Por mais segurança no consumo
É provável que você ou alguém próximo já tenha sofrido um acidente de consumo. Ele ocorre quando, mesmo utilizando um produto de forma correta, o consumidor sofre uma lesão – um corte ao abrir uma lata, um choque ao ligar um eletrodoméstico ou uma reação alérgica ao usar um cosmético, por exemplo. Alguns desses acidentes são graves, levam à internação em hospitais e até à morte. Por isso, é fundamental monitorá-los e prover medidas regulatórias para tornar o mercado mais seguro.
No Brasil, esse papel é cumprido pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), que mantém um banco de dados de acidentes de consumo a partir de relatos dos consumidores.
Nesta entrevista, o assistente da Diretoria de Avaliação da Conformidade do Inmetro, Paulo Coscarelli, explica as ações do órgão nessa área e também comenta o cenário brasileiro de segurança de produtos. Ele avalia que há uma "demanda reprimida" de recalls no Brasil e que, embora regras para garantir a segurança de produtos já existam, falta fazer com que sejam efetivamente cumpridas.
Idec: Qual é a função de um banco de dados como o Sistema Inmetro de Monitoramento de Acidentes de Consumo (Sinmac)?
PAULO COSCARELLI: Em todo o mundo, os principais órgãos regulamentadores na área de segurança de produtos usam informações de banco de dados como subsídio para suas ações de regulação no mercado. Em 2006, quando lançamos nosso sistema, também foi com essa finalidade: monitorar os acidentes causados por produtos no Brasil, a fim de mapear aqueles que oferecem mais risco e, com base nessa informação, avaliar quais produtos precisavam ser regulamentados em função do número de acidentes.
Idec: Quais são seus desdobramentos práticos?
PC: O nosso banco de dados tem uma característica particular, diferente da maioria dos outros países, que é o fato de ser alimentado pelos próprios consumidores, que registram os casos de acidentes no site do Inmetro. A primeira grande descoberta do Sinmac foi que o consumidor não sabia o que era um acidente de consumo. O brasileiro tem a percepção de que o acidente acontece mais por sua culpa do que por uma falha no produto ou na informação dada pelo fornecedor. Dessa forma, não sabia também que tinha de relatar o acidente. No início, o número de relatos era muito baixo. Em 2007, houve 155 relatos; no ano passado, fechamos com 588. Com o aumento gradual do número de casos, em função do despertar de consciência por parte do consumidor, a nossa base de dados vai ficando mais robusta e passamos a ter informações estatisticamente mais confiáveis. A partir delas, começamos a tomar decisões, como aperfeiçoar o programa de certificação de fogões, certificar escadas domésticas, criar o programa de certificação de berços e de carrinho de bebê etc.
Idec: Há diferença entre produto regulamentado e certificado?
PC: A certificação é um complemento à regulamentação. Há produtos que são só regulamentados. Mas quando se quer ter mais garantia de que os requisitos do regulamento técnicos estão sendo respeitados, cria-se um programa de certificação, que avalia a conformidade do produto. Para o consumidor saber que o produto atende a esses requisitos, é inserido um selo de identificação na embalagem.
Idec: O Inmetro fez uma pesquisa recente com consumidores sobre o perfil dos acidentes de consumo. Os resultados coincidem com os registros do Sinmac?
PC: Coincidem totalmente. As três "famílias" que aparecem com destaque nos resultados da pesquisa entre as que mais causam acidentes são eletrodomésticos, embalagens e utensílios domésticos. São essas três também que lideram os registros do Sinmac.
Idec: Os brinquedos também figuram entre os produtos com mais registros de acidentes. Essa posição se deve a problemas nessa categoria ou à vulnerabilidade das crianças?
PC: Os produtos infantis, entre eles os brinquedos, têm total atenção do Inmetro. Nos últimos cinco anos, regulamentamos e certificamos uma série deles: berços, carrinho de bebê, cadeira alta para alimentação, além de brinquedos, que já são regulamentados há mais tempo. Hoje, a categoria de produtos infantis ocupa a quarta posição [entre os registros de acidentes], mas já esteve em primeiro lugar. O número de acidentes vem diminuindo, mas ainda é relativamente alto e chama a atenção por ser voltado para um público que é vulnerável. Não é preciso ter 100 relatos de acidentes com brinquedo para se tomar alguma atitude. Se há um único relato de um caso grave, que indica um risco alto à saúde e à segurança do consumidor, imediatamente abre-se uma investigação para descobrir as causas desse acidente.
Idec: Alguns países exigem que fabricantes e varejistas tenham registros de acidentes e de reclamações de consumidores sobre a segurança dos produtos, além de notificar o poder público quando um problema é identificado. Medidas semelhantes poderiam ser adotadas no Brasil?
PC: Essa exigência já existe. O Código de Defesa do Consumidor determina que o fornecedor, tão logo perceba que colocou um produto inseguro no mercado, retire-o imediatamente e dê ampla divulgação a isso. A diferença é que no Brasil ainda há uma cultura de segurança de produtos em desenvolvimento. Enquanto nos Estados Unidos (EUA) e no Canadá a obrigação é cumprida e, se não for, a empresa é penalizada, aqui ainda não consegue se fazer com que a obrigação seja cumprida. Embora o número de recalls esteja crescendo no Brasil, ele ainda é muito aquém do dos EUA. Há uma certa "demanda reprimida", o que significa que o número de recalls ainda deve aumentar muito mais à medida que a cultura de segurança de produtos se desenvolva e que essa obrigação que já existe no Brasil se faça cumprir.
Idec: Fora as regras do CDC, poderia se exigir das empresas uma atitude mais proativa de registrar os acidentes que envolvem seus produtos e serviços?
PC: Sim, seria ideal que eles mantivessem bancos de dados próprios. Como possuem Serviço de Atendimento ao Consumidor [SAC], as empresas provavelmente recebem reclamações e denúncias sobre algum tipo de risco que o produto colocado no mercado oferece ou algum acidente que eventualmente causou. Seria prudente por parte das empresas manter um banco de dados dessa natureza para aprimorar seus produtos e assim evitar até futura judicialização. Acredito que isso já seja feito, inclusive.
Idec: Além de o número de recalls ainda ser baixo no Brasil comparado a outros países, dados apontam que menos da metade dos consumidores leva os produtos para reparo. Por que isso ocorre?
PC: A efetividade do recall é baixa no Brasil e no mundo todo. Os números da Comissão de Segurança de Produtos de Consumo [dos EUA] apontam uma média de efetividade em torno de 20%. A efetividade está diretamente relacionada ao preço do produto. De acordo com dados da Senacon [Secretaria Nacional do Consumidor], houve 140 recalls no Brasil no ano passado. Nos EUA, foram 387. A grande diferença é que cerca de 85% dos recalls no Brasil são da indústria automobilística, ao passo que os 387 anunciados pelos EUA são todos produtos de consumo, como brinquedos e eletrodomésticos em geral – ou seja, produtos de baixo valor. Portanto, há uma diferença não só no número como também no perfil de recalls aqui e lá. No caso dos produtos de baixo valor de consumo, em geral, o consumidor joga fora ou deixa de usar, não busca reparação ou o ressarcimento junto ao fornecedor. Isso considerando aqueles que tomam conhecimento do recall, pois a maioria não tem acesso a essa informação. Citando também o exemplo dos EUA, quando há um recall lá, há alertas na prateleira do supermercado onde o produto costumava ser vendido. Aqui, as campanhas de recall são anunciadas em jornais de grande circulação, até porque há regras estabelecidas pelo Ministério da Justiça, mas ainda não são divulgadas da maneira que deveriam.
Idec: Por que há tanta diferença no perfil dos recalls no Brasil e nos EUA?
PC: Nos EUA existe mais "consciência" entre os fornecedores. Cerca de 90% dos recalls são voluntários: são os fornecedores que procuram a comissão de segurança e informam que colocaram produtos inseguros no mercado e vão retirá-los. Aqui não só o perfil é diferente como a voluntariedade é menor. Essa diferença ocorre porque, lá, se a empresa descobre que colocou um produto inseguro no mercado e não segue a regra de em até 48 horas dar o primeiro aviso e em até dez dias tomar uma ação, é multada pesadamente. Aqui no Brasil essa "consciência" não existe. As regras, como já dito, são semelhantes: o fornecedor também não pode colocar produto inseguro no mercado e, se colocar e descobrir, é obrigado a retirar. Só que ele não faz isso porque aposta na impunidade. Se é multado, consegue liminar na Justiça que o livra do pagamento. Então, temos um número de recalls nessa área de produtos de consumo, descontando a indústria automobilística, muito baixo. Precisamos de um arcabouço jurídico mais robusto no Brasil nessa área.
Idec: A compra em sites da China é uma febre no país. Existe algum controle sobre a qualidade desses produtos?
PC: As regras que valem para o comércio tradicional valem também para o eletrônico. O problema é que é muito mais difícil monitorar, identificar e penalizar uma empresa que comercializa um produto irregular pela internet. Essa não é uma particularidade nossa, os outros países também têm essa dificuldade. Um exemplo da dificuldade em controlar a venda de produtos irregulares pela internet é o caso da chupeta customizada, noticiado recentemente na mídia. A chupeta é um produto certificado pelo Inmetro, mas identificou-se que pessoas compram essas chupetas e, artesanalmente, colam cristais em seu escudo. Esteticamente, ficam muito bonitas, mas os cristais podem se descolar, e a criança os inalar. Nunca encontramos esses produtos à venda em lojas físicas, mas, pela internet, tem o tempo todo, em sites como Mercado Livre e pelo Facebook. No Mercado Livre, já encontramos até selo do Inmetro à venda! Entramos em contato e eles retiraram o anúncio, mas sabemos que nada garante que no dia seguinte não tenha outro novamente. O desafio é enorme e objeto de preocupação no mundo inteiro.