Marco Civil sob ataque
Possível acordo entre o governo federal e o Facebook, oferta de aplicativos gratuitos pelas operadoras e bloqueio da navegação no celular: entenda como esses assuntos se entrecruzam e por que eles desrespeitam os seus direitos na internet
Panamá, 10 de abril: Dilma Rousseff anuncia, na VII Cúpula das Américas, "estar trabalhando junto com o Facebook para conectar mais pessoas à internet no Brasil, visando à inclusão digital". A foto em que aparece ao lado do fundador e CEO da empresa, Mark Zuckerberg, vestindo um casaco com o logotipo do Facebook e uma bandeira brasileira, correu o mundo. Essa parceria levaria o projeto internet.org – que oferece acesso gratuito a determinados aplicativos – a áreas onde é difícil se conectar, como a Amazônia e partes do Nordeste. Como nada mais foi dito, muitas dúvidas ficaram no ar: recursos do governo serão necessários? O Facebook atuará como provedor de acesso? Quem serão os contemplados? etc.
Imediatamente, o Idec se uniu a outras organizações da sociedade civil e, juntos, enviaram uma carta à presidente, questionando como esse projeto funcionaria e pedindo para participar de reuniões sobre ele. Protocolar, o documento enviado em resposta dizia apenas que, pela natureza do assunto, a solicitação havia sido encaminhada ao Ministério das Comunicações e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A Revista do Idec entrou em contato com as assessorias de imprensa dos dois ministérios: a primeira disse que ficou sabendo da parceria pela mídia e jogou a peteca de volta para a presidência, enquanto a segunda afirmou que não existe acordo, apenas intenção. Simultaneamente, o Idec e outras cinco entidades pediram alguns dados à presidência e aos dois ministérios por meio da Lei de Acesso à Informação. Até o fechamento desta edição, ainda não tinha obtido resposta.
Para o Idec, tanto mistério não é bom sinal. "Se essa parceria foi publicamente anunciada é porque deve existir algum plano para a sua implementação. Portanto, cabe ao governo ser transparente, especialmente por se tratar de um serviço essencial", declara Cristiana Gonzalez, pesquisadora do Instituto.
A preocupação do Idec e de outras organizações é que essa iniciativa, com o aval do governo federal, passe por cima do Marco Civil da Internet, aprovado em abril de 2014, que estabelece princípios e direitos dos usuários na web. O pouco que se sabe sobre o internet. org indica que ele pode violar a neutralidade da rede, além de colocar em risco a privacidade dos usuários e oferecer um acesso muito limitado à internet.
O projeto do Facebook pode violar a neutralidade da rede, colocar em risco a privacidade dos usuários e oferecer acesso limitado à rede
O anúncio do projeto se insere em um contexto em que outras empresas que prestam serviços de internet vêm flexibilizando as regras do Marco Civil em nome de seus interesses comerciais. É o caso da oferta de acesso a determinados aplicativos de forma "gratuita" e do bloqueio da internet no celular após o fim da franquia de dados, implementadas pelas maiores operadoras de telefonia móvel do país. "No corte da navegação, os prejuízos ao consumidor ficam mais evidentes, mas a oferta de aplicativos 'gratuitos' também é uma prática que beneficia os interesses de algumas empresas e limita as possibilidades de navegação do usuário", aponta Gonzalez.
Confira, a seguir, mais detalhes sobre essas iniciativas que caracterizam verdadeiros ataques aos direitos recém-conquistados pelo Marco Civil e também aos garantidos pelo Código de Defesa do Consumidor.
FALSA INCLUSÃO DIGITAL
O projeto do Facebook já vem sendo implementado em alguns países em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina. Com base no que vem sendo feito nesses locais, sabe-se que o internet.org envolve um acordo com o governo do país e uma ou mais operadoras de telefonia móvel para oferecer à população de baixa renda, principalmente, acesso "gratuito" (sem descontar da franquia de dados) à própria rede social e a alguns sites eaplicativos parceiros.
A essa oferta de aplicativos gratuitos é dado o nome de zero rating (franquia zero), que também pode ser chamada de "franquia patrocinada", pois, em geral, o provedor do aplicativo paga às operadoras o tempo de conexão para acessar as páginas preestabelecidas. "No caso do internet.org, não está claro se é assim que funciona. De qualquer maneira, alguém tem de pagar a conta, e isso o Facebook ainda não explicou", comenta Gonzalez.
Para ativistas e pesquisadores sobre internet, o problema começa aí: como as operadoras vão mandar a conta para o provedor de acesso se o Marco Civil da Internet não permite que as empresas de telecomunicação que atuam como provedores de acesso e guardam registros de conexão como número do IP, data e hora em que o usuário se conectou armazenem também os dados de navegação (hora em que cada aplicativo ou site foi acessado)? "A não ser que se rasgue o Marco Civil, as operadoras não teriam como saber o que cada usuário acessou para poder cobrar o Facebook", afirmou o sociólogo e militante pela inclusão digital Sérgio Amadeu no debate Facebook.org.br?, realizado no início de maio pelo Coletivo Digital.
O zero rating fere ainda os artigos 3º e 9º do Marco Civil, que garantem a neutralidade da rede, princípio segundo o qual todos os conteúdos que circulam na internet devem ser tratados da mesma forma. Ao oferecer acesso a determinados aplicativos, algumas empresas são privilegiadas, e aquelas que não têm poder econômico para oferecer acesso gratuito são excluídas do mercado. "Esse projeto é perigoso porque fragmenta a internet, fazendo com que os usuários não gozem da verdadeira rede e não possam partilhar informações sem interferência", opina Luca Belli, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio).
A privacidade dos internautas é outra preocupação. Afinal, se Zuckerberg está interessado em conectar os dois terços da população mundial que não têm acesso à internet é porque isso afeta os negócios do Facebook. "Os consumidores não pagam com dinheiro, mas com os seus dados pessoais, que são coletados, armazenados e vendidos a agências de publicidade. Falar que oferece serviços gratuitos é uma falácia", diz Belli. "A ausência de uma lei de proteção de dados agrava o problema e faz com que os usuários dos serviços disponibilizados pelo internet.org fiquem vulneráveis aos interesses comerciais dessa plataforma", reforça a pesquisadora do Idec.
Embora concordem com o diagnóstico de que há um grande déficit na qualidade e na extensão do acesso à internet fixa e móvel, especialistas não acreditam que o internet.org seja o melhor caminho para a inclusão digital, que é um problema de política pública. "O Brasil precisa investir em infraestrutura, colocar fibra ótica em todo o país e baixar o preço das franquias, o que exige planejamento do governo", defende a advogada Veridiana Alimonti, membro do conselho diretor do Intervozes, ONG que luta pelo direito à comunicação.
Índia, Filipinas, Gana, Zâmbia, Panamá e Colômbia estão entre os países que já são parceiros do Facebook no projeto internet.org. Na Índia, entretanto, várias empresas de comércio eletrônico e desenvolvedoras de conteúdo desistiram do projeto por violar princípios de neutralidade da rede. Na Colômbia, os usuários podem navegar na maior rede social do planeta e em mais 31 sites, mas os ativistas não conseguem acesso ao texto do acordo para saber os detalhes do serviço. Nas Filipinas, o "acesso à internet" limita-se ao Facebook.
No Brasil, o Facebook já promove, desde março, o projeto Facebook na comunidade em Heliópolis, bairro da perifieria de São Paulo (SP). A iniciativa é feita em parceria com a associação de moradores local (Unas) e não tem relação com o internet.org. Por meio dela, professores mostram a comerciantes locais como tirar proveito das ferramentas da rede social. "Ensinamos conceitos de marketing digital, criação de páginas e como se relacionar com os clientes", comenta Ninize do Nascimento, coordenadora do projeto na Unas. "O Zuckerberg postou [no próprio Facebook] que tem vontade de aumentar essa parceria e oferecer acesso wi-fi em Heliópolis, mas por enquanto não há nada definido", conta Jorge Lisauskas, da comunicação da Unas.
QUANDO DE GRAÇA NÃO É BOM
Uma das principais características da internet é a liberdade que os usuários têm de escolher o que acessar, assim como de se expressar e compartilhar suas opiniões. Esses são direitos assegurados pela neutralidade da rede e ameaçados pelo zero rating.
Além de estar na base do projeto do Facebook, a prática da tarifa patrocinada também faz parte do modelo de negócios das principais operadoras de telefonia móvel no Brasil. Desde o fim do ano passado, a Tim passou a oferecer acesso ao aplicativo de mensagens Whatsapp sem desconto na franquia de dados em alguns planos. Assim, mesmo que não haja megabytes disponíveis para navegação, é possível se comunicar com seus contatos.
Ainda em janeiro, o Ministério Público da Bahia instaurou um inquérito para apurar se a prática de mercado da Tim fere o princípio da neutralidade de rede estabelecido pelo Marco Civil, mas a ação do órgão não parece ter intimidado a operadora, que ampliou a oferta para todos os seus planos. Procurada pela Revista do Idec, a Tim disse que todos os seus planos e ofertas cumprem as determinações vigentes [referindo-se ao Marco Civil] e informou que mantém alguns acordos de zero rating, principalmente para disponibilizar aplicativos desenvolvidos pela própria operadora.
Durante alguns meses, os clientes da Claro puderam usar o Facebook e o Twitter "gratuitamente". A promoção foi encerrada em abril. Hoje, a operadora oferece acesso a apps de música e de entretenimento sem descontar da franquia de dados. Questionada sobre a neutralidade da rede, a Claro respondeu que "acredita na importância da liberdade do cliente em acessar seus conteúdos e sites preferidos na internet e que respeita todas as regras do mercado".
"Isso que as operadoras fazem não é acesso à internet, é formação de cartel. Por que o Whatsapp, o Facebook e o Twitter, e não outros apps similares?", indaga Gonzalez. "É claro que entre um aplicativo pago e um 'gratuito', o usuário vai preferir o segundo", conclui Luca Belli, da FGV-Rio.
CERCO AO BLOQUEIO DA INTERNET
Se a prática de zero rating pode até passar despercebida pelo consumidor como um ataque aos seus direitos, o mesmo não se pode dizer do bloqueio à internet no celular após o uso da franquia de dados, que passou a ser implementado pelas maiores operadoras no início deste ano. A medida pegou os clientes de surpresa, até então acostumados a ter a velocidade da navegação reduzida quando a franquia de dados era atingida nos planos ditos "ilimitados". Para o Idec, o bloqueio é ilegal. "Trata-se de alteração unilateral do contrato, já que os consumidores aderiram aos planos com a promessa de que a conexão seria mantida, ainda que com velocidade menor. Além disso, segundo o Marco Civil, a internet é um bem essencial, portanto não pode ser cortada", explica Cristiana Gonzalez.
No final do ano passado, quando as operadoras anunciaram a mudança, a ONG mobilizou os internautas por meio da campanha Não me desconecte, que consistia em enviar mensagens às empresas contra a interrupção do serviço. Mas as empresas implementaram o bloqueio mesmo assim, provocando uma enxurrada de ações judiciais individuais e coletivas, de órgãos de defesa do consumidor, como dos Procons estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os dois conseguiram liminares, que impedem o bloqueio para planos de antigos clientes desses Estados. Até o fechamento desta edição, a liminar do Rio de Janeiro havia sido suspensa; e a de São Paulo permanecia em vigor.
Além das decisões judiciais, diante da pressão da sociedade, as próprias operadoras se comprometeram a parar de bloquear a internet por um tempo. Durante uma reunião com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em abril, as empresas firmaram um compromisso público de tornar mais claras as condições de ofertas de planos de internet móvel, por meio de campanhas informativas. O prazo para elaboração, implementação e divulgação da campanha seria de 90 dias no total, segundo o documento, e só depois desse período (22 de julho) elas voltariam a cortar a internet nos planos contratados como "ilimitados". O Idec recomenda que, caso as empresas continuem bloqueando o acesso, os consumidores denunciem o descumprimento do compromisso à Anatel e das liminares (nos Estados onde elas estão vigentes) ao Procon local.
Para a pesquisadora do Instituto, o compromisso firmado pelas operadoras parece insuficiente para resolver o problema. "Elas só deram uma trégua, mas já avisaram que vão voltar a praticar o bloqueio. Além disso, mesmo que as campanhas informativas sejam implementadas, o que até agora não ocorreu, isso não muda o fato de que o CDC e o Marco Civil são violados com essa prática", dispara Cristiana Gonzalez. Ela critica ainda a atuação da Senacon no caso. "Enquanto os Procons entram com ações judiciais contra a medida, a Secretaria que coordena o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor se contenta com um compromisso voluntário das empresas", diz. "Além disso, tanto a Senacon quanto a Anatel e o Ministério das Comunicações se isentaram da responsabilidade de fiscalizar se o compromisso seria respeitado."
O Marco Civil da Internet está em vigor desde que foi aprovado, em abril de 2014, mas ainda carece de regulamentação — ou seja, de regras que especifiquem como os princípios contidos na lei devem ser implementados na prática. É por meio da regulamentação que vai ficar claro se determinadas práticas de mercado (como o zero rating) devem ser proibidas, por exemplo.
Como parte do processo de regulamentação, estão sendo abertas consultas públicas para receber contribuições da sociedade sobre o tema. Uma delas pelo Ministério da Justiça (MJ), responsável por formular o decreto que vai regulamentar a lei; e outras duas pelo Comitê Gestor da Internet (CGI) e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que, pela lei, ficaram incumbidos de emitir pareceres para basear o decreto.
O Idec enviou contribuições a todas as consultas públicas. No caso das do MJ e do CGI, as sugestões foram mais genéricas e reforçaram a necessidade de se garantir a neutralidade da rede. Já a contribuição à consulta da Anatel, enviada em maio, foi mais técnica e focada em evitar que os modelos de negócio das operadoras interfiram nos princípios assegurados pelo Marco Civil.