Luz a preço de ouro
A conta de energia elétrica dos brasileiros já subiu e deve ficar ainda mais cara. Entenda as razões dos sucessivos aumentos e por que, para o Idec, eles são abusivos
A dona de casa Viviane Arashiro de Almeida, de São Bernardo do Campo (SP), aposentou a secadora de roupas, tirou a TV da cozinha e passa toda a roupa da semana em um único dia. A mudança de hábitos foi adotada a fim de minimizar o impacto do aumento da tarifa de energia elétrica, que surpreendeu os brasileiros no início deste ano. No entanto, toda a economia ainda não surtiu efeito. "Em janeiro, paguei R$ 120. Em março, R$ 156, e, em abril, a conta aumentou para R$ 177. Imagine se eu não economizasse!", diz.
Não foi só a conta de luz da família Almeida que subiu. Em 1o de março, os valores das bandeiras tarifárias – que indicam os custos para a geração de energia elétrica e geram acréscimos à tarifa de energia – ficaram mais caras. No dia seguinte, aumentaram também as tarifas de 58 das 63 distribuidoras de energia do país, graças à revisão extraordinária aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Os impactos desses dois aumentos foram fortes. Em São Paulo, por exemplo, os consumidores atendidos pela Eletropaulo pagaram em março 51,8% mais caro do que em dezembro de 2014, segundo cálculos do consultor em energia e presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo, Carlos Augusto Kirchner.
A situação é grave porque a energia elétrica é um serviço essencial, não dá para ficar sem. Ao mesmo tempo, o consumidor não pode escolher de qual empresa comprar a energia, já que o serviço é fornecido em regime de monopólio natural para os clientes residenciais. Sem falar que o fornecimento não é nenhuma maravilha. Quem não se lembra dos "apaguinhos" ocorridos no início deste ano que deixaram milhares de pessoas no escuro? A cada verão a história se repete, e a desculpa das concessionárias é sempre a mesma, a de que as chuvas (ou ventanias) foram mais intensas que o previsto etc. Como se não houvesse verão todos os anos...
Levando tudo isso em consideração, o Idec avalia que esses sucessivos aumentos são abusivos. "Há dois anos, a Aneel vem autorizando reajustes elevados, o que beira a ilegalidade, já que o Código de Defesa do Consumidor protege os cidadãos de taxas abusivas", afirma Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Instituto.
Mas, afinal, por que a energia elétrica está subindo tanto? Em resumo, o sistema hidrelétrico (que utiliza água dos rios), responsável por 70% da energia gerada no país, entrou em colapso. Toda vez que as usinas hidrelétricas ameaçam não dar conta do recado, são acionadas as termelétricas que, para gerar energia, usam carvão, gás natural, combustíveis fósseis etc. e custam bem mais caro. A geradora de energia, então, cobra a mais das distribuidoras (empresas que levam a energia dos centros distribuidores até as casas, indústrias e comércios) que, por sua vez, repassam os gastos ao consumidor. "A população será penalizada não apenas pelo aumento na conta de luz, mas pela alta do preço de produtos e serviços, pois os fabricantes e prestadores de serviços também vão repassar seus custos", alerta Kirchner.
UM AUMENTO ATRÁS DO OUTRO
Desde o início de março, as tarifas de luz ficaram em média 28,7% mais caras nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste; no Norte e Nordeste, subiram 5,5%. Os habitantes de 118 cidades do Rio Grande do Sul foram os mais prejudicados: o reajuste da concessionária AES Sul foi de 39,5%. Entre as maiores distribuidoras, os reajustes mais altos foram o da Copel (36,4%), que atende o Paraná, e da Eletropaulo (31,9%).
Esses aumentos de tarifa foram fruto de revisão extraordinária, que pode ser autorizada sempre que houver risco de desequilíbrio nas contas das distribuidoras. Dessa forma, nada garante que não haverá outras ainda este ano. "O governo imagina que o sistema é capaz de oferecer o serviço a certo custo, mas o custo é muito maior", afirma Roberto D'Araújo, diretor do Instituto do Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina).
Para o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira, no entanto, isso não justifica passar o "abacaxi" para o consumidor. "Se as distribuidoras não conseguem pagar as suas contas, é hora de pensar em alternativas ao modelo atual. Vão repassar esses custos até quando?", questiona. "O aumento de custos por fatores climáticos é um risco do negócio das empresas de energia, as quais, vale lembrar, são privadas. A Aneel não pode se preocupar só com o equilíbrio econômico-financeiro das companhias e deixar o consumidor vulnerável a sucessivos aumentos, que, na prática, impõem uma barreira ao acesso desse serviço essencial", completa Oliveira.
Além da revisão extraordinária, os contratos de concessão firmados entre as distribuidoras e a União preveem mais dois tipos de aumento: a revisão ordinária periódica, que acontece em média a cada quatro anos (a última foi em 2011); e o reajuste anual, que ocorre na data de aniversário de cada contrato (veja a data de cada concessionária em http://goo.gl/UPDIJ5). Até 1o de maio, 18 distribuidoras já haviam aplicado o aumento de 2015.
Entender como se chega aos valores de reajuste é que é difícil, pois os cálculos são bastante complicados. "Há poucas pessoas gabaritadas para acompanhá-los", afirma Kirchner.
BANDEIRAS MAIS CARAS
Além dos reajustes nas tarifas autorizados às concessionárias, a conta de luz também sofre impacto do aumento dos valores das bandeiras tarifárias – sistema que passou a vigorar em janeiro no país (exceto no Amazonas, no Amapá e em Roraima, que não fazem parte do Sistema Interligado Nacional). Em 2 de março, a bandeira amarela subiu de R$1,50 para R$2,50, e a vermelha, de R$3 para R$5,50. Esses valores correspondem ao acréscimo na tarifa (a cada 100 kWh) quando os custos de geração de energia estão piorando e quando já estão ruins e as termelétricas são acionadas, respectivamente. Além da amarela e da vermelha, há a bandeira verde, que significa que as condições de geração de energia estão normais e não há acréscimo na conta de luz.
A Aneel, claro, defende esse sistema de cobrança. "As bandeiras são uma forma diferente de apresentar um custo que já estava na conta, mas passava despercebido. Pelo modelo anterior, que previa o repasse somente no reajuste tarifário anual, o consumidor não sabia que a energia estava cara", declara a agência. O Idec, entretanto, não vê o mundo tão cor de rosa. "Ser informado sobre a cobrança é bom, claro, mas se o valor da bandeira tarifária é um adiantamento de algo que já seria cobrado, o reajuste anual deveria ser menor, mas sabemos que não será assim", prevê Oliveira.
Com a crise hídrica, não há sinais de que os consumidores vejam uma bandeirinha verde em sua conta tão cedo. Questionada sobre a previsão de quais bandeiras devem vigorar nos próximos meses, a Aneel disse que o responsável por essa informação é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) que, por sua vez, disse que essa atribuição é da agência reguladora. Nesse jogo de empurra entre os órgãos do governo, o consumidor paga o pato mais uma vez e fica sem saber.
Aumento final
Considerando o aumento das bandeiras tarifárias, a revisão extraordinária e os reajustes anuais aplicados até 23 de março, o engenheiro e consultor em energia Carlos Kirchner calculou quanto foi o reajuste total na conta de luz de consumidores de seis grandes distribuidoras em relação à tarifa em vigor até o final do ano passado.
• Eletropaulo
Tarifa (kWh)*: R$ 4,27
Reajuste acumulado**: 51,8%
• CPFL Paulista
Tarifa (kWh)*: R$ 4,58
Reajuste acumulado**: 44,5%
• Cemig
Tarifa (kWh)*: R$ 5,36
Reajuste acumulado**: 35,3%
• Light
Tarifa (kWh)*: R$ 5,23
Reajuste acumulado**: 35,3%
• Elektro
Tarifa (kWh)*: R$ 5,61
Reajuste acumulado**: 32,6%
Coelce
Tarifa (kWh)*: R$ 4,46
Reajuste acumulado**: 24,2%
(*) Inclui Bandeira Vermelha (R$ 5,50/kWh) e reajuste extraordinário
(**) Reajuste acumulado até 23/03/2015 em relação à tarifa que vigorava em 31/12/2014
SISTEMA ULTRAPASSADO
Segundo especialistas, a crise do sistema de energia elétrica no Brasil se arrasta há muito tempo. "Herdamos um sistema que funcionou bem por mais de 30 anos, no qual reservávamos energia para os períodos secos. Mas a demanda foi crescendo, paramos de construir usinas com reservatórios e não pensamos em outras alternativas", explica Gilberto Jannuzzi, professor de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para ele, a situação crítica atual de nosso setor elétrico se deve, primeiro, à incompetência dos sucessivos governos para gerenciá-lo. "Em vários momentos, houve relaxamento do cronograma, e usinas que já estavam prontas continuaram paradas", exemplifica. O professor também cita a falta de planejamento como responsável pelos problemas. "Quem paga por esses erros é o consumidor. A luz amarela já acendeu faz tempo, e o governo continua atrasando decisões importantes", protesta.
Jannuzzi avalia que o país deveria ter começado a investir em alternativas para o setor energético desde 1985, quando parou de construir usinas com reservatórios. "O Brasil está sempre atrasado, se apoiando em energias convencionais como a termeletricidade, em vez de investir nas mais modernas e menos poluentes, já utilizadas no mundo todo", opina, referindo-se à energia eólica e à solar.
A produção de energia eólica necessita de um cuidadoso planejamento, pois sem vento não há energia. O sistema sofreu resistência do governo brasileiro, mas está começando a progredir. Já para a energia solar, o problema é a falta de incentivo para a adoção de painéis fotovoltaicos nas residências, ainda caros – um sistema que atenda a uma família de três pessoas custa cerca de R$ 17 mil. Estima-se que o investimento seja recuperado em oito a 10 anos.
"Se houvesse financiamento para energia solar como existe para compra de carro, ela iria bombar", acredita Juscelino Mota, empreendedor que há cerca de um ano abriu uma empresa desse segmento. Ele conta que a procura por painéis fotovoltaicos no primeiro trimestre de 2015 foi maior do que em todo o ano de 2014, tanto por consumidores residenciais quanto comerciais. "O fato de termos sol o ano inteiro em todo o território brasileiro, combinado aos recentes aumentos do preço da energia elétrica, fez deste mercado a bola da vez no Brasil", avalia Mota.
Soluções para o problema existem e não é de hoje. Mas há também muita resistência em adotá-las. "Há interesses políticos que inibem a modernização, já que a energia eólica e solar, por exemplo, dificultam a concentração de poder", analisa Gilberto Jannuzzi.
Erros na conta de luz: o que já foi roubado do consumidor
Em 2007, o Tribunal de Contas da União (TCU) descobriu que desde 2002 havia um erro na fórmula do reajuste da conta de luz. Com isso, os consumidores brasileiros pagaram R$1 bilhão a mais por ano (R$7 bilhões no total) às distribuidoras. O valor, atualizado, estaria na casa dos R$ 13 bilhões. A mudança do cálculo nos contratos de concessão foi feita somente em 2010. Em 2012, o TCU decidiu que as empresas não precisavam devolver esse dinheiro aos consumidores, apesar da pressão feita pelo Idec e por outras organizações da sociedade a favor do devido ressarcimento.
A Aneel, então, declarou que o valor seria "ressarcido" nas revisões tarifárias, mas parece ter se esquecido disso. Questionada pelo Idec, a agência respondeu, por e-mail: "Não há relação desse caso [o erro no cálculo de 2002 a 2009] com os movimentos tarifários que estão acontecendo atualmente". Para Oliveira, a resposta da Aneel é inaceitável: "Beira o cinismo e a má-fé tentar desvincular uma coisa da outra, já que, na ocasião em que o erro foi detectado, a agência afirmou publicamente que haveria compensação nos reajustes futuros".
A Eletropaulo também aplicou reajustes indevidos à conta de 20,1 milhões de paulistas. A concessionária declarou a existência de 246 mil metros de cabos de energia, investimento que influenciou o cálculo do reajuste periódico das tarifas, autorizado a cada quatro anos. Mas, segundo a Aneel, apenas 10 mil metros foram de fato instalados. Assim, com ativos falsos, os reajustes foram mais altos do que o devido, prejudicando os consumidores. Em 2013, a Eletropaulo foi obrigada a devolver cerca de R$ 626 milhões por meio de redução das tarifas ao longo de quatro anos. No entanto, a concessionária recorreu à Justiça e conseguiu escapar do ressarcimento.