É possível mudar
Em outubro, acontecem as eleições municipais em todo o país. Um dos principais assuntos em debate é a mobilidade urbana. Como melhorar a qualidade do transporte coletivo, aliviar os congestionamentos, garantir conforto e segurança para os usuários são questões que preocupam grande parte dos cidadãos. Para Eduardo Vasconcellos, coordenador-geral da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), o eleitor deve cobrar dos candidatos propostas que mudem o sistema de mobilidade atual, calcado no uso excessivo do carro. Nesta entrevista, realizada em julho na sede da ANTP, em São Paulo (SP), ele afirma que essa mudança é possível e que o velho argumento de falta de recursos não se sustenta.
Em sua opinião, a que o eleitor deve estar atento em relação às propostas dos candidatos sobre mobilidade urbana?
Desse modo, as pessoas deveriam questionar os candidatos como melhorar a mobilidade. É importante dizer que não é verdade que não existe recurso para isso. O Brasil não é mais tão pobre, e a maior parte das áreas urbanas tem condições de obter recursos. Fora que é muito mais barato realizar investimentos para pedestres e ciclistas do que fazer grandes avenidas, túneis etc. É possível mudar.
Quais são as competências dos municípios e dos demais entes federais em relação à gestão dos transportes públicos? Outros Estados replicam o modelo de São Paulo, em que a prefeitura cuida mais de ônibus, e o governo estadual, de metrô e trem?
EV: Há cerca de 5.600 municípios no Brasil, e mais ou menos 1.500 deles têm transporte coletivo com ônibus ou micro- -ônibus. Esse é, de longe, o maior sistema. Pela Constituição, o transporte público é visto como serviço público essencial, portanto, o governo tem a obrigação de planejá-lo. Ele não tem obrigação de operá-lo e, na maior parte dos casos, o município contrata uma empresa para isso. Em relação ao sistema de trilhos, como ele é muito mais caro para construir e operar, historicamente ficou sob o controle do governo do Estado ou do governo federal. O governo federal tinha uma grande rede de trilhos, mas a maior parte foi repassada para os Estados – como em São Paulo e no Rio de Janeiro. Alguns poucos ainda são controlados pela CBTU [Companhia Brasileira de Trens Urbanos], como em João Pessoa, uma parte de Recife e Salvador. Nesta próxima eleição, o que interessa muito é o transporte público com ônibus. A prefeitura tem autoridade total: ela define qual vai ser a empresa contratada, quanto vai ser a tarifa, qual será o tipo de ônibus utilizado etc.Muito se diz que o custo do transporte público no Brasil é elevado. O fato de ser um serviço público essencial não deveria garantir preços mais baixos?
EV: O preço do transporte coletivo está ligado aos custos de operação do sistema. Um sistema desregulamentado, comum nos países pobres, custa para o público uns 30 centavos de dólar, o que dá cerca de R$ 1. Já se o sistema é como o do Brasil, em que todos os empregados têm direitos trabalhistas, os veículos têm até sete anos de idade e passam por manutenção etc., o custo aproxima-se de um dólar por passageiro. No caso de São Paulo [SP], há um sobrecusto causado pelo congestionamento, que retarda o ônibus e, consequentemente, exige mais veículos, mais motoristas etc. Estimamos que dos R$ 3,80 da tarifa hoje, R$ 1 vem do congestionamento.O transporte coletivo poderia ser mais barato com menos congestionamento, mas reduzir o custo em si não seria possível sem mexer na regulamentação. Mas o sistema brasileiro não é inviável. É lógico que a renda de grande parte da população ainda é baixa para pagar a tarifa integral todos os dias.Há recursos para ajudar a pagar esse custo, mas eles são usados em políticas para o automóvel – seja na ampliação desnecessária do sistema viário, que custa caríssimo; seja nos subsídios que a indústria e os compradores obtêm do governo. É preciso considerar essa ajuda como um investimento social, pois pessoas muito pobres poderem se deslocar traz um valor enorme para a sociedade em termos de mais oportunidade de emprego, de educação etc.
Ainda em relação aos custos, dados da ANTP apontam que no Brasil o preço de andar de carro é similar ao de usar transporte público, enquanto em Londres, por exemplo, usar automóvel é sete vezes mais caro. Quais são os impactos disso?
EV: Primeiro é preciso entender o conceito e não achar que falar disso significa perseguir quem usa automóvel. Estamos em uma sociedade, e o sistema viário tem deser dividido entre todos. O carro consome muita energia, ocupa espaço, causa poluição e pode provocar muitos acidentes. O que os países mais civilizados fazem é cobrar de quem o utiliza. A nossa política é que está errada, pois não cobra de quem anda de automóvel o verdadeiro custo que ele representa para a sociedade.Temos uma política extremamente generosa de estacionamento gratuito. Hoje, na cidade de São Paulo, um milhão de pessoas estacionam de graça em uma via que custou R$ 2 milhões por quilômetro para ser construída. Assim, quem usa automóvel é um consumidor privilegiado do espaço público. Na Europa, é no mínimo cinco vezes mais caro andar de carro do que de ônibus. Isso faz com que as pessoas mudem seu comportamento.
Quando se faz essa comparação, é comum que as pessoas ponderem que na Europa o transporte público funciona, enquanto no Brasil, não.
EV: Essa é uma meia verdade. O transporte público já melhorou muito no Brasil. Não estou dizendo que é ótimo, mas os ônibus brasileiros têm uma qualidade razoável, dadas as condições econômicas do país. E, independentemente do transporte coletivo ser bom ou não, o automóvel continuará consumindo muito mais espaço, causando muito mais acidentes etc. Portanto, deve-se pagar por isso. É lógico que as pessoas têm direito e devem cobrar um bom transporte público. Mas não concordo com o argumento de "enquanto não melhorar, não faço nada". É muito cômodo esquecer o problema.Os pedestres são sempre relegados a segundo plano. Essa lógica precisa mudar para melhorar a mobilidade nas cidades?
EV: É essencial. De todos os papéis desempenhados no trânsito, o do pedestre é o mais universal, humano e natural. Ao mesmo tempo, ele foi o mais ignorado na história da mobilidade do Brasil e de todos os países em desenvolvimento. Temos de parar de ignorar os interesses dos pedestres, inclusive porque é muito barato atendê-los: o custo para se fazer uma calçada é mais ou menos 5% do de asfaltar as ruas. Nós da ANTP insistimos que é preciso rever o financiamento das calçadas, pelo menos do sistema viário principal. Hoje, é o dono do lote o responsável, mas o governo precisa assumir. A sinalização também tem de ser muito melhor, há muitos semáforos que confundem o pedestre.A redução da velocidade nas vias é uma iniciativa que sofre muita resistência no Brasil, apesar de efetivamente reduzir mortes no trânsito. Um dos principais argumentos contra a iniciativa é de que seu objetivo, no fundo, seria arrecadar multas. Como o senhor avalia essa discussão?
EV: Essa é mais uma discussão que reflete a falta de informação técnica. Veículos grandes em alta velocidade matam pessoas. Reduzir a velocidade excessiva é o ponto número um do programa de segurança no trânsito de qualquer sociedade do mundo. As mais avançadas já fizeram isso há 50 anos. Adotar uma velocidade de 30 km/h nos bairros significa que ninguém morrerá se acontecer um acidente, e dificilmente alguém se machucará muito. O plano de redução de velocidade adotado em São Paulo foi muito importante. Temos de apoiar isso no Brasil inteiro. Pode ser desconfortável estar de carro e ter de andar mais devagar, mas é assim que deve ser, porque o risco de matar pessoas é alto. Não podemos colaborar com esse risco.Pesquisas mostram que quem mais usa bicicleta no Brasil são pessoas de baixa renda e das periferias. Mas as ciclovias são feitas apenas nos bairros mais centrais nas cidades brasileiras, dando a impressão de que esse é um tema elitizado. Por que existe essa distorção?
EV: A rigor, é [elitizado]. A nova geração está acordando para isso [necessidade de rever modelo demobilidade], mas, como essas pessoas são de níveis de renda mais altos, a tendência foi construir um modelo [de ciclovias] na parte mais rica da cidade. Esse começo elitizado é um custo que pagamos para chamar a atenção da sociedade. Agora, temos de forçar para ir para a periferia também. Na periferia, muitas vezes a via não tem nem calçada, portanto, tem pedestre junto com bicicleta. Vai dar mais trabalho do que na região central, mas tem de ser feito.Quais cidades, no Brasil e no mundo, em sua opinião, são bons exemplos de locais que conseguiram melhorar de fato a mobilidade urbana, e o que elas fizeram para isso?
EV: A Europa tem os melhores casos. Depois do fim da Segunda Guerra, aumentou muito o número de automóveis, e eles tiveram de tomar uma decisão [em relação àmobilidade]. Mas demorou para eles se acertarem. A Holanda, por exemplo, é muito citada pelo uso da bicicleta. Mas documentos históricos mostram que houve uma briga muito grande com quem preferia o automóvel. A diferença é que os europeus, em geral, têm uma democracia muito mais forte do que a nossa, um nível de educação maior. Na Europa, as pessoas não veem o pedestre ou o ciclista como cidadão de segunda classe, como acontece aqui. Nós temos de tentar um caminho parecido, que não dependa somente da engenharia de transportes. A nossa democracia ainda é muito desigual. As pessoas que andam de bicicleta, em geral, têm muito menos poder político. Temos de avançar também na democracia e na cidadania, e isso demora muito mais do que um belo projeto de ciclovia, que pode ser feito em seis meses.