Direitos pelos ares
O DEVER É DE QUEM?
Contrariando o CDC, companhias aéreas e a própria Anac querem restringir o direito dos passageiros à assistência em casos fortuitos ou de força maior – argumentos que já são usados de forma indiscriminada pelas empresas para tentar se esquivar da responsabilidade por problemas com os voos
Q uem não se lembra do cenário caótico dos aeroportos brasileiros no final de 2006, no estopim do chamado "apagão aéreo"? Voos atrasados, viagens canceladas e saguões lotados de passageiros sem informação, abandonados à própria sorte. De lá para cá, as coisas melhoraram para os consumidores, graças, sobretudo, a uma norma que obriga as companhias aéreas a prestar assistência aos passageiros em caso de problemas com o voo. Fruto de uma ação judicial movida pelo Idec junto com outras organizações de defesa do consumidor durante o apagão aéreo, a Resolução no 141/2010 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) garante informação clara e assistência material aos passageiros – como acesso à internet, alimentação e acomodação –, a depender do tempo de espera.
Contudo, 10 anos depois do apagão, esse importante direito dos passageiros sofre sérias ameaças. Para começar, as companhias aéreas parecem ainda não ter "internalizado" a regra. O Idec avaliou os contratos de prestação de serviço das quatro principais empresas em atuação no Brasil – Avianca, Azul, Gol e Latam –, disponíveis no site oficial de cada uma delas. Em todos, constatou que as empresas se eximem da responsabilidade por prestar assistência ao consumidor em casos fortuitos ou de força maior, ou seja, em situações imprevisíveis ou na ocorrência de problemas cuja "culpa" não é da companhia, como fatores climáticos ou falhas no sistema de tráfego aéreo.
Acontece que tanto a resolução específica quanto as leis mais gerais atualmente em vigor não dão respaldo para essa "exceção" prevista pelas empresas. Pelo contrário: o Código de Defesa do Consumidor (CDC) define que os fornecedores têm responsabilidade objetiva, ou seja, são responsáveis mesmo sem ter causado o problema direta ou indiretamente. "Nas relações de consumo, como é o transporte aéreo, não se analisa se houve ou não culpa do fornecedor pelos danos sofridos pelos consumidores, indeniza-se e ponto", explica Claudia Pontes Almeida, advogada do Idec.
Para Thiago Lacerda Nobre, Procurador-Chefe do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo (MPF-SP) e integrante do grupo de trabalho sobre transporte do órgão, a conduta das companhias aéreas de tentar se livrar da assistência é lamentável. "Pelo CDC, essas cláusulas contratuais são nulas, não têm validade. Mas, em termos práticos, as empresas acabam tendo algum sucesso, sobretudo entre a população mais humilde, que não tem conhecimento de seus direitos", acredita.
COMO É HOJE
A Resolução no 141/2010 da Anac determina que as companhias aéreas devem dar informação clara aos passageiros sobre problemas com voos e prestar assistência material irrestrita, que varia conforme o tempo de espera:
- A partir de 1 hora de atraso: disponibilizar canais de comunicação, como internet e ligações telefônicas;
- A partir de 2h de atraso: fornecer alimentação;
- Mais de 4h de atraso, cancelamento do voo ou overbooking (número de passageiros acima da capacidade do avião): oferecer acomodação (em hotel, por exemplo) ou o reembolso total da passagem, à escolha do consumidor.
COMO PODE FICAR
Na consulta pública no 3/2016, para revisão das Condições Gerais de Transporte Aéreo, a Anac propõe que:
- Em casos fortuitos ou de força maior, a empresa poderá suspender a assistência material após 24 horas, salvo se o passageiro estiver em aeroporto de escala ou conexão.
ASSISTÊNCIA LIMITADA
A Anac, responsável por regular e fiscalizar o setor aéreo, diz que cobra das empresas a prestação de assistência material irrestrita, "mesmo em situações extraordinárias que impossibilitem operações aéreas". No entanto, a agência propôs uma mudança na legislação do setor a fim de "flexibilizar" a responsabilidade das companhias aéreas pela assistência aos passageiros. Na revisão das Condições Gerais de Transporte Aéreo, em discussão desde 2013 e que passou por mais uma consulta pública em maio deste ano, a Anac sugere que, em casos fortuitos ou de força maior, a assistência material seja obrigatória apenas durante 24 horas, exceto se o consumidor estiver em aeroporto de escala ou conexão (nesse caso, a assistência continuaria a ser irrestrita).
Isso significa que em uma situação que perdure por dias (uma nevasca em outro país ou mesmo um novo caos no sistema de tráfego aéreo), o consumidor brasileiro ficaria sem nenhum tipo de suporte após esse prazo e teria de pagar do próprio bolso todas as despesas até conseguir embarcar. Assim, cenas como a do apagão aéreo de 2006 provavelmente voltariam a ser vistas nos aeroportos. "Essa proposta constitui a principal ameaça aos direitos conquistados pelo consumidor, consolidados na Resolução no 144/2010, pois dá aval à mitigação da assistência material que as companhias aéreas já preveem ilegalmente em seus contratos", critica a advogada do Idec.
Tanto a Anac quanto a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), que representa as quatro maiores companhias do setor, alegam que a assistência material nos moldes atuais representa custos elevados, usando discursos muito parecidos. "A assistência material é o único direito 'ilimitado' assegurado ao consumidor (sem prazo para cessação). Essa característica causa muita instabilidade nas previsões de custos das empresas aéreas, com reflexos no custo do serviço", diz a Anac, por meio de sua assessoria de imprensa. "As empresas brasileiras, diferentemente das companhias aéreas de outros mercados, acabam tendo um custo adicional nesse tipo de situação, mesmo não tendo sido a causadora do fato", argumenta Marcos Diegues, consultor de Relações com o Consumidor da Abear. Ele afirma que, em 2014, 72% dos atrasos superiores a 30 minutos "foram de responsabilidade do sistema aeronáutico" e, desses, "só 4% foram causados por condições meteorológicas desfavoráveis".
Contudo, essa alegada "ausência de culpa" das empresas como justificativa, além de confrontar o CDC, significaria transferir o risco do negócio para o passageiro. "Se fatores climáticos ou falhas do sistema aéreo não são culpa da empresa, por acaso são do consumidor?", questiona Nobre, do MPF-SP. "Considerando que na relação de consumo a parte mais frágil é o consumidor, a empresa tem o dever de prestar assistência. Depois, se ela entender por bem, que busque reparação junto aos órgãos públicos ou à União. Repassar o ônus para o consumidor é totalmente ilegal. Não tem sentido, pois é a empresa quem está explorando o negócio para ganhar dinheiro", ele ressalta.
Para o Idec, a proposta da Anac é ilegal, pois uma norma setorial não pode contrariar uma lei, como é o Código de Defesa do Consumidor. Além disso, na avaliação da advogada do Idec, com essa proposta, a agência extrapola sua competência de regular e fiscalizar o setor e tenta legislar sobre o tema. "O papel da Anac é regulamentar a legislação que já existe, não criar uma norma que vai em direção contrária a da legislação", afirma Almeida.
O procurador do MPF-SP concorda e acrescenta que, por ser uma norma inferior à lei, uma resolução da Anac com esse teor seria teoricamente inválida. "Porém, na prática, seria uma carta na manga para as empresas recusarem prestar assistência material ao consumidor", afirma. A consequência desse possível conflito entre o CDC e a norma do setor, analisam os especialistas, será uma enxurrada de ações judiciais de consumidores para obter reparação de prejuízos. "Essa é uma proposta que vai na contramão do que vem sendo discutido atualmente, que é estimular a conciliação, o acordo. É uma norma que parece estimular o conflito", aponta Nobre.
DESCULPAS ESFARRAPADAS
A Anac diz que os casos que afastariam a responsabilidade das companhias aéreas são apenas "eventos que impeçam qualquer atividade aeroportuária no aeroporto de origem ou destino", tipificados na legislação do setor aéreo (como o Código Brasileiro de Aeronáutica). No entanto, o que se vê é que,hoje, as empresas já lançam mão desse argumento indiscriminadamente, alegando casos fortuitos ou de força maior para situações banais e previsíveis.
O Idec fez um levantamento de decisões sobre o tema em Tribunais de Justiça de seis estados – Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo – e também no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e constatou que as empresas usam argumentos estapafúrdios para tentar se livrar da obrigação de prestar assistência e reparação de prejuízos aos passageiros. Em um caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2015, por exemplo, uma companhia aérea deu como justificativa para o cancelamento de um voo a extrapolação da jornada de trabalho da tripulação. Em outro processo, uma empresa alegou caso fortuito em um atraso causado pela sucção de um urubu pela turbina do avião!
De acordo com a advogada do Idec, felizmente a Justiça tem invalidado as alegações infundadas das empresas aéreas e considerado a responsabilidade objetiva prevista no CDC. "No entanto, uma vez que exista uma norma específica do setor aéreo que limite o direito à assistência, como propõe a Anac, alguns juízes podem considerar que ela se sobrepõe ao Código", alerta Almeida. "A aprovação dessa norma, portanto, só contribuiria para as empresas ampliarem suas teses de casos fortuitos e de força maior e, assim, não prestarem assistência ao consumidor", conclui.
DESEQUILÍBRIO E MULTAS EXCESSIVAS
Se por um lado as companhias aéreas querem afastar sua responsabilidade em casos fortuitos ou de força maior, por outro, nenhuma delas prevê a mesma prerrogativa ao consumidor que precisa cancelar ou alterar um voo. Em seus contratos, as quatro empresas aéreas estipulam que se o passageiro cancelar a passagem ficará sujeito a penalidades (multa e taxas para remarcação), sem exceções.
Para a advogada do Idec, isso mostra o forte desequilíbrio de condições que as companhias aéreas querem impor aos consumidores. "À luz do CDC, não faz sentido impor ao consumidor obrigações quando o fornecedor não as tem. Se casos fortuitos ou de força maior valessem como 'atenuante', isso não teria de se aplicar ao consumidor também?", pondera Almeida.
Ela esclarece que apontar essa contradição não significa defender que o consumidor pode cancelar a passagem sem custo em caso de imprevistos pessoais. "Quando o passageiro cancela a viagem, independentemente do motivo, de fato fica sujeito a penalidades. Porém, as multas atualmente aplicadas pelas empresas são abusivas", declara a especialista. É exatamente essa a percepção da maioria dos consumidores que responderam a uma enquete no site do Idec: 47% dos internautas disseram que pagaram uma multa exagerada quando cancelaram uma passagem aérea, e 35% que perderam todo o valor pago. A enquete ficou disponível entre 16 de maio a 28 de junho e recebeu 309 votos.
Hoje, as empresas aéreas adotam uma política de aplicar penalidades diferenciadas de acordo com a modalidade da passagem adquirida pelo consumidor. Quanto mais barato o bilhete, maior será a multa e as taxas cobradas pelo cancelamento ou remarcação – sendo que, em alguns casos, as empresas não dão direito a reembolso. Mas o pior é que essa condição também pode ser chancelada pela Anac. Na mesma consulta pública, a agência prevê que a multa por cancelamento não supere 100% do valor pago. Dessa forma, na prática, o consumidor perde tudo o que pagou.
Para o procurador Nobre, do MPF-SP, a proposta da Anac é abusiva. "Estipular uma multa de até 100% é autorizar que as empresas fiquem com o dinheiro do consumidor sem prestar o serviço. É inadmissível", rechaça.
O Idec acredita que, em qualquer circunstância, a multa por cancelamento deve ser de até 5% do valor da passagem, como prevê expressamente o Código Civil (artigo 740, § 3o). "Esse é outro ponto em que a Anac dispõe de forma contrária à legislação em vigor. A regulação deve ser subordinada à lei, não limitar direitos garantidos por ela", ressalta a advogada do Instituto.
A Anac defende-se dizendo que também prevê a oferta de uma modalidade tarifária em que a multa por cancelamento seja de até 5%. Porém, segundo Leandro Nunes, procurador do MPF na Bahia, essa lógica condiciona a aplicação da lei a quem paga mais. Claramente, essa opção de multa branda seria aplicada só às passagens mais caras, como inclusive já ocorre hoje.
Nunes é o responsável por uma Ação Civil Pública proposta no ano passado pelo MPF-BA que pretende forçar as companhias aéreas a cumprir o limite de 5% para as multas em todo o país, e também a respeitar o direito de arrependimento para bilhetes aéreos comprados pela internet ou por telefone, como prevê o artigo 42 do CDC – ou seja, que o passageiro possa cancelar a passagem sem custo em até sete dias da compra. A ação aguarda julgamento.