25 anos de CDC!
Em 11 de setembro de 1990, foi promulgada uma das leis mais importantes do país e um marco para a consolidação da cidadania brasileira: o Código de Defesa do Consumidor (CDC). A Lei nº 8.078/90 nasceu no bojo da redemocratização e da Constituição Cidadã, trazendo conceitos avançados para seu tempo. Para comemorar os 25 anos do CDC, entrevistamos Marcelo Sodré, que foi diretor do Procon-SP no período de criação do Código e participou de sua discussão. Ele comenta o cenário histórico de criação da lei, analisa os desafios atuais e a reforma do CDC em discussão no Congresso.
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Qual foi a sua participação no processo de criação do CDC?
Marcelo Sodré: Representando o Procon-SP, participei das discussões como assessor da comissão de juristas responsável por desenhar o Código, não como membro dela. Quando a comissão foi formada, o diretor do Procon era o Daniel Fink, e eu o auxiliava na assessoria à comissão. Depois ele saiu, eu assumi como diretor e passei a participar mais diretamente.
Como era o cenário pré-CDC: quais eram os principais problemas do consumidor naquela época?
MS: Os principais problemas eram relacionados a preços. O Brasil vivia um processo inflacionário muito grande. A partir de 1986, começaram a vir os primeiros planos econômicos, que mexiam com todos os contratos: de planos de saúde, de aluguel, de consórcio, de financiamentos etc.
O surgimento de Procons, ainda nos anos 70, e de entidades civis, como o Idec, no fim dos anos 80, contribuíram para a criação do Código?
MS: Foram vários os fatores que influenciaram o CDC. Um deles foi, sim, a criação de Procons e de entidades civis – as primeiras, aliás, surgiram no início dos anos 70, mas não prosperaram porque o Brasil vivia um regime autoritário muito forte. Mas a ideia do Código nasce na Constituinte. Todos os movimentos sociais começaram a se organizar nessa época e cada um tomou certo rumo. O movimento ambientalista conseguiu um capítulo sobre meio ambiente [na Constituição de 1988], por exemplo. O de consumidores, apesar de organizado e já com alguma força, não conseguiu um capítulo específico sobre direito do consumidor na Constituição. Assim, usou a tática de prever na Carta que o Congresso promulgaria um Código de Defesa do Consumidor em 180 dias.
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Foi uma boa estratégia, em sua opinião?
MS: Foi a estratégia possível na época. Mas acho que seria mais fácil garantir certos princípios que estão no CDC se eles estivessem na Constituição. O ideal seria que os direitos básicos, previstos no artigo 6° do CDC, estivessem na Carta Magna e depois viesse uma lei detalhando-os.
O CDC foi muito avançado para seu tempo. O senhor acha que com o atual Congresso teríamos leis como as aprovadas na época do CDC?
MS: Com o Congresso de hoje, não acredito que o CDC seria aprovado. Ele, assim como o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] e outras legislações, nasceu no espírito da Constituição Cidadã. Além disso, na época, o Brasil estava se abrindo para o mercado internacional, contexto que também influenciou. O tema de consumidor já era discutido nos Estados Unidos, na Europa. Com o processo de abertura econômica, o Brasil traz junto a discussão de uma lei de direitos de consumidor.
Como as empresas lidaram com a criação do CDC? Houve resistência à sua aprovação e implementação? E como esses conflitos foram superados?
MS: De modo geral, houve enorme receio por parte de certos setores empresariais e da própria imprensa. Mas o CDC teve prazo de seis meses para implementação. Nesse período, os Procons, o Idec e o Ministério da Justiça trabalharam muito para que ele não virasse letra morta. Foram inúmeras reuniões no Brasil inteiro com fornecedores. Houve, de um lado, um processo de fiscalização do cumprimento do Código; mas também houve, de outro, muito diálogo para que ficasse claro que o CDC não tinha nada contra o mercado, pelo contrário, era um instrumento para aperfeiçoá-lo. Alguns setores se adaptaram, outros não acreditaram que o CDC pegaria e quando a lei entrou em vigor estavam despreparados. Por exemplo, grande parte dos alimentos não tinha prazo de validade e outras informações necessárias.
Historicamente, os setores mais reclamados pelos consumidores – bancos, planos de saúde e telecomunicações – são justamente aqueles regulados pelo poder público. As agências reguladoras têm se pautado pouco pelo CDC?
MS: São vários problemas. O primeiro é que o CDC, que é de 1990, não foi pensado para esse modelo de agências reguladoras que surgiu posteriormente, de 1994 a 1997, principalmente. Dessa forma, não existem no CDC regras específicas sobre esse tema da regulação. Quando surgem as agências, ocorre um conflito, que ainda persiste um pouco, do que cabe aos órgãos públicos típicos de defesa do consumidor e o que cabe a elas. O segundo problema é que o modelo criado no Brasil não deu independência para as agências atuarem dentro de um espírito de Estado. Com o passar do tempo, elas foram sendo capturadas pelo setor. Grande parte dos diretores são ex-executivos do mercado, que vêm com a visão de mercado. Além disso, há uma terceira questão complicada: não existe no Brasil nenhuma estrutura de financiamento para que os consumidores, organizadamente, participem dos conselhos das agências. Os três fatores acabam gerando esses problemas todos e também, claro, porque os setores regulados têm muitos consumidores, então é onde o conflito acontece de forma mais clara. Se não há uma estrutura como deveria haver para lidar onde o problema está acontecendo, ele persiste, e o consumidor se sente completamente desprotegido.
Está em discussão no Congresso dois projetos de lei (PLs) para atualizar o CDC. Quais são as principais mudanças que essa reforma pretende implementar e por quê?
MS: Depois de 25 anos, há alguns temas novos que precisam ser regulamentados. Talvez um dos principais seja o comércio eletrônico. Quando o Código foi criado, as primeiras versões foram escritas a máquina de escrever, para se ter uma ideia. Assim, o CDC não fala de comércio eletrônico, simplesmente porque não havia esse serviço. Há princípios [no CDC] que servem até hoje, mas precisam de atualização. O superendividamento é outro tema que já existia, mas com o passar do tempo ficou claro que é necessário abordá-lo de forma mais profunda. Além disso, o tema do consumo sustentável, que não entrou no CDC; a publicidade infantil, sobre a qual talvez o Código pudesse ter sido mais claro, entre outros. Que eles merecem uma regulamentação, não há dúvida. A grande polêmica é como, se apenas incluindo princípios gerais ou de forma mais detalhada. Seja como for, esses temas estão no Congresso Nacional e nós temos de brigar para sair o melhor possível.
Essa é a grande questão: quais são as perspectivas para o andamento dos PLs no Congresso?
MS: Ninguém tem a menor ideia. Esse Congresso é muito conservador. Em temas próximos à defesa do consumidor, como meio ambiente, houve uma série de retrocessos. Precisamos estar atentos para aprovar esses projetos da forma como eles foram propostos e não deixar haver retrocessos. O direito do consumidor tem de avançar, não retroceder. O ideal, hoje, é aprovar esses dois projetos que tratam de comércio eletrônico e de superendividamento, com o adendo de consumo sustentável, se possível alguma coisa boa sobre publicidade infantil. De outro lado, que esses PLs sirvam para arquivar todos aqueles em tramitação que trazem retrocessos ao Código. Vamos conseguir? O futuro dirá.
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Apesar de todas as mudanças no mercado nesses 25 anos, há quem diga que o CDC permanece atual, porque é "aberto" e pode ser aplicado às novas formas de comércio. O que pensa sobre isso?
MS: Concordo. Ele permanece atual, porque foi feito na base de princípios gerais e, dessa forma, a interpretação vai sendo atualizada e é possível abarcar situações novas que não estavam previstas. Mas alguns artigos do Código, que descem mais ao nível concreto, talvez estejam desatualizados. Por exemplo, o princípio da boa-fé é genérico e aplicável a qualquer contrato, inclusive aos eletrônicos. Agora, o detalhamento da norma de como isso vai ser operacionalizado talvez dependa de uma regulamentação nova.
O direito de arrependimento, previsto no CDC, foi um conceito trazido para a era da internet. Porém, em alguns casos, ele não é aplicado. Por exemplo, na compra de passagens aéreas pela web. Esse é um tipo de situação que merece ser atualizado?
MS: Sim, esse é o tipo de situação que merece revisão específica. Quando foi pensado o direito de arrependimento, 25 anos atrás, tratavam-se de casos como o do sujeito que tocava a campainha de casa para vender uma enciclopédia. Nunca se pensou nessa massificação total de contratações fora do estabelecimento comercial; 25 anos atrás, comprar fora do estabelecimento era uma exceção, hoje virou regra. O princípio geral que garante o direito de arrependimento continua valendo, mas acho que é necessário regramento para certas situações que podem ser realmente específicas.
O senhor foi convidado a sugerir propostas sobre consumo sustentável para a atualização do Código. Quais foram as suas sugestões e por que é importante que esse tema passe a figurar no CDC?
MS: É importante que o consumo sustentável conste do CDC porque, desde a Rio 92 [Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada em 1992], ficou claro que os principais impactos ambientais vêm da sociedade de consumo. Elaborei um texto com várias alterações do Código e praticamente todas foram acatadas pelo relator do PL [senador Ricardo Ferraço]. A principal delas é a inclusão da temática de consumo sustentável nos direitos básicos do consumidor – e é mais do que direito, é dever do consumidor. Outra sugestão é deixar bem claro o princípio da prevenção e da precaução não só em relação à segurança individual, mas à segurança da sociedade. Hoje, se um produto é ruim para a saúde do consumidor, há instrumentos para protegê-lo, mas se o produto é muito ruim para o meio ambiente, não há instrumentos para lidar com isso. Por fim, a ideia é deixar mais clara a informação ambiental, com regras para a publicidade, inclusive.
Os serviços públicos raramente se guiam pelos parâmetros do CDC no que diz respeito ao atendimento ao cidadão. O senhor acha que o Código é plenamente aplicável a eles?
MS: Do ponto de vista jurídico, teórico, o CDC é aplicável aos serviços públicos. Mas, na prática, acaba não sendo: os serviços de transporte e saúde estão muito aquém do que deveriam. Quando o CDC foi feito, não havia serviços [públicos] concedidos e eles têm uma série de especificidades que merecem atenção. Acho que esse é um passo que entidades como o Idec têm de dar, brigar por isso. Essa é uma das principais pautas para o futuro.
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A criação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o lançamento do Plano Nacional de Defesa do Consumidor (Plandec) nos últimos anos alçaram a defesa do consumidor à Política de Estado no Brasil?
MS: A Senacon foi uma providência muito importante para o Brasil, porque representou uma elevação do nível do tema do consumidor dentro do governo federal, antes restrito a um departamento [Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – DPDC]. Dentro da estrutura do governo, são as secretarias que formulam as políticas públicas, nos diversos ministérios. Assim, a Senacon é muito importante porque possibilita colocar o tema dentro da política dos outros ministérios.
Em relação ao Plandec, ele é um plano para a União se organizar para implementar a legislação de consumidor; nesse ponto, ele é um excelente passo. No entanto, ele não afeta os estados, os municípios, as entidades civis. Por isso, o próximo passo seria recriar um Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, com a participação de todos os atores, para auxiliar na formulação de políticas públicas, como há em outras áreas. É importante que agora a gente caminhe para uma estrutura nacional, não só federal.
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Leia mais perguntas desta entrevista no site do Idec. Acesse: http://www.idec.org.br/em-acao/revistas