiciário e os Procons, ou por empresas privadas. Quando realizado fora dos tribunais, um eventual acordo tem caráter contratual (ou seja, vale tanto quanto as cláusulas de um contrato), mas pode ser homologado por um juiz e, nesse caso, passa a valer como uma sentença.
Para o consumidor, a vantagem dessas vias alternativas é a possibilidade de resolver problemas com fornecedores de forma mais rápida e menos burocrática do que em uma ação judicial.
No entanto, elas também envolvem riscos. "O principal deles é que, por falta de conhecimento, o consumidor aceite um acordo desfavorável, que não contemple seus direitos ou que lhe traga prejuízos futuros", avalia Alexandre Frigério, advogado egestor de relacionamento com o associado do Idec. "Por exemplo, aceitar que as mensalidades de determinado serviço sejam corrigidas por um índice menos favorável ou concordar com o agamento parcelado de um valor que na verdade não deveria ser cobrado", comenta.
Para Maria Cecília Asperti, professora de Direito da FGV-SP, outro risco é que se veja a mediação como uma panaceia que vai resolver todos os problemas. Ela aponta que o perigo é aindamaior quando essas alternativas são vistas como forma de desafogar o Judiciário. "A conciliação e a mediação têm de ser meios adequados de solução de conflitos. Não pode haver pressão para ter acordos e, assim, evitar processos. Isso pode culminar na renúncia de direitos e em acordos não cumpridos", alerta.
DESEQUILÍBRIO DE FORÇAS
Segundo Paulo Eduardo Silva, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), tal qual vem ocorrendo no Brasil, nos anos 80 houve um movimentode reintrodução da mediação nos tribunais dos Estados Unidos como saída para conter o volume e a demora dos processos judiciais. Ele aponta que, nessa época, logo surgiram estudos alertando para os limites e "contraindicações" desse método, entre eles, casos de assimetria de "poder" entre as partes – como ocorre na relação de consumo. "O raciocínio é simples: se as partes são desiguais, a mais forte tem vantagens estratégicas na negociação", avalia.
O juiz Ricardo Pereira Junior, coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), minimiza esses riscos. À frente do órgão que realiza conciliação de conflitos de forma extrajudicial, ele afirma que o consumidor que vai ao Cejusc sabe o que quer e, se é atendido pelo fornecedor, fica satisfeito por ter resolvido seu problema. "Um dos objetivos da conciliação é não infantilizar o cidadão", diz.
Pereira Junior ressalva que se o consumidor for exposto a uma cláusula indevida, o mediador é obrigado a alertá-lo: "Embora não deva dar orientação de cunho jurídico, ele deve eliminar disparidades entre as partes". Gabbay concorda que o papel do mediador é importante, mas considera que a informação é fundamentalnesse caso. "O consumidor tem de ir para a mesa de mediação informado sobre os seus direitos, as alternativas que terá na negociação etc. para não depender do mediador", ressalta a professora da FGV-SP.
Para Asperti, a desigualdade de informações entre o consumidor e os chamados "grandes litigantes" – como bancos, operadoras de plano de saúde e de telefonia – é abissal. "Umbanco sabe todas as demandas que sofre, tem análises, consegue saber as perspectivas de êxito, fazer cálculos etc., o consumidor, não", exemplifica. O gestor de relacionamento do Idec acrescenta que o perigo é ainda maior nos casos em que a presença do advogado não é obrigatória, e o consumidor opta por não contratar um. "Isso muitas vezes acontece nas causas em que, em razão do valor, o custo do advogado é desestimulante", aponta Frigério. "Essa deveria ser uma preocupação do Estado: garantir que o consumidor esteja devidamente informado de seus direitos antes dos procedimentos de mediação", ele defende.
PARCERIAS POLÊMICAS
As iniciativas recentes do Poder Público para promover acordos ainda parecem muito distantes do ideal de fornecer suporte ao consumidor. Nos melhores casos, elas são apenas ferramentasque facilitam o contato com o fornecedor. É o caso da plataforma Mediação Digital, lançada em maio pelo CNJ, que possibilita a troca de mensagens diretas entre as partes, em caso de conflitos que ainda não foram judicializados. Apesar do nome, a iniciativa não cumpreum requisito fundamental: não conta com um mediador. "Sem um terceiro, não dá para dizer que é mediação", avalia Gabbay.
A ferramenta recém-criada pelo CNJ se assemelha ao site consumidor.gov.br, lançado pelo Ministério da Justiça em 2014, que permite registrar reclamação contra fornecedores cadastrados. O que não se sabe ainda é se o CNJ vai divulgar os dados dos casos registrados na Mediação Digital, como faz o Ministério da Justiça. A reportagem questionou o Conselho sobre o assunto, mas o órgão não atendeu aos pedidos de entrevista. Não se sabe nem quantas empresas aderiram à plataforma até agora.
O CNJ também não deu explicações sobre uma suposta parceria com grandes bancos para criar uma ferramenta exclusiva para a solução de conflitos nesse setor, noticiado pela imprensaem setembro. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) tampouco atendeu ao pedido de entrevista. Segundo o último levantamento do CNJ sobre os maiores litigantes, de 2012, os bancos, junto com o setor público, são responsáveis por 76% de todos os processos no País.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, a Febraban é uma parceira frequente. Em agosto deste ano, a entidade "batizou" uma sala dedicada à conciliação de conflitos de consumo envolvendo o setor no Fórum João Mendes, na capital paulista. No ano passado, a federação debancos firmou outro convênio com o tribunal, comprometendo-se a reduzir em 3% o número de processos no Estado. No entanto, conforme o coordenador do Cejusc paulista, o TJ-SP nãoconseguiu monitorar se ele foi cumprido.
O TJ-SP encabeça, ainda, outra iniciativa muito polêmica com o verniz conciliador. Tratase do Núcleo de Apoio Técnico e Mediação(NAT), lançado pelo órgão no ano passado para "mediar" pedidos de decisão liminar (provisória e urgente) envolvendo planos de saúde. À época, o Idec posicionou-se publicamente contra a iniciativa,que foi desenvolvida com a participação de representantes das empresas do setor, mas não do consumidor.
A ideia principal do NAT é que os juízes, quando desejarem, contem com o parecer técnico de especialistas independentes para opinar sobre a pertinência do pedido de liminar. Segundo Pereira Junior, o juiz não tem conhecimento técnico para fazer essa análise. "Como é um pedido [supostamente] de urgência, em muitos casos de vida ou morte, porconta da dúvida, ele acaba deferindo coisas que não deveriam ser deferidas", declara.
O Idec não vê com bons olhos essas parcerias entre órgãos do Judiciário e empresas de maneira geral, por receio de que aimparcialidade do processo decisório fique comprometida. No caso do núcleo sobre planos de saúde do TJ-SP, a preocupação é ainda maior. "O NAT é uma aberração. Não tem qualquer aspecto positivo para o consumidor", opina Frigério, o advogadodo Instituto. Ele aponta que já existem regras para a concessão ou não de liminares. "Segundo a lei, sendo provável o direito e havendo perigo de dano, o juiz pode conceder a tutela de urgência", esclarece.
O juiz do TJ-SP informa que essa atividade está operando de maneira reduzida, pois o tribunal encontrou dificuldade para conseguir parceria com especialistas. Por enquanto, segundo ele, o NAT atua mais com "mediação": quando recebe um caso,comunica a operadora de plano de saúde sobre o pedido de liminar, a fim de que ela procure um acordo direto com o autor da ação. Para o advogado do Idec, nem mesmo essa proposta é adequada. "Diante da urgência do caso, o consumidor pode aceitar um acordo ruim, como o pagamento parcial de um procedimento a que tinha direito, aceitar um tratamento alternativo, mais invasivo ou doloroso, por exemplo".
Conheça algumas iniciativas para a resolução de conflitos de forma amigável. Nem todas fazem conciliação ou mediação, mas são opções de contato e negociação com o fornecedor.
1. CONSUMIDOR.GOV.BR
Lançado em: maio de 2014
Quem é responsável: Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça
O que é: serviço público gratuito para solução de conflitos de consumo pela internet, que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas cadastradas. Após o registro da reclamação, o fornecedor tem 10 dias para responder. Os dados são abertos, ou seja, qualquer internautapode acompanhar quais são as empresas cadastradas, o tempo de resposta de cada uma, o índice de resolução etc.
2. MEDIAÇÃO DIGITAL – http://www.cnj.jus.br/mediacaodigital
Lançado em: maio de 2016
Quem é responsável: Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
O que é: plataforma digital gratuita que permite a troca de mensagens entre as partes em conflitos pré-processuais (não judicializados). O sistema pode sugerir uso de linguagem mais produtiva ao constatar mensagens hostis. O acordo pode ser homologado por um juiz, caso as partes desejem. Não há informações, porém, se essa homologação é gratuita (o CNJ foi procurado, mas não respondeu).
3. CEJUSC (Centros Judiciários de Resolução de Conflito e Cidadania)
Lançado em: 2010
Quem é responsável: Tribunal de Justiça de cada Estado
O que é: núcleo público gratuito que procura resolver conflitos de forma consensual, realizando audiências presenciais de conciliação ou mediação. O local recebe demandas pré-processuais (casos que ainda não chegaram à Justiça) e também processuais (que já têm ação judicial em andamento) nas áreas cível, de família e fazenda pública. Não há limite de valor da causa. Pelo novo Código de Processo Civil, todas as comarcas do país devem ser atendidas por algum Cejusc, seja ele na própria unidade da comarca, regional (que atende a mais de uma comarca) ou itinerante.
RESPONSABILIDADE TERCEIRIZADA
Outra crítica às iniciativas recentes do Poder Público para promover a resolução de conflitos é que elas podem acabar assumindo um papel que é das empresas. "A responsabilidade por ter canais eficientes de contato com o consumidor é, emprimeiro lugar, do próprio fornecedor. Ele precisa ter um SAC e uma ouvidoria que funcionem para não terceirizar essa função ao Estado e não repassar a ele o custo de evitar a judicialização, com gasto de dinheiro público", pontua Asperti.
A relação entre a ineficiência dos canais de comunicação das empresas e a judicialização de demandas pelo consumidor ficou clara em uma enquete realizada no site do Idec entre setembro e outubro: boa parte dos internautas (40%) disse só ter entrado na Justiça após tentar resolver o problema amigavelmente e nãoconseguir. Frigério aponta que, muito embora o Idec apoie o consumidor.gov.br – e inclusive faça parte de seu comitê gestor –, não se pode negar que tanto o custo desse tipo de iniciativa quanto o do elevado número de ações de consumo significam uma transferência de ônus das empresas para o cidadão, que é quem paga os salários dos servidores públicos do Judiciário e de outros órgãos públicos.
Nesse sentido, o benefício frequentemente atribuído à mediação e a outros métodos consensuais de resolução de conflitos, de serem menos custosos em comparação à judicialização, deve ser visto com cautela. Para Silva, da USP, essa é uma generalização potencialmenteequivocada. "Nenhum tipo de processo é mais ou menos custoso em si, em todas as situações de conflito, para todas as pessoas", afirma.
Gabbay, da FGV-SP, aponta que a vantagem econômica é mais facilmente percebida pelos
grandes litigantes, as empresas. "Eles sabem quanto custa em média cada demanda [judicial] e quanto se pode economizar investindo namediação. Não por acaso, os grandes litigantes têm buscado a mediação como ferramenta de gestão de seu passivo judicial", destaca.
Em alguns casos, porém, o processo pode ser economicamente vantajoso. Para o advogado do Idec, a ineficiência dos SACs e o grande número de ações no Judiciário relacionadas a problemas de consumo decorrem de um cálculo realizado pelas empresas para saber o que é mais lucrativo ou menos oneroso. "Acreditamos que grandes fornecedores descumpram normas de forma consciente, por saberem se esse descumprimento irá minimizar seus prejuízos ou alavancar seus lucros".