Desafios Hermanos
Há muitas similaridades entre o Brasil e o México, inclusive em relação aos desafios para garantir os direitos do consumidor-cidadão. Os mexicanos enfrentam problemas de mobilidade nas grandes cidades, de aumento dos níveis de obesidade entre a população – um dos piores do mundo –, e duplo padrão de qualidade entre produtos comercializados no mercado interno e exportados para Estados Unidos e Europa. Soa familiar?
Nesta entrevista, o presidente da ONG El Poder del Consumidor, Alejandro Calvillo, fala sobre esses problemas e sobre como a organização que dirige tem atuado para superá-los, usando a internet como arma de mobilização dos consumidores. Calvillo esteve no Brasil em novembro para o Congresso Mundial da Consumers International (CI) e deu palestra sobre as experiências de regulação de alimentos em seu país.
A El Poder del Consumidor foi fundada em 2006, período em que já havia acesso à internet. Em que medida isso contribuiu para a sua atuação?
Alejandro Calvillo: A internet foi fundamental para nosso trabalho. Não poderíamos ter nos desenvolvido sem ela, considerando que iniciamos com muito poucos recursos humanos (três pessoas). A internet nos possibilitou ter presença não apenas no México, mas também em outros países da região. Foi o caso das análises de alimentos e bebidas ultraprocessadas, por exemplo, que começamos a realizar e que são muito difundidas.
Nesses quase 10 anos, quais foram as principais campanhas de mobilização promovidas e quais resultados alcançaram?
AC: Nossas principais campanhas têm sido em duas áreas: alimentação e mobilidade urbana. No tema de alimentação, contribuímos para a regulação de alimentos e bebidas nas escolas, para uma pequena regulação da publicidade desses produtos dirigida ao público infantil, e para a criação do imposto sobre bebidas açucaradas no México – país que tem um dos índices mais altos de sobrepeso, obesidade e diabetes em todo o mundo.
Em relação à mobilidade, temos colaborado para fortalecer o desenvolvimento de opções de transporte público como o BRT [ônibus em tráfego rápido] em diversas cidades do país e pressionado para que se invista mais em infraestrutura para transporte público e mobilidade não motorizada no lugar de infraestrutura para o automóvel.
Atualmente, iniciamos um trabalho sobre eficiência e segurança em veículos leves, já que o México é um importante produtor desse setor. Dos modelos produzidos, 80% seguem os mais altos padrões de segurança e de eficiência, mas são exportados para o mercado europeu e estadunidense. Para o mercado mexicano e da região, comercializa-se veículos que, em sua maior parte, são menos seguros e ineficientes.
Outro tema que a El Poder trata é a qualidade do ar no México. Como esse assunto se relaciona com os direitos do consumidor e quais são suas principais reivindicações?
AC: A qualidade do ar tem relação direta com o direito à saúde das pessoas que vivem nas cidades, assim como com a saúde do planeta, em função das mudanças climáticas. A qualidade do ar é uma consequência das escolhas que fazemos e das decisões que as condições de nossas cidades nos levam a tomar como usuários e consumidores. Se a cidade favorece o transporte público e a mobilidade não motorizada, os usuários vão escolher essas opções frente ao carro particular, o que terá um impacto sobre a qualidade do ar que respiramos e sobre as emissões de gases de efeito estufa em nossas cidades.
"ESTÁ EM NOSSO PODER DE ESCOLHA PERMITIR OU NÃO QUE PRÁTICAS ABUSIVAS COM CONSUMIDORES, PREJUDICIAIS AO MEIO AMBIENTE E DE EXPLORAÇÃO DE TRABALHADORES CONTINUEM POR PARTE DAS EMPRESAS QUE NOS OFERECEM PRODUTOS E SERVIÇOS"
O tema do Congresso da CI, que aconteceu em novembro no Brasil, foi: Desbloquear o Poder do Consumidor: uma nova visão para o mercado global. Qual é o grande desafio a ser discutido dentro desse tema?
AC: O título do Congresso disse bem: a palavra é "desbloquear" o poder do consumidor. Somos nós, em última instância, quem podemos determinar se práticas abusivas com consumidores, prejudiciais ao meio ambiente, de exploração de trabalhadores etc. podem continuar ou não por parte das empresas que nos oferecem produtos ou serviços. Está em nós, em nosso poder de escolha, permitir ou não essas práticas.
Devemos começar por nós mesmos, as associações de consumidores que estão agrupadas na Consumers International, e nos perguntar: o que podemos fazer para desbloquear o poder do consumidor em escala global? O que podemos fazer contra a obsolescência programada dos produtos para evitar o desperdício de matérias-primas, o lixo eletrônico? O que podemos fazer contra a exploração laboral e condições desumanas de trabalhadores que produzem para as grandes transnacionais de moda, de eletrônicos? O que podemos fazer para que as farmacêuticas não abusem nos preços dos medicamentos? Temos que começar por nós como associações e reconhecer o poder que podemos ter globalmente.
O imposto sobre bebidas açucaradas está em vigor desde janeiro de 2014 no México e estudos já mostraram redução do consumo dessas bebidas no país. Você acredita que essa medida seria eficaz em outros países?
AC: Essa medida pode ser eficaz em muitos países, mas deve ser acompanhada de uma política integral que modifique o ambiente que origina a epidemia de obesidade. Precisamos que as crianças tenham acesso exclusivo a alimentos saudáveis nas escolas; que a publicidade de alimentos não saudáveis seja proibida para o público infantil; que tenhamos rótulos nutricionais que sejam fáceis de interpretar, permitindo distinguir se um produto é rico em açúcar, gorduras ou sódio; que as crianças e a população em geral tenham acesso à água de qualidade para beber nas escolas e nos espaços públicos; que as políticas agrícolas favoreçam os pequenos produtores e o comércio local, revalorizando as dietas tradicionais. A recuperação da saúde alimentar deve ser parte também de uma política de combate à pobreza, de soberania e de segurança alimentar.
Como a indústria de alimentos tem reagido ao imposto e quais têm sido as respostas do Estado frente a elas?
AC: Todas as indústrias têm se aliado contra o imposto. As empresas mais diretamente afetadas, as de bebidas açucaradas, lançaram uma guerra suja. Através das redes sociais e de seus aliados nos meios de comunicação, realizam a estratégia de "atacar o mensageiro, não a mensagem". O Poder Executivo tem defendido o imposto, mas deixou que o tema seja resolvido pelo Legislativo. Recentemente, foi apresentada a proposta de reduzir o imposto de 10% para 5% para bebidas com menos açúcar. A proposta foi aprovada a toque de caixa pelos deputados e passou ao Senado. No início de novembro, os partidos políticos acusavam uns aos outros de ter introduzido essa proposta [de baixar o imposto], pois se arrependeram frente à reação pública e dos meios de comunicação: se reconheceu que a redução do imposto iria beneficiar uma série de bebidas dirigidas a crianças pequenas, que as levam a desenvolver o hábito de hidratar-se com bebidas excessivamente doces. Ao fim, a intenção de reduzir o imposto para certo grupo de bebidas permitiu referendar o apoio a ele e fortalecê-lo.
Em sua opinião, qual é a importância da formação de alianças regionais para fazer frente ao lobby da indústria de alimentos?
AC: O fenômeno da deterioração da saúde alimentar é global. A invasão dos alimentos ultraprocessados e o desaparecimento das dietas tradicionais e dos alimentos naturais são resultados de estratégias de mercado que não têm fronteiras. É necessário trabalhar de forma coordenada regionalmente, trocar informações, gerar iniciativas em conjunto. Nesse tema, temos a iniciativa da CLAS [Coalizão América Latina Saudável] na região, ao mesmo tempo em que estamos promovendo com a Consumers International uma Convenção-Quadro em escala global que permita aos governos ter uma ferramenta a mais para guiar suas políticas e para enfrentar as resistências dos enormes poderes econômicos da indústria de alimentos e bebidas ultraprocesadas.
Uma das maiores operadoras de telefonia móvel que atua no Brasil é mexicana (a Claro) e esse serviço é um dos mais problemáticos para os consumidores aqui. Como é o serviço de telefonia no México?
AC: No México, a telefonia móvel é também um dos setores que recebe maior número de reclamações. A Claro no México se chama Telcel e é uma empresa que é parte da Telmex. A Telmex era a companhia estatal que tinha o monopólio da telefonia no país. O monopólio estatal passou a ser monopólio privado quando foi vendida a Carlos Slim, apontado em várias ocasiões como o homem mais rico do mundo. Sofremos por décadas no México com um serviço ruim e tarifas altíssimas na telefonia, o que são consequências de mercados não competitivos dominados por um monopólio. A entrada de novos agentes no mercado e a criação de concorrência têm finalmente baixado os preços do serviço e aumentado sua qualidade.