Os bastidores do congresso
O Congresso Nacional vive um momento de turbulência, marcado por iniciativas polêmicas e por retrocessos de direitos, inclusive os do consumidor. Para comentar esse cenário e falar de outras ameaças aos interesses do cidadãos no parlamento, convidamos o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). Em seu quinto mandato, ele recebeu o Prêmio Congresso Em Foco por se destacar em prol do consumidor, em 2013, e já venceu também por categorias diferentes, como educação, em outras edições do prêmio. Atualmente, é suplente na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara.
Valente critica a falta de fiscalização e controle do Executivo em setores regulados, como bancos, telecomunicações e aviação. Para ele, o monopólio das empresas nesses setores caracteriza o principal ataque aos direitos do consumidor. O parlamentar também sai em defesa do fim do financiamento privado de campanhas que, em sua opinião, acarreta influência direta dos interesses empresariais nas decisões políticas e, inclusive, tem impedido a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os planos de saúde, proposta por ele. Confira a entrevista.
Idec: O senhor recebeu o Prêmio Congresso em Foco por se destacar na defesa do consumidor. Outros deputados identificados com causas progressistas estão entre os mais votados nessa categoria. A defesa do consumidor é uma importante face da defesa da cidadania?
IV: Certamente. O que nos diferencia na Comissão de Defesa do Consumidor é que, para além da defesa do consumidor, nós atuamos pela defesa da cidadania brasileira e pela universalização dos direitos. Esse entendimento visa a combater todo tipo de mercantilização do ensino, da saúde, dos serviços públicos etc.
Idec: Quais são as maiores ameaças aos direitos do consumidor-cidadão atualmente?
IV: O maior inimigo do consumidor é a monopolização da economia. Cinco bancos dominam praticamente toda a economia brasileira – pelo menos no que diz respeito ao consumidor direto. Eles determinam monopólios de tarifas bancárias, mau atendimento, preços exorbitantes de serviços e assim por diante. O mesmo ocorre na aviação. Há quatro ou cinco companhias, sendo duas maiores, que acertam preços, definem condutas em caso de atrasos ou de overbooking para fugir de multas etc. Na telefonia, a mesma coisa. Depois da privatização do sistema Telebrás, houve uma piora violenta na qualidade do serviço.
Nesse cenário de monopolização, há ainda baixa capacidade do Estado de controlar e fiscalizar [o mercado]. Isso remete a outra grande discussão sobre o papel das agências reguladoras, que ao invés de regular, acabam fazendo um jogo de conivência com as empresas que têm de fiscalizar.
Idec: E no Congresso, especificamente, quais são as principais ameaças?
IV: De um lado, tem o poder do sistema econômico, e de outro o sistema político brasileiro, que é baseado no financiamento empresarial de campanhas. Se as empresas de planos de saúde financiam 60, 80 deputados, eles serão defensores de seus interesses dentro do Congresso; se os bancos financiam centenas de deputados, eles serão "reféns" disso; as construtoras, a mesma coisa – está aí a CPI da Petrobrás que não nos deixa mentir: mais de 300 deputados receberam [dinheiro] das construtoras da operação Lava Jato. Então, somando o poder econômico que as empresas já têm com o poder do financiamento de campanha, temos no Congresso defensores diretos de interesses econômicos específicos.
Idec: Há um argumento frequente de que se o financiamento empresarial de campanhas for proibido, as doações continuariam a ocorrer de forma ilegal. O que acha disso?
IV: O caixa dois é crime. Essa desculpa é de quem não quer acabar com o financiamento privado. Se tiver um controle pelo Ministério Público e pela Justiça Eleitoral, se tiver punição para doadores e receptores, com cassação de mandato e de direitos políticos, inibe-se brutalmente [as doações ilegais].
Idec: A reforma do Código de Defesa do Consumidor está em discussão no Senado e deve chegar este ano à Câmara. O senhor pretende atuar nela? Quais são os principais pontos a serem enfrentados?
IV: Não tenho ainda um balanço das propostas que estão sendo discutidas no Senado, mas certamente estarei vigilante para que não haja retrocesso – porque o retrocesso tem sido uma marca dessa última legislatura. O Código de Defesa do Consumidor é um marco legislativo muito importante; é preciso avançar ainda mais em coisas que faltaram ou que, com o tempo, se tornou necessário adequar, e não retroceder em direitos.
Idec: Um dos retrocessos recentes foi a aprovação na Câmara do projeto de lei que acaba com a rotulagem de transgênicos. Ele foi aprovado por significativa maioria — 320 votos a favor e 135 contra. O que levou tantos deputados a concordar com essa medida que claramente viola o direito à informação?
IV: Vários fatores levaram a esse resultado. O primeiro é a predominância de uma bancada ruralista que, sozinha, tem mais de 170 deputados; e eles não defendem os interesses do consumidor ou do cidadão, defendem negócios, o que aumenta o lucro, a exportação. Essa bancada, que foi a responsável pela mudança do Código Florestal, que agora quer acabar com a demarcação de terras indígenas, é a mesma que liderou a votação sobre os transgênicos. Em segundo lugar, a pressão dos grupos econômicos, particularmente das grandes empresas de sementes, como a Monsanto, a Syngenta, às quais os ruralistas são ligados.
A aprovação desse projeto representa um enorme retrocesso, pois a [atual] legislação garante o direito do cidadão de escolha e de informação. É uma visão de negócios que nega a saúde pública, pois existe ainda uma grande discussão internacional sobre o impacto de organismos geneticamente modificados na saúde das pessoas. Faltou bom-senso à Câmara e responsabilidade com o cidadão.
Idec: O senhor propôs a instauração de uma CPI para investigar os planos de saúde, que foi barrada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O que o levou a sugerir a CPI? E por que ela foi vetada?
IV: A CPI tinha foco, tinha o número regimental necessário de assinaturas para sua instauração e uma ampla incidência em relação às necessidades da população: os planos de saúde atingem 50 milhões de pessoas, as reclamações são constantes, assim como as denúncias dos órgãos de defesa do consumidor. O presidente da Câmara vetou a CPI porque é financiado pelos planos de saúde é um defensor de seus interesses: Cunha recebeu R$ 250 mil, oficialmente, da Bradesco Saúde. Ele fez uma medida provisória [MP no 627] que anistiava os planos de saúde em R$ 2 bilhões – vetado pela presidente da República –, e é autor de uma PEC [Proposta de Emenda à Constituição no 451] que obriga todos os trabalhadores a ter um plano privado de saúde. Nós fomos ao STF [Supremo Tribunal Federal], pedimos uma liminar [pela instauração da CPI], que não foi atendida, mas o Supremo ainda pode julgar parecer favorável.
Pedimos essa CPI porque recebemos muitas demandas, porque os planos de saúde estão no topo das reclamações do Procon e do próprio Idec, e porque as reclamações são recorrentes e generalizadas. É um tema da ordem do dia. Vamos insistir na CPI, pois ela tem poder de polícia e pode convocar os presidentes dos grupos de saúde e da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar]. Ela tem capacidade de dar visibilidade a essa crise, que é o que eles não querem.
Idec: O senhor citou a proposta do deputado Eduardo Cunha que pretende tornar a oferta de planos de saúde obrigatória para os trabalhadores. Qual é a sua avaliação sobre essa medida? Ela não é um benefício para o trabalhador?
IV: Ela é aparentemente um benefício. Como o brasileiro está carente de acesso à saúde, pode ver essa proposta como uma solução. Mas a solução é um sistema público universal, que já existe, é o SUS, que está sendo depenado com transferências de recursos do setor público para o privado. Além disso, ele [Cunha] não diz quem é que vai pagar essa conta, se é o cidadão, se são as empresas empregadoras, ou se quer que o Estado transfira o dinheiro da saúde para os planos, via orçamento. É um projeto que só dialoga com a necessidade geral do cidadão, porque o SUS funciona com precariedade, e o sistema privado faz essa propaganda do jatinho que vai buscar com uma UTI móvel. Mas isso é para meia dúzia de pessoas que podem pagar muito. Universalizar plano de saúde não resolve nada, pelo contrário, mata o sistema público de saúde, que é uma das maiores conquistas da redemocratização brasileira.
Idec: Além do financiamento de campanha, há outros mecanismos de influência do poder econômico nas decisões políticas? Como eles podem ser combatidos ou atenuados?
IV: Precisamos criar no Brasil uma cultura de defesa de direitos. A maioria dos parlamentares pensa numa lógica de que o empresário é um benfeitor. Tem gente, por exemplo, que é contra taxar as grandes fortunas, ou taxar heranças, porque acha que isso vai impedir o investimento. Imagina! As grandes fortunas e as heranças só servem para o sujeito desfrutar com luxo, especular com a terra, com imóveis. Os parlamentares atendem muito ao senso comum de que primeiro vêm os negócios, os direitos que se danem. Eles são capazes de votar duas medidas provisórias de ajuste fiscal que, teoricamente, economizam R$ 15 milhões, mas tiram o seguro-desemprego de milhões de pessoas, a pensão por morte de muita gente, enquanto meia dúzia de corruptos do sistema da Receita Federal, aliados às empresas, praticavam corrupção no Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais]. Só aí tem R$ 7 bilhões [em desvios]. Ninguém se importa com isso, nem com a sonegação fiscal, que é de R$ 500 bi, ou que o Brasil pague R$ 1 trilhão de juros para banqueiros. Mas sacrificar os trabalhadores, tudo bem. O senso comum diz que a crise tem de ser distribuída para toda a sociedade e não para quem tem mais. É esse o raciocínio que procuro combater no Congresso.