Vidas secas
Diante do risco de colapso do sistema hídrico e da provável adoção de um rigoroso racionamento de água em São Paulo, veja dicas para reduzir drasticamente o consumo e armazenar o recurso de forma segura
A cada semana de chuvas abaixo da média e de reservatórios secando, de problemas da rede de abastecimento revelados e de novos relatos alarmantes de desabastecimento em muitos pontos das cidades, fica mais clara a possibilidade de um colapso do sistema hídrico no Sudeste e de falta de água por longos períodos.
Se há alguns meses as autoridades não assumiam o problema, agora já se fala que a cidade de São Paulo possa enfrentar em breve um rodízio rigoroso – uma das possibilidades aventadas é de que haja abastecimento em apenas dois dias da semana e cinco dias sem. Diante disso, mesmo quem já reduziu seu consumo vai precisar adotar medidas mais drásticas para conseguir viver com pouquíssima água disponível. "Muitas pessoas estão economizando cerca de 20% comparado com o normal, que já embutia muito desperdício. Precisamos mudar o patamar de consumo de água", diz Claudia Visoni, ambientalista e membro da Aliança pela Água, rede de organizações da qual o Idec faz parte.
Embora o consumidor não seja o responsável por uma crise que tem origens mais profundas, é fundamental colaborar para reduzir os danos coletivos. Além disso, é preciso estar preparado para a possível implementação do rodízio. Por isso, a Revista do Idec reuniu dicas para economizar ainda mais e para armazenar a água para os dias secos.
As orientações estão divididas em três fases: aquelas mais simples, que podem e devem ser adotadas continuamente; medidas mais elaboradas, mas que são importantes nesse momento de crise; e outras mais severas, que podem ser necessárias em um cenário de forte escassez. Além das dicas desta matéria, a Aliança lançou um guia sobre como viver com pouca água. Confira em: www.aguasp.com.br.
APROVEITANDO A ÁGUA DA CHUVA
A água da chuva é de boa qualidade, e com os devidos cuidados, pode suprir pelo menos parte das necessidades para descargas e limpeza. Vale até balde e bacia para uma coleta improvisada, mas cisternas são ideais. Elas podem ser compradas e instaladas por um profissional habilitado e com custos acessíveis, a partir de R$ 600, ou construída por conta própria – o material custa cerca de R$ 300. O coletivo Cisterna Já ensina passo a passo como construir uma. Assista ao vídeo no link: http://goo.gl/DQYNPn.
A água da cisterna tem duração indefinida, desde que ela seja coberta e não tenha contaminação por materiais orgânicos, como folhas e insetos. A água dos primeiros 10 minutos de chuva deve ser descartada, porque se contamina com a sujeira acumulada no telhado, que pode incluir resíduos, como fezes de pombos e urina de ratos. Se for captada diretamente da precipitação (sem passar pela calha), a água é mais segura.
COMO REDUZIR O CONSUMO DE ÁGUA
Hábitos diários que devem mudar de vez
• Tomar banhos rápidos, com o registro fechado ao ensaboar-se
• Escovar os dentes e fazer a barba com a torneira fechada. Usar água apenas para enxague, com um copo
• Colocar um balde embaixo do chuveiro a gás enquanto a água esquenta e reutilizar de outras formas, como na máquina de lavar, para lavar louça etc.
• Captar água da chuva em cisternas para utilizar na limpeza e em regas
• Utilizar máquinas de lavar louça e roupas na capacidade máxima
• Lavar frutas e verduras numa bacia com ajuda de uma escova em vez de usar água corrente ou deixá-las de molho em solução de hipoclorito de sódio (os postos de saúde distribuem gratuitamente essas soluções)
• Varrer calçada e quintal em vez de lavar
• Regar plantas no começo e fim do dia, fora do horário de sol forte
• Cobrir piscina de casa ou condomínio quando não estiver em uso para evitar evaporação
• Identificar e reparar vazamentos na tubulação de casa
• Instalar arejadores e redutores de vazão nas torneiras e chuveiros, que podem economizar mais de 50% da água
• Incluir em planos de reforma e de construção, tanto de casas quanto de edifícios e condomínios, projetos de reuso e economia de água e de energia
• Individualizar os hidrômetros de quem mora em condomínio para controle e uso consciente da água
• Condomínios com mina d'água podem pedir autorização para reuso ao Departamento de Água e Energia Elétrica (DAEE).
Medidas para reduzir o consumo durante a crise
• Com a ajuda de baldes e bacias, armazenar a água do banho, da lavagem da louça e do enxágue de roupa para reutilizar na limpeza da casa e para descarga. Essa água deve ser aproveitada em até 24 horas
• Tomar banho "de caneca"
• Usar bacias em vez de água corrente para lavar louça e roupas
• Não gerar louça desnecessária, como vários copos para beber água ao longo do dia, e lavar roupa só quando estiver realmente suja
• A louça pode ser colocada numa bacia de molho ao longo do dia para facilitar a lavagem. Adaptar bombonas para captar água da máquina de lavar para reuso
• Acionar a descarga o mínimo possível. Bicarbonato de sódio e borra de café ajudam a diminuir o odor de urina entre os acionamentos da descarga.
Medidas emergenciais em caso de racionamento prolongado
• Se não houver água para descarga por períodos prolongados, o vaso sanitário deve ser lacrado. A urina pode ser dispensada na terra sem risco de contaminação; as fezes devem ser embaladas em sacos plásticos e descartadas com o lixo
• A louça pode ser higienizada com guardanapos para retirar o excesso de sujeira e receber uma segunda higienização com álcool gel
• Se a única água para beber e para cozinhar for de origem e de qualidade duvidosa (de coleta da chuva, de caminhão-pipa ou outras fontes), é fundamental fervê-la por dez minutos antes do consumo
• Na impossibilidade de tomar banho, a higiene pessoal pode ser feita com toalhas e lenços umedecidos.
Fontes: Renata Amaral (Idec), Instituto Akatu, Claudia Visoni (Aliança pela Água ) e Luciano Legaspe (Escola de Reciclagem)
CUIDADOS SANITÁRIOS
Uma das principais preocupações com a escassez é o consumo de água imprópria e o risco de disseminação de doenças. José Luiz Negrão Mucci, professor do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), explica como utilizar a água de cada fonte:
• Água tratada que chega pelo cano: é segura para consumo e sua qualidade é garantida pela companhia de distribuição, mas depende também da limpeza da caixa d'água.
• Água da chuva: se coletada diretamente pode ser usada para limpeza e rega de hortas e de plantas. Para cozinhar ou beber, deve ser fervida por cerca de 10 minutos e filtrada.
• Água de caminhões-pipa: deve ser fervida por 10 minutos antes do consumo. Para banho não é necessário ferver.
Para evitar a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, como a dengue, é importantíssimo manter cisterna, baldes e bacias usados para armazenar água bem fechados. Aplicar cloro (1 ml para cada litro d'água) também é recomendável para eliminar larvas.
Mudanças a longo prazo
A situação está ruim e não há previsão de melhora em curto prazo. Segundo Claudia Visoni, a expectativa é de que a situação dos reservatórios só volte ao normal em três anos, no mínimo. "Isso se tivermos verões muito chuvosos, se fizermos a lição de casa como a preservação de nascentes, vegetação em represas e mata ciliar", pontua.
Assim, o ideal é começar a pensar em mudanças de longo prazo em relação ao uso da água. A recomendação vale tanto para os consumidores quanto para os governos, gestores dos recursos hídricos. Renata Amaral, engenheira ambiental e pesquisadora do Idec, destaca que uma crise de tamanhas proporções cria oportunidades para profundas mudanças de paradigma na gestão da água. "Temos de nos adiantar e transformar a relação que temos hoje com a água", diz.
Considerando exemplos de cidades pelo mundo que gerenciaram a escassez de água, essas mudanças devem incluir a readequação dos sistemas de águas fluviais e de reuso. O ambientalista Luciano Legaspe, da Escola de Reciclagem, dá o exemplo da própria casa, construída com princípios sustentáveis de uso da água, que deveriam ser a lógica das novas construções. "A casa tem cinco tubulações diferentes: a água do banho e da máquina de lavar roupa vão para um tanque de reuso, direcionado para a descarga, para lavagem do chão, do carro etc. E a água da descarga do vaso vai para um biodigestor", explica.
Ele tem ainda uma cisterna que garante autonomia de vários dias para a família. "Nas casas antigas é mais complicado, mas é fundamental prever essa mudanças em reformas estruturais. Ou reusamos, ou não tem água", diz Legaspe. "Possivelmente, essa crise vai durar anos e não há garantia de que um dia se resolva, por causa por causa das mudanças climáticas. Quem tem de mudar é a sociedade, a natureza já mudou", finaliza.