Saúde no vermelho
A história do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil é marcada pelo subfinanciamento. Desde que foi instituído, recebe recursos insuficientes para executar as tarefas que lhe são incumbidas: atendimento universal, gratuito e de qualidade. É o que afirma o economista Áquilas Mendes, professor livre-docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele avalia que essa situação crônica é o principal problema de saúde pública no país.
O quadro que já era ruim deve ficar ainda pior com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 358 em fevereiro pelo Congresso. A chamada PEC do Orçamento Impositivo altera o repasse de recursos para a saúde, reduzindo o aporte de bilhões de reais por ano para o setor, na contramão dos anseios da sociedade civil organizada.
A notícia não poderia ser mais desanimadora neste mês em que se comemora o Dia Mundial da Saúde (7 de abril), pois a falta de dinheiro se reflete em longas filas de espera, atendimento ruim e outros problemas dos hospitais públicos que os brasileiros tanto conhecem. Nesta entrevista, Mendes analisa a desvalorização do sistema público e alerta para um processo de mercantilização cada vez maior da saúde.
Idec: Quais foram as principais mudanças nas regras de repasse para o SUS trazidas pela PEC do Orçamento Impositivo?
ÁQUILAS MENDES: A PEC mudou a base de cálculo. Antes, a EC [Emenda Constitucional] 29 previa a aplicação do montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB [Produto Interno Bruto]; agora, a base é a Receita Corrente Líquida (RCL), que corresponde ao total das receitas do governo federal – tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais etc., deduzidos os valores transferidos aos estados e municípios, a contribuição dos servidores para seu sistema de previdência, entre outros descontos. A nova regra prevê a execução do repasse de forma escalonada em cinco anos: no primeiro, devem ser aplicados 13,7% da RCL; o percentual aumenta gradualmente até alcançar 15% da receita no quinto ano. Há cálculos que apontam que a nova base acarretará uma perda de cerca de R$ 8,6 bilhões já no primeiro ano de implantação da PEC, em 2016.
Além disso, a PEC traz dois graves problemas: um deles é que o recurso referente ao Pré-Sal deixa de ser um excedente para a saúde, o que significa a perda de alguns bilhões de reais. O outro é um aumento das emendas parlamentares para um teto de 1,2% da Receita Corrente Líquida, e metade pode ser retirada do orçamento da saúde. A PEC é chamada de "orçamento impositivo" porque torna obrigatória a execução total das emendas parlamentares [recursos que os deputados e senadores destinam para projetos em seus redutos eleitorais]. Sabemos que a maioria das emendas parlamentares não é articulada em sintonia com a política do SUS; elas têm mais relação com interesses específicos dos parlamentares. Dessa forma, as restrições ao financiamento do SUS serão ainda maiores, distanciando-o de sua proposta de ser um sistema universal de saúde.
Idec: Quando se fala nos gastos da União com a saúde, há três propostas que se destacam: destinar 10% do PIB; 10% da Receita Corrente Bruta ou da Receita Corrente Líquida. Qual é a diferença entre cada uma dessas "fórmulas"?
AM: A Receita Corrente Bruta (RCB) é o total das receitas da União sem descontos. Com as deduções, já citadas na resposta anterior, temos a Receita Corrente Líquida. A destinação de no mínimo 10% da RCB é defendida por entidades vinculadas à Saúde Pública, como a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], o Conselho Nacional de Saúde e outros. Essas organizações conceberam um projeto de lei de iniciativa popular, conhecido como Saúde +10, que foi assinado por 2,5 milhões de brasileiros e tramita no Congresso desde junho de 2013. Se esse projeto for aprovado, o SUS contará com um acréscimo no orçamento de cerca de R$ 46 bilhões, o que corresponde a 0,8% do PIB. A proposta é importante para a sobrevivência do SUS, mas sabe-se que não resolve por completo o subfinanciamento histórico da saúde pública no Brasil. Nesse sentido, o ideal seria a aplicação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a saúde.
Idec: O senhor critica o argumento de rigidez orçamentária sempre apresentado pelo governo para não ampliar os recursos para a saúde. Por que a justificativa não procede?
AM: No plano mais geral, a dificuldade para a ampliação do gasto em saúde pública centra-se na esfera da política macroeconômica desenvolvida pelos últimos governos (Fernando Henrique, Lula e Dilma). Um dos objetivos dessa política é realizar anualmente substantivo superávit primário (receitas menos despesas, das três esferas de governo), a fim de manter sob controle o nível de endividamento do país, em detrimento dos desenvolvimento dos direitos sociais dos brasileiros. É a partir dessa política que o governo tem 46% de seu orçamento comprometido com o pagamento da dívida pública. Isso precisa ser denunciado, e a inversão dessa prioridade em favor das áreas sociais, especialmente as referentes aos direitos sociais, como a saúde, defendida.
Idec: Em sua opinião, o subfinanciamento do SUS é o principal problema de saúde pública no Brasil?
AM: Não tenho dúvida disso. A história do SUS é marcada pelos problemas de financiamento. Os recursos públicos envolvidos sempre foram insuficientes para garantir uma saúde pública universal, integral e de qualidade. Em 2012, o gasto público brasileiro em saúde foi de 3,9% do PIB (sendo 1,8% da União, 1,1% dos municípios e 1,0% dos estados), enquanto a média dos países europeus com sistemas universais foi de 8,3% do PIB.
Além de ser subfinanciado, o SUS enfrenta sérias distorções na aplicação dos recursos a ele destinados. Estes têm sido usados, prioritariamente, para financiar a atenção especializada de alto custo, em sua quase totalidade prestada por serviços privados contratados. Nessa perspectiva, além de mais recursos para o SUS, é importante alterar essa lógica a fim de superar o contraproducente financiamento por procedimento, por metas.
Idec: A responsabilidade pela destinação de verbas para a saúde é compartilhada entre a União, os estados e os municípios. Por que as críticas em relação aos problemas de financiamento do SUS se dirigem mais ao governo federal?
AM: O processo de descentralização do SUS e a aprovação da EC 29 provocaram impactos importantes no gasto público com a saúde, com significativa elevação da participação de estados e municípios. Em 1980, o governo federal participava com 75% dos recursos públicos alocados em saúde. A partir dos anos 2000, a sua participação foi decrescendo, atingindo 45,4% em 2011, ao passo que a dos estados aumentou de 18,5% para 25,8%, e a dos municípios de 21,7% para 28,8%.
O resultado do aumento da participação dos estados e municípios no total dos recursos públicos significou uma elevação do gasto per capita das três esferas com o SUS, passando de R$ 378,27, em 2000, para R$ 717,70, em 2010. No entanto, o volume de recursos poderia ter sido maior se o governo federal e os estados tivessem cumprido a EC 29 de maneira plena. Ambos têm se utilizado de vários mecanismos para aplicar recursos menores. Entre 2000 a 2008, o governo federal incluiu no orçamento do Ministério da Saúde gastos que não se enquadram em ações e serviços de saúde; como com hospitais militares, com assistência médica a servidores – ambos atendimentos que não caracterizam acesso universal –, além de despesas com bolsa alimentação e com o programa farmácia popular, totalizando uma perda de recursos de mais de R$ 6 bilhões.
Idec: Quais são as competências de cada ente da federação em relação à saúde pública? Como o cidadão pode saber de quem cobrar?
AM: À União está reservado o papel de coordenação da política de saúde no país e a cooperação técnica e financeira aos demais entes. Os estados devem se responsabilizar pela cooperação técnica, principalmente regional, e financeira aos municípios. Estes últimos são os responsáveis pela execução das ações e serviços de saúde, especialmente no campo da atenção básica.
No que se refere ao financiamento dessas responsabilidades, todos os entes devem ser cobrados e responsabilizados.
Idec: Uma grave crise financeira está instalada na Santa Casa de São Paulo, que chegou a fechar o pronto-socorro no ano passado. Qual é a responsabilidade do governo do Estado nessa história?
AM: O contrato firmado entre o governo do Estado de São Paulo e a Santa Casa estabelece as responsabilidades da instituição em relação aos serviços de saúde que devem ser assegurados por ela. É dever do governo do Estado acompanhar o desenvolvimento desse contrato, isto é, o cumprimento de suas metas físicas e financeiras. Se algo problemático acontecer na execução do contrato, o Estado tem pleno direito de alterar o repasse de recursos. Assim, não dá para aceitar que o governo estadual não estava por dentro da crise financeira da Santa Casa. Se isso aconteceu, o monitoramento e a avaliação da Secretaria de Estado da Saúde estavam com problemas.
Idec: Diante do histórico de destinação de verbas incompatível com um sistema de saúde pública universal e de cada vez mais incentivos aos planos privados, o senhor acha que a tendência é que o País caminhe para um modelo de mercado?
AM: Não tenha dúvida. Porém, a nossa luta tem sido e será de condenar a PEC 358/2013 em nome da sobrevivência do SUS universal no nosso País. Como disse, essa PEC incluirá muito pouco ou quase nada de recursos financeiros, tendo em conta o que a saúde universal necessita. Não podemos aceitar essa vergonha nacional em relação ao SUS. Não aceitaremos a consolidação da privatização do SUS, destruindo a saúde como direito.