O Jogo da Adequação
Lideradas por empresas globais, plataformas que conectamusuários e fornecedores pela internet se popularizam nomundo inteiro e levantam questões sobre a aplicação dosdireitos do consumidor nesses novos serviços
“Como a proteção ao consumidor pode se manter nesse cenáriode inovações e de empresas globais na economia docompartilhamento? (...) Empresas como Airbnb e Uber estãoremodelando o mercado e desafiando o statusquo. Eles estão mudando inclusive a noção do que é serconsumidor.” A questão foi levantada por Amanda Long, presidenteda Consumers International, em seu discurso na aberturado Congresso Mundial da entidade, em novembro do ano passadoem Brasília (DF).
Em sua fala, Long destacou que 120 mil pessoas utilizaramo Airbnb para se hospedar no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014, e queessa empresa é atualmente uma multinacional maior do que qualquer rede dehotel do globo. O exemplo da plataforma de locação de imóveis ou quartos porcurta duração deixa claro o quanto esses serviços da chamada “economia docompartilhamento” estão se popularizando no Brasil e no mundo.
Inicialmente idealizada para promover o consumo de forma mais colaborativa,a economia do compartilhamento se caracteriza por plataformas que,através de sites ou aplicativos, conectam usuários interessados em um serviçoe empresas ou pessoas comuns que se dispõem a prestar o serviço em questão– seja ele de hospedagem, de transporte, de limpeza doméstica, de empréstimode ferramentas, até outros mais inusitados, como “babá” de cachorro.
Se por um lado as inovações oferecem a possibilidadede se usufruir de produtos e serviços de um jeito diferentedo habitual – muitas vezes de forma mais práticae mais barata –, por outro elas alteram alguns parâmetros das relações de consumo tradicionais e, consequentemente,da aplicação dos direitos do consumidor. “Na economiado compartilhamento, os modelos de negócios são mais fluidos,não há figuras tão estanques de consumidor e de fornecedor.A identificação do sujeito varia conforme cada modelo”, diz oadvogado Bruno Miragem, presidente do Instituto Brasileirode Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e professor daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.
Essa “fluidez” traz uma série de questionamentos em relaçãoaos direitos do consumidor. Por exemplo: quando há, do outrolado, uma pessoa física e não uma empresa, existe ainda umarelação de consumo? Em caso de problemas na prestação doserviço por esse terceiro, a plataforma é responsável por resolvê-los e reparar eventuais prejuízos?
Para o advogado e pesquisador do Idec Rafael Zanatta, existe,sim, uma relação de consumo, mesmo que o serviço em si sejaprestado por uma pessoa física. “É inegável que empresas comoUber e AirBnb prestam serviços e se enquadram na definiçãodo artigo 3o do Código de Defesa do Consumidor [CDC]. Essasplataformas organizam a informação, possuem algoritmos sofisticadose possuem sistemas integrados de pagamento por serviçosde terceiros.” Já a responsabilidade da plataforma varia de acordo com o grau de organização e controleque ela tem do negócio. “Se o site ou aplicativogerencia todas as informações sobre oserviço e aufere lucro com a intermediaçãoem si, ele tem clara responsabilidade poreventuais prejuízos sofridos pelo consumidorna prestação do serviço”, afirma Zanatta.
Bruno Miragem concorda. “Quando o siteatua como gatekeeper, ou seja, como guardiãode acesso ao negócio, isso reforça os seusdeveres, pois, mais do que intermediação, eleorganiza o sistema, os serviços que estão àdisposição. Nesse caso, a sua responsabilidadeé plena”, destaca. É o caso de plataformascomo os já citados Airbnb e Uber e tambémo Booking.com, gigantes da economia docompartilhamento que controlam todo o processode contratação do serviço que ofertam.Mas nem só de novos serviços é feita essacategoria: velhos conhecidos do consumidorbrasileiro, como Mercado Livre, tambémse enquadram nessa definição, já que o site impede o contato direto do usuário com oanunciante e o pagamento se dá ali dentro.
Já nos casos em que a plataforma apenasfaz uma ponte entre o anunciante e o usuário,obtendo lucro de publicidade ou de outrasfontes que não a venda do produto ou serviçoem si, não pode ser responsabilizada pelaqualidade do produto ou serviço ofertado. “As decisões da Justiça brasileira têm seguido essalinha de raciocínio e fixado alguns critérios,como o auferimento de renda e a existênciaou não de mecanismos que possam favorecerou desfavorecer anunciantes e influenciara escolha do consumidor”, aponta Zanatta.Exemplos desse tipo de plataforma são sitesde classificados, como OLX, Zap Imóveis etc.,e buscadores de preço, como Buscapé.
Em caso de problemas na prestação do serviço, você pode acionar a empresa “intermediária” principalmente se toda a transação ocorreu “dentro” da plataforma, como no caso do Airbnb, da Uber ou do Mercado Livre. A responsabilidade da empresa, nesse caso, é plena.
- Se ao clicar para a compra/contratação, você for direcionado para outra página, específica do fornecedor, é um indício de que a plataforma não lucra com a intermediação. Nesse caso, ela dificilmente poderia ser responsabilizada por problemas na prestação do serviço ou defeitos no produto adquirido. Há exceções. Por exemplo, se o site intermediário der informação falha que possa confundir o consumidor.
- Os termos de uso e políticas da empresa não podem se sobrepor ao CDC. Caso a empresa se recuse a respeitar seus direitos, reclame no Procon, no site consumidor.gov.br (do Ministério da Justiça) ou entre com uma ação na Justiça.
- Entrar na Justiça também pode ser o caminho em caso de problemas no exterior. Caso o serviço tenha sido contratado por meio de uma plataforma que opera no Brasil, ela é solidariamente responsável por reparar eventuais prejuízos.
- Conforme o Marco Civil da Internet, a empresa estrangeira que atua no Brasil pode ser acionada judicialmente no país, mesmo que o site seja hospedado no exterior. Além disso, a maioria das grandes empresas da economia do compartilhamento tem escritório aqui. Se o site/aplicativo não fornecer dados como CNPJ e endereço, é possível obtê-los consultando a junta comercial local para ingressar com a ação.
CONTINUE LENDO Ao ler os termos de uso ou navegar poruma dessas plataformas, o consumidor brasileiropode imaginar que, ao contratar o serviço,abre mão de seus direitos, pois há umasérie de cláusulas restritivas. Por exemplo:ofertas do Airbnb e Booking.com preveemque o usuário não tem direito a reembolsoou só terá devolução de uma pequena partedo pagamento em caso de cancelamentoda reserva.
Essas regras estão expostas de forma bemclara, é verdade, mas são arbitrárias e contráriasao CDC. O artigo 51, II, do Código vedaexpressamente cláusulas contratuais que retiremo direito de reembolso do consumidor.Segundo o advogado do Idec, os termos deuso não podem se sobrepor ao CDC. “A ideiade que essas regras definidas pelas empresassão absolutas não tem nenhum fundamentojurídico no Brasil”, atesta Rafael Zanatta.
As empresas tentam se esquivar, dizendoque as políticas de cancelamento são definidaspela própria hospedagem: “O site nãovende quartos. Ele facilita o processo dereservas entre a acomodação e o cliente. Oshotéis são livres para oferecer quartos reembolsáveisou não”, diz a assessoria de imprensa do Booking.com. No entanto, pelo Direito brasileiro, as plataformassão, sim, responsáveis pelas condições de oferta e de prestaçãodo serviço.
Já o Airbnb diz que sua “atuação global demanda regrasharmônicas, o que nem sempre é tarefa simples à luz da multiplicidadede regulações e entendimentos ao redor do globo”.O Booking.com também admite que as regras são as mesmas eaplicadas para consumidores do mundo inteiro, independentementeda legislação local. “Os termos de uso dessas empresasde tecnologia não podem simplesmente ser traduzidos para oportuguês quando a empresa decide prestar o serviço no Brasil;eles têm de ser totalmente adaptados às leis brasileiras, inclusiveao CDC”, reforça Zanatta. “É uma questão de tempo e depressão da sociedade e do poder público para que essas políticassejam readequadas”, aposta o advogado.
Por enquanto, a conclusão que se tira é que essa nova economia,que vem sendo dominada por grande e valiosas empresasmultinacionais, quer “compartilhar” com consumidores (etrabalhadores) muito mais o ônus do que o bônus dos modelosbem sucedidos.
REGULAÇÃO EM DEBATE
Para Bruno Miragem, as regras e práticas abusivas dasempresas de tecnologia devem ser fiscalizadas e coibidas pelosórgãos públicos de defesa do consumidor, como Procons e opróprio Ministério da Justiça. Ele reconhece, porém, que essanão é uma tarefa fácil. “Em geral, esses sites são hospedadosfora do Brasil. Há uma dificuldade prática de aplicar multa emempresas que não têm patrimônio no país, por exemplo. Aexecução da multa se tornaria complicada e cara”, ressalva. ASecretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério daJustiça, foi procurada para comentar o assunto, mas não respondeuaos diversos pedidos de entrevista.
O advogado da Brasilcon afirma que tem se discutidoum modelo de cooperação internacional para a regulação dos serviços pela internet em nível global. O assunto foipauta da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio eDesenvolvimento (UNCTAD) em 2015. “Mas isso é ainda umprojeto de futuro, falta muito a ser discutido”, diz Miragem.
Ainda no âmbito internacional, em junho deste ano vaiocorrer um seminário da Organização para a Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCDE) para debater a regulaçãodos serviços da economia do compartilhamento. “Um dos pontosque poderá ser discutido é a criação de critérios para a exibiçãode informações ao usuário, como as avaliações sobre osserviços. Hoje, a exibição é feita de forma discricionária pelasempresas, não se sabe se elas favorecem comentários e avaliaçõesde acordo com seus interesses particulares, por exemplo”,destaca Rafael Zanatta.
Os países, individualmente, também têm debatido a regulaçãodo tema. No ano passado, a Federal Trade Commission,agência de proteção do consumidor dos Estados Unidos, realizouum seminário para discutir a regulamentação da Ubere a garantia dos direitos dos usuários. Para o advogado doIdec, uma discussão semelhante merece ser feita no Brasil.Um ponto que ele considera central nesse debate é a proteçãode dados pessoais dos usuários, ainda mais porque não há leisobre o tema no Brasil. “As empresas estão entrando no mercadocom velocidade enorme, captando dados dos usuários, eainda não temos regras específicas sobre o uso desses dados”,alerta Zanatta.
Para além dos direitos do consumidor, ainda está em abertouma regulação geral dessas empresas pelo Estado que fixeregras de tributação, por exemplo. A questão central que vemsendo discutida no mundo inteiro é se essas novas plataformassão empresas de tecnologia ou de transporte, de hotelariaetc. “Fato é que elas estão disputando o mesmo mercadocom as ‘antigas’ empresas desses setores em condições maisfavoráveis e tributadas de forma desigual”, cita o especialista.A polêmica é gigantesca. Várias cidades do mundo já chegarama proibir alguns desses serviços, outras começam a regulamentar.Em Amsterdã, por exemplo, o Airbnb é regulamentadoe há normas para o recolhimento de impostos dos cidadãosque alugam suas casas pela plataforma.
No Brasil, a Uber é quem tem gerado mais controvérsias,travando debates sobre a regulação do transporte individualnas Câmaras municipais e também na Justiça. Independentementede toda a polêmica, o serviço não é ilegal no Brasil. “AUber é uma empresa legalmente constituída no país. A discussãosobre como o serviço será regulamentado não interferenos direitos do consumidor, nem mesmo o fato de ter sidoproibido em algumas cidades. Ao utilizá-lo, o consumidor nãoabre mão de seus direitos, que são garantidos pelo CDC”, ressaltao advogado do Idec.
Como qualquer outro tipo de serviço,os da economia do compartilhamento estãosujeitos a falhas. O que costuma surpreenderos consumidores é que a praticidade típicadessas plataformas não se mantém quandoum problema precisa ser resolvido. Veja orelato de duas consumidoras que tiveramproblemas com o Airbnb e com a Uber:“Reservei um apartamento pelo Airbnbem Viña del Mar, Chile, onde passaria minhasférias em outubro do ano passado. Escolhipagar via boleto, mas o pagamento não foicomputado e recebi uma mensagem do anfitriãodizendo que a reserva seria cancelada.Fiquei desesperada, entrei em contato como Airbnb, mas eles me repassaram para outraempresa, responsável pelos pagamentos.Uma ficou empurrando o problema para aoutra. A única alternativa dada foi pagarnovamente o boleto e aguardar o reembolso.Fiz isso para garantir a reserva, mas foi umgasto totalmente inesperado que poderiaatrapalhar minha viagem. O valor acabousendo estornado, mas só depois de muitotempo e de muita insistência.”
LÍVIA GERASIMCZUK, ADVOGADA, SANTO ANDRÉ (SP)
“Me cadastrei na Uber, utilizei o serviçona manhã seguinte para ir ao aeroporto, masnesse mesmo dia meu cartão de crédito foiclonado e tive de bloqueá-lo. Como o aplicativosó aceita cartão como forma de pagamento,a corrida ficou em aberto. Enviei váriose-mails para o SAC, pois não existe comunicaçãopor telefone. Quando finalmente responderam,disseram que o cartão era a únicaforma de pagamento, não me deram nenhumaalternativa. Eu mesma tive de achar umasaída: a cobrança foi feita no cartão de umamigo, também cadastrado na Uber, e eu oreembolsei. Fiquei extremamente insatisfeitacom o atendimento ao cliente e não pretendousar Uber nunca mais. O serviço pode serrápido e mais barato, mas não é seguro – nãosabemos quem está do outro lado recebendonossos dados.”
CARLA MENDES, ORGANIZADORA DE EVENTOS, SÃO PAULO (SP)