A defesa do consumidor na era digital
Utilizar as ferramentas digitais e as redes sociais para mobilização é a estratégia que deve marcar a atuação das organizações de defesa do consumidor em todo o mundo. Essa é a aposta de Jim Guest, presidente da Consumers International (CI), federação que reúne entidades em 120 países, entre elas o Idec, único brasileiro membro pleno. O advogado norte-americano presidiu também por 13 anos a Consumers Union – uma das mais antigas e respeitadas instituições dedicadas ao tema em todo o mundo –, dos Estados Unidos, função que deixou no ano passado.
Para ele, a atuação de entidades civis de defesa do consumidor é essencial para contrabalancear o poder financeiro das empresas, que lhes permite investir alto em propaganda e, de certa forma, manipular os clientes. "As empresas têm o dinheiro, mas nós temos as pessoas", diz.
Jim Guest esteve no Brasil em novembro passado, justamente para participar de um seminário internacional sobre o fortalecimento das organizações civis. Neste mês em que comemoramos o Dia Mundial do Consumidor, confira a entrevista que ele concedeu à Revista do Idec, em que comenta o papel das entidades e analisa o cenário de proteção ao consumidor no Brasil e no mundo.
IDEC: Baseada em sua experiência na defesa do consumidor, o senhor acredita que as empresas respeitam mais os consumidores hoje do que no passado?
JIM GUEST: Acho que os consumidores têm se tornado mais exigentes e as empresas perceberam isso. Nesta nova era do marketing, as empresas estão tentando dizer: "Nós é que nos preocupamos em ajudar os consumidores". Isso não é verdade, definitivamente, pois elas estão tentando vender mais produtos e estão cada vez mais espertas sobre como fazer isso. E têm o dinheiro para divulgar suas mensagens, enquanto os grupos de consumidores não têm recursos.
As empresas fazem propaganda, e propaganda é quase sempre enganosa. Elas escolhem cuidadosamente o que vão dizer para tentar manipular o consumidor e convencê-lo a adquirir produtos e serviços. Elas não buscam informá-lo para que tome uma decisão de compra bem embasada. Alguém tem que contrabalancear o poder da propaganda, e é isso que fazem o Idec e outras organizações, como a própria Consumers International.
IDEC: Como as organizações de consumidor podem contrabalancear o poder econômico das corporações?
JG: É fundamental que as entidades façam muita pressão. Os consumidores têm enfrentando com certo sucesso corporações multinacionais muito poderosas e também os grandes interesses do mercado. Então, acredito que os consumidores e as organizações não devem hesitar em exercer o máximo de pressão possível.
Uma das boas oportunidades criadas na atual era digital é a possibilidade de mobilizar dezenas de milhares de consumidores utilizando as mídias sociais e outras ferramentas. Esta é uma visão otimista, no sentido de que a voz dos consumidores, seja no Brasil ou no mundo, pode ser mobilizada. As empresas têm o dinheiro, mas nós temos as pessoas.
IDEC: Como se valer das redes sociais nesse sentido?
JG: As entidades de defesa do consumidor precisam definitivamente reconhecer o poder das redes sociais e de outras ferramentas digitais. Em alguns casos, isso já é feito, mas precisamos elevar essa relação a um novo patamar. Acredito que, em dois ou três anos, a CI deve ter uma atuação bem diferente da atual, muito mais poderosa, em razão do uso das diversas ferramentas digitais disponíveis.
Esse é o lado bom da era digital. O lado negativo é que as empresas estão vendendo mais do que nunca ao ter acesso aos hábitos de consumo das pessoas, apurados por ferramentas que registram suas atividades online. É assustador perceber o quanto as ferramentas digitais permitem conhecer detalhadamente os hábitos e interesses do consumidor.
IDEC: Quais questões o senhor considera mais relevantes hoje em relação aos direitos do consumidor em âmbito internacional?
JG: É interessante perceber que o Idec vem atuando nas mesmas áreas e, em grande parte, tratando das mesmas questões que a Consumers International, o que não é surpreendente, pois consumidores de todas as partes do mundo enfrentam desafios similares. Entre elas estão: a venda de bens de que o consumidor não necessita; a venda de produtos financeiros de alto risco; abusos cometidos em relação à prestação de serviços financeiros ou de telecomunicações; e problemas com a venda de alimentos não saudáveis.
Consumo sustentável também está se tornando uma questão que atrai crescente interesse internacional. A qualidade e a segurança em serviços médicos, assim como os abusos relacionados aos planos de saúde, são outro ponto.
IDEC: O foco da campanha da CI para o Dia Mundial do Consumidor deste ano é pressionar a Organização Mundial da Saúde a criar uma convenção global para a promoção de alimentação saudável. Quais objetivos práticos a CI pretende alcançar e por que este tema foi escolhido?
JG: A alimentação não saudável está ligada a quatro das dez principais causas de morte em todo o mundo. Estimase que a obesidade sozinha custe US$ 2 trilhões por ano. Faltam ações coordenadas em escala global que façam frente a essa crise na saúde pública que vem se desenrolando. Os consumidores precisam de condições para poder escolher alimentos saudáveis. Em nível nacional, nós queremos que os governos adotem medidas para tornar mais fácil o acesso a alimentos saudáveis. Por exemplo, por meio de programas que visem a reduzir o teor de gorduras, sal ou açúcar nos alimentos; e que tornem a rotulagem nutricional mais clara para o consumidor. Uma convenção internacional daria suporte aos governos para implementar essas medidas e é por isso que queremos que os ministros da saúde comecem essa discussão na Assembleia Mundial da Saúde, em maio deste ano.
IDEC: O Congresso Mundial da CI deste ano vai ocorrer no Brasil, no início de novembro. O que motivou a escolha do país para sediar esse importante evento em 2015?
JG: A CI está muito orgulhosa e animada em realizar o 20º Congresso Mundial em Brasília [DF], sendo coanfitriã do evento junto com a Senacon [Secretaria Nacional do Consumidor]. O tema do Congresso – Despertando o poder do consumidor: uma nova visão para o mercado global – explora como a capacitação e a defesa do consumidor podem trazer contribuições para o desenvolvimento econômico e social. O encontro será uma excelente oportunidade para o Brasil mostrar a sua visão inspiradora para o futuro. Será também um bom momento para desenvolver a discussão estratégica em torno de como podemos realmente capacitar os consumidores em um mundo cada vez mais digitalizado e globalizado.
IDEC: A revista Consumer Reports, braço editorial da Consumers Union, é publicada desde 1936. Como foi possível se reinventar ao longo de tantas décadas e manter a publicação independente, sem anunciantes, frente à concorrência advinda da internet?
JG: Ao longo dos anos, tivemos que mudar, assim como o próprio mercado mudou. Aposentei-me há alguns meses – fui presidente e CEO [chief executive officer] da Consumer Reports por 13 anos. Mas, provavelmente, nós promovemos mais mudanças nesses 13 anos do que nos 30 anos anteriores, porque a era digital proporcionou essas mudanças, mesmo. Quando assumi, nós tínhamos quase cinco milhões de assinantes da revista impressa e mais ou menos 500 mil usuários registrados em nosso website. O site cresceu de 500 mil para mais de três milhões de assinantes, enquanto o número de leitores da revista caiu um pouco. O website está sendo reformulado para ir ainda mais além, aproveitando as vantagens oferecidas pelas mídias sociais.
A Consumer Reports testa mais de três mil produtos por ano e por isso é fundamental se mostrar confiável sempre. Creio que a principal necessidade para prosperar é ouvir atentamente o que dizem os consumidores e entender o que eles querem, de fato.
IDEC: Como o senhor vê o trabalho do Idec como membro da Consumers International?
JG: Eu tenho acompanhado o Idec desde seu início. A Consumer Union destinou recursos iniciais para ajudar na criação da entidade. Há 27 anos somos fãs do Idec, que tem feito um trabalho realmente muito bom para os consumidores do Brasil. É preciso agora – tal qual devem fazer outras organizações – dizer: "Ok, fizemos um bom trabalho. O que precisamos fazer neste momento para mudar e adaptar o consumo a esta economia globalizada, multinacional e digital, que nos traz uma enorme gama de novos desafios?" Ao final, estou certo e confiante de que o Idec vai encontrar as respostas para manter a evolução de seu trabalho.