A terceirização e o consumidor
Sob forte rejeição da sociedade civil, a Câmara dos Deputados aprovou no início de abril o Projeto de Lei (PL) nº 4.430, que permite ampliar a terceirização do trabalho no Brasil. Hoje, a contratação de uma empresa intermediária para prestação de serviços só é autorizada para as chamadas "atividades-meio", aquelas que não são inerentes ao negócio da empresa contratante. O PL retira esse limite e possibilita a terceirização também de atividades-fim. Com essa flexibilização, o contingente de trabalhadores terceirizados poderia passar de 12 milhões para 40 milhões de pessoas no país.
Dados apontam que o trabalhador terceirizado recebe salários mais baixos, sofre mais acidentes de trabalho e tem maior rotatividade de emprego. Além de condições de trabalho piores, a terceirização também se reflete em má qualidade nos serviços prestados para o consumidor, segundo avalia o jurista Jorge Luiz Souto Maior, um dos maiores críticos da terceirização. Exemplo clássico disso é o telemarketing, setor esmagadoramente terceirizado e reconhecido pelo péssimo atendimento.
Nesta entrevista, Souto Maior, que é juiz do trabalho e professor da Universidade de São Paulo (USP), comenta os prejuízos que a aprovação desse PL, que agora tramita no Senado, pode trazer à sociedade e ao mercado de consumo. Confira.
Idec: O senhor é um dos maiores críticos ao PL da terceirização. Quais são os principais problemas desse projeto?
JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Eu sou crítico à terceirização como um todo. Há muitos anos, venho falando dos problemas da terceirização no que se refere às condições de vida dos trabalhadores, da precarização, da discriminação e da invisibilidade que tem provocado. Há um problema grande e grave de condições de trabalho e de condições humanas. Essa mesma crítica se estende ao PL na medida em que ele tenta expandir essa precarização para todos os trabalhadores. Não dá para acreditar que uma coisa que é ruim em pequena escala será boa em grande.
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Idec: Um dos argumentos a favor do PL é que ele daria mais segurança e proteção ao trabalhador terceirizado. O que o PL deveria contemplar para, de fato, trazer esse benefício?
JLSM: Todos os trabalhadores brasileiros já têm proteção jurídica. A Constituição Federal garante a dignidade e o valor social do trabalho, a proteção contra dispensa arbitrária, direito de greve, além daqueles direitos previstos na CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] e em várias outras leis posteriores. Os trabalhadores não estão legalmente desprotegidos, o que acontece é que inventou-se uma forma de se relacionar com os terceirizados para tentar burlar esses direitos. Então, a forma correta de dar mais direitos a esses trabalhadores é acabar com a terceirização, é colocá-los como efetivos.
Idec: O trabalhador menos escolarizado é mais prejudicado pela terceirização? Ou aqueles com mais qualificação também são afetados?
JLSM: Há uma questão importante aí, que é de classe: ou você é trabalhador, ou está vinculado ao capital. Quando o trabalhador mais qualificado se relaciona com o capital, evidente que há uma disparidade econômica e de poder e, consequentemente, há uma submissão. A concorrência, muitas vezes, o leva a aceitar as condições mesmo ilegais que lhe são oferecidas. E em um nível mais elevado de qualificação, a concorrência é mais acirrada. Então, há uma situação de submissão muito evidente. É claro que, do ponto de vista econômico, o trabalhador mais qualificado ainda consegue melhores salários, mas os dois igualmente são submetidos a situações ilegais e igualmente têm poucas condições de resistir. Quando o trabalhador se submete a ser PJ [pessoa jurídica] em vez de CLT, com todos os direitos constitucionais, na verdade não é uma opção válida, é a imposição de uma ilegalidade.
Idec: Há um discurso frequente de que os direitos trabalhistas são um fator limitador da economia, porque geram muitos custos para o empregador e se refletem em menos postos de trabalho formal. O que é verdadeiro e o que é mito nesse conceito?
JLSM: Esse argumento de que "há direitos demais" é completamente falho. A força de trabalho no Brasil, com todos os seus direitos, está entre as mais baixas do mundo. O custo de um trabalhador na Alemanha é incomparavelmente maior do que no Brasil, porque aqui há direitos, mas tudo parte de uma base salarial muito baixa. Quando a economia diz que é insuportável pagar esse salário e esses direitos, não são os salários e os direitos o problema, mas a economia como um todo. Os problemas econômicos não vão ser resolvidos com a redução de direitos e de salário. Na verdade, com isso há a ampliação do problema, porque haverá consumidores ganhando menos e com menor potencial de consumo.
Idec: A terceirização é defendida para diminuir custos diretos, mas os custos trabalhistas permanecem com a empresa terceirizada. Isso significa que a economia se dará na qualidade dos serviços ou dos produtos?
JLSM: Quanto mais há um processo de intermediação, menos o trabalhador se sente pertencente à instituição, menos compromisso ele tem com a qualidade do serviço e mais precária é a relação. Do ponto de vista do consumidor, ele sente o efeito na qualidade da prestação do serviço e do produto. Quando o cliente vai ao banco, por exemplo, e é atendido pelo gerente, é aquela maravilha. Depois, quando tem um problema e precisa ligar para o call center, o atendimento é péssimo. Ali já não é mais o banco, é um trabalhador precarizado, com baixo salário, condições de trabalho terríveis, que atende da forma mais burocrática e impessoal possível.
Idec: Como está a discussão sobre o telemarketing ser uma atividade-meio ou atividade-fim? Se a empresa presta um serviço ou fornece um produto ao consumidor, atendê-lo não seria uma característica intrínseca de sua atuação?
JLSM: Inegavelmente faz parte da atividade-fim. Existe uma lei, que, mal interpretada, dá a entender que existe a possibilidade de terceirizar a atividade-fim nesses segmentos. O Tribunal Superior do Trabalho já definiu em algumas decisões que não é possível terceirizar essas atividades, mas mesmo assim as empresas têm feito isso à margem da legalidade e têm sido pouco questionadas, inclusive do ponto de vista da advocacia trabalhista.
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Idec: Em uma atividade que requer treinamento intensivo e muita segurança, por exemplo, uma companhia aérea, qual pode ser a consequência da terceirização? Pilotos terceirizados e com treinamento diminuído ou precarizado?
JLSM: Não acredito que chegaria a esse ponto. Imagino que uma empresa de aviação não seria tão irresponsável, mesmo se houvesse um permissivo legal. Mas, independentemente disso, não é só o piloto de avião que gera risco para a sociedade. Pode ser um motorista de ônibus ou de caminhão, atividades em que a terceirização já existe de forma intensa, com jornadas de trabalho terríveis. Há grandes empresas que não têm motoristas para o transporte de seus produtos, elas contratam outras empresas que prestam esse tipo serviço e, nessa precarização, tem motoristas com regime de trabalho de até 72 horas. Ou seja, já existem problemas provenientes da terceirização que geram riscos de forma concreta e em várias atividades.
Idec: O uso de mão de obra escrava, sobretudo no setor têxtil, é frequentemente associado à "quarteirização" do serviço. A ampliação da terceirização pode tornar casos desse tipo mais frequentes?
JLSM: É uma questão econômica muito clara. Quando a empresa contrata diretamente os trabalhadores, a concorrência é limitada pelo direito do trabalho, ela não pode pagar menos que um salário mínimo. Agora, se a concorrência se dá entre empresas, não há qualquer limite. As empresas que queiram prestar esse serviço precisam apresentar o menor custo. Para isso, tiram do salário do trabalhador e do pagamento dos direitos [trabalhistas] corretos. Para não fazer isso diretamente, contrata-se uma outra empresa. E essa outra empresa contrata uma outra. Quando chegar no fim dessa rede, o que vai ter é o trabalho escravo. Ninguém planeja usar mão de obra escrava, mas ela é uma consequência lógica e natural desse processo. Quanto mais intermediários há, mais se precariza a condição de trabalho.
Idec: Como a Justiça tem decidido em relação à responsabilidade das empresas pelas condições de trabalho em sua cadeia produtiva terceirizada?
JLSM: Há uma corrente na Justiça do Trabalho que defende que há uma relação de emprego direta entre o trabalhador lá na ponta e o capital na outra ponta que se vale desse serviço, superando os intermediários. Nem todas as decisões são assim, essa é uma corrente. Agora, quando há situações concretas de condições análogas à escravidão, a resistência [da Justiça] a esse efeito em rede é muito menor, como se tem visto com a condenação de grandes marcas de roupas, que foram processadas por intervenção do Ministério do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho a partir dessa visualização da responsabilidade.
Idec: O PL prevê a responsabilidade solidária entre a empresa tomadora e a prestadora de serviço sobre as garantias trabalhistas do empregado terceirizado. O que isso significa, na prática?
JLSM: Em tese, é um bom mecanismo. Hoje, na terceirização da atividade-meio, a responsabilidade da empresa tomadora é considerada subsidiária, o que significa que [em um processo trabalhista] primeiro é preciso tentar executar a empresa prestadora e, se não conseguir, vai até a empresa tomadora. Por exemplo: um banco terceirizou o serviço de vigilância ou de limpeza. O banco tem dinheiro para pagar, mas primeiro o trabalhador precisa executar a empresa prestadora, que, em geral, não tem dinheiro, para depois executar o banco. Isso leva tempo e o trabalhador demora mais para receber. Na responsabilidade solidária, o trabalhador poderia cobrar direto do banco. O PL melhorou? Mais ou menos. Os casos de terceirização da atividade-meio atingem hoje 12 milhões de trabalhadores. Desses, muitos não entram na Justiça, mas alguns vão, e as reclamações trabalhistas têm esse prejuízo de tempo. Com a ampliação da terceirização para a atividade-fim, poderá haver um universo de 40 milhões de trabalhadores terceirizados. E, se houver a supressão dos direitos generalizados nessas situações, vai ocorrer uma explosão do número de ações trabalhistas.
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Idec: Há preocupação do governo com a redução da arrecadação de impostos com o aumento da terceirização. Por que?
JLSM: A base da arrecadação no nosso sistema é o salário. Se há um achatamento salarial decorrente da terceirização – e a terceirização provoca isso porque dificulta a organização sindical, as negociações coletivas e amplia a concorrência entre as empresas, como já explicado – é claro que a arrecadação vai diminuir. E diminui mais ainda se o responsável pelos recolhimentos previdenciários for a empresa terceirizada, que pode tirar dessa contribuição a sua redução de custos. Ela vai ficar inadimplente, contando que depois conseguirá parcelamento ou contando simplesmente com o processo fiscal que não acaba nunca. A arrecadação de tributos tende a ir pro ralo. O governo sabe que a terceirização vai ter esse efeito ruim para os trabalhadores e para a arrecadação, mas está tentando evitar exatamente que o seu prejuízo seja o menor possível, fazendo com que a empresa "mãe", a empresa tomadora do serviço, fique responsável pelo recolhimento previdenciário e fiscal. Aí a gente já vê claramente o quanto a terceirização gera precarização.
Idec: Há quem defenda a ampliação da terceirização também no setor público, sob o argumento de que daria mais eficiência ao serviço prestado ao cidadão. Qual é a sua avaliação sobre isso?
JLSM: A terceirização no setor público já existe de forma muito intensa, ilegal e inconstitucional, diga-se de passagem. O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça, o Ministério do Trabalho, prefeituras, estados, governos, todos eles terceirizam serviços de limpeza, diversas atividades de secretarias, de transporte. Ou seja, é uma ilegalidade brutal que os próprios entes que seriam responsáveis pela fiscalização já fazem.
Idec: E quanto ao argumento de que a terceirização pode dar mais eficiência ao serviço público?
JLSM: Eficiência é o cidadão chegar em uma repartição pública e ter lá um servidor de carreira, com garantias de emprego e que presta os seus serviços sem medo de contrariar os interesses políticos envoltos naquela atividade. Ele não está vinculado ao prefeito tal, ao governador tal. Quando se tira o servidor público e põe lá um trabalhador terceirizado, que pode perder o emprego a qualquer instante se contrariar o interesse de um deputado, do governador etc., o serviço público fica pior para o cidadão. Além disso, é mais custoso. O Estado gasta mais com a terceirização, pois, em geral, formam-se carteis de empresas, que fazem um acordo e põem o preço lá em cima na disputa da licitação