Imóvel sem abusos
No mesmo ritmo de novos lançamentos, também explodiu o número de ações judicias contra o setor imobiliário nos últimos anos no país. Em 2013, um levantamento feito por um escritório de advocacia apontou que o número de ações contra construtoras havia aumentado 15 vezes em cinco anos em São Paulo. No Estado vizinho ao da pesquisa, o próprio Judiciário decidiu fazer alguma coisa para mudar esse quadro: o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) criou, a partir de discussões com as empresas do setor, uma proposta de adequação dos contratos imobiliários à legislação de proteção ao consumidor. Para entender melhor essa iniciativa – que vem dando muito certo – conversamos com o responsável por conduzi-la: o Juiz de Direito do TJ-RJ Werson Rêgo. Associado do Idec, Rêgo gentilmente interrompeu suas férias no início de janeiro para conceder esta entrevista por telefone à Revista do Idec. Confira.
Idec: Quais são os principais objetivos da iniciativa do TJ-RJ de adequação de contratos imobiliários e de que forma ela vem sendo implementada?
WERSON RÊGO: A ideia surgiu do interesse em diminuir o número de demandas na Justiça relacionadas ao setor imobiliário, que eram muito recorrentes. O setor manifestou vontade de adequar suas práticas; então, o desafio foi institucionalizar os procedimentos para isso. Criou-se um grupo de trabalho formado por representantes do TJ-RJ, da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro [OAB-RJ] e da Ademi [Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário]. Em seguida, foram criados fóruns com a participação de outros atores, como o Ministério Público, o Nudecon [Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro] e advogados especializados em mercado imobiliário, para discutir os principais problemas e buscar soluções. Das diversas reuniões de trabalho resultaram pontos de consenso, muitos dos quais convertidos em recomendações da Ademi aos seus associados – que representa mais de 85% dos incorporadores do Rio de Janeiro –, e em enunciados, aprovados em encontros de magistrados. Os primeiros resultados foram positivos e motivadores. Assim, visando à evolução dos trabalhos iniciados, propus ao grupo a criação de uma minuta de contrato, um texto-padrão a ser seguido por todos, a fim de afastar a concorrência desleal, eliminar práticas abusivas e evitar cláusulas ambíguas ou contrárias ao Código de Defesa do Consumidor [CDC].
Idec: Quais foram as principais mudanças em relação aos antigos contratos?
WR: Primeiro, a mudança conceitual. O contrato a ser celebrado entre as partes continua sendo de adesão, mas se afasta da ideia de que "quem redige o contrato se protege". Foram retiradas do contrato cobranças abusivas, como a taxa de decoração, a taxa de assessoria imobiliária – a famosa Sati [Serviço de Assistência Técnica Imobiliária] – e a taxa de deslocamento; estipulamos contrapartidas e sanções para os casos de atraso na entrega da obra; deixamos muito claras as condições em que a taxa de corretagem pode ser cobrada; adequamos os prazos de garantia contratual de acordo com uma nota técnica específica do setor, com prazos muito maiores para alguns sistemas – estruturas de segurança, por exemplo, têm garantia de 20 anos. Além disso, a minuta é muito voltada para a garantia da informação clara e precisa. Há cláusulas que começam com "atenção" e o documento é cromático: o texto-padrão é preto; o que precisa ser bem informado ao consumidor está em negrito; e o que tem de ser muito bem informado, porque é um direito do fornecedor, está em negrito e vermelho ou negrito e azul.
"A PLENA CONSCIÊNCIA DE DIREITOS E DEVERES RECÍPROCOS PELAS EMPRESAS E PELOS CONSUMIDORES LEVA À SEGURANÇA JURÍDICA E REDUZ SENSIVELMENTE O NÚMERO DE DEMANDAS"
Idec: Já é possível perceber os efeitos práticos da implementação desse projeto?
WR: Os imóveis têm um ciclo de produção longo, em média, superior a 24 meses. Hoje, as ações judiciais estão relacionadas a problemas com incorporações lançadas em 2010, ou antes até. Assim, os resultados práticos da minuta padronizada, como a redução no número de ações ajuizadas, serão melhor percebidos dois ou três anos após a sua implementação, isto é, a partir de 2016, quando as obras cujos contratos estão adequados à minuta começarem a ser entregues.
Não obstante, melhoras importantes ocorreram desde que o grupo de trabalho foi formado, como a redução do tempo de registro dos memoriais de incorporação, quando utilizado o check list elaborado em parceria com os registradores de imóveis; e a redução do número de reclamações fundamentadas no Procon-RJ em mais de 50%, de 2011 para 2012, após as recomendações da Ademi aos seus associados.
Idec: Como estão sendo julgados os casos que envolvem contratos anteriores à proposta de adequação? As decisões estão seguindo os parâmetros previstos na minuta?
WR: A minuta em si já é uma compilação das jurisprudências predominantes nos tribunais. Ou seja, de modo geral, ela buscou eliminar as práticas e cláusulas reconhecidamente abusivas. As divergências pontuais continuarão sendo decididas pelo Poder Judiciário. Sem prejuízo disso, diversos conflitos iniciados antes da elaboração do texto padronizado têm sido resolvidos com base nas soluções sugeridas por este. Em muitas situações, as próprias incorporadoras têm procurado os seus clientes para acordarem uma solução para as ações já ajuizadas, tendo por princípio aquilo que a minuta-padrão estabelece, ou em audiências de conciliação são formuladas propostas adequadas à minuta. Temos conseguido um grande índice de acordos extrajudiciais e judiciais.
Idec: O TJ-RJ foi convidado a integrar um grupo de trabalho criado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) para discutir os problemas do setor imobiliário com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC). A que se propõe esse grupo?
WR: A criação do grupo de trabalho foi anunciada recentemente, em dezembro passado. Penso que o grande objetivo seja levar segurança jurídica ao mercado imobiliário. O convite ao TJ-RJ, que muito nos orgulha, é o reconhecimento da seriedade do nosso trabalho. A experiência do TJ-RJ será compartilhada e discutida com todo o SNDC que, ao final, poderá definir o que é ou não válido no mercado imobiliário e, quem sabe, apoiar a aplicação desse modelo regionalizado que deu certo em âmbito nacional.
O raciocínio é simples: a partir da definição do que é abusivo e do que não é, incorporadores e consumidores terão balizadores para os seus comportamentos. Isso é muito positivo, pois será o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor sinalizando para todo o mercado imobiliário e para todo o judiciário nacional o que cada ente pode e o que não pode fazer. A plena consciência de direitos e de deveres recíprocos leva à segurança jurídica e reduz sensivelmente o número de demandas.
Idec: O senhor acredita que a adequação de contratos pode ser aplicada a outros setores do mercado?
WR: Sim, plenamente. Exemplo disso está ocorrendo com o setor de saúde suplementar agora, que tem um alto número de demandas. Estamos ouvindo as operadoras para, depois, uniformizarmos nossos entendimentos – como fizemos com o setor imobiliário. A grande diferença, nesse caso, é que o segmento [de planos de saúde] já é regulado pela ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], enquanto o mercado imobiliário não tem regulação alguma. De todo modo, acredito que podemos interferir de maneira positiva, procurando preservar os interesses econômicos de todos e eliminado os abusos que decorrem de posições de vantagem.
Idec: O atraso na entrega é um dos grandes problemas de quem compra imóvel na planta. Considerando a forma como a Justiça tem se posicionado, quais compensações o consumidor que é vítima desse atraso pode pleitear?
WR: A grande maioria dos contratos não prevê compensação alguma para o atraso. Finalmente, a jurisprudência tem reconhecido a configuração de dano moral na entrega fora do prazo contratado, mas em situações específicas e não como regra geral, sob o fundamento de que seria mero inadimplemento contratual. A minuta padronizada trata a questão de outra forma: admite a validade da cláusula de tolerância de até 180 dias, mas prevê uma compensação pecuniária de 0,5% ao mês, sobre o total pago pelo consumidor. Vencido o prazo de tolerância, estabelece uma sanção de 1% ao mês sobre o montante pago. Tais percentuais estão em consonância com um projeto de lei [PL no 178/2011] já aprovado na Câmara e, agora, em andamento no Senado. Além disso, o TJ-RJ, especificamente, tem decidido que, vencido o prazo de tolerância sem entrega do imóvel, o dano moral se dá em razão do fato em si, sendo possível a cumulação de indenização compensatória com as sanções contratuais.
Idec: Quais cuidados o consumidor deve tomar para se proteger de condições abusivas na compra de um imóvel na planta?
WR: O primeiro passo é apurar o histórico da incorporadora: veja se ela cumpre prazos de entrega e se tem ações na Justiça. Segundo: checar se o Memorial de Incorporação está registrado no RGI. Além disso, é preciso entender que o contrato é de adesão, ou seja, que já vem redigido e as cláusulas estabelecidas pelo incorporador. Esse contrato deve ser lido. É importante contar com uma assessoria jurídica confiável, pois a aquisição de um imóvel envolve questões complexas.
Em relação ao contrato em si, recomendo questionar e não aceitar a cobrança de taxa Sati, ou taxa de decoração; verificar se há comissão de corretagem e, sendo o caso, se ela é deduzida do preço do imóvel. Especial atenção com os juros do financiamento, que podem incidir desde o início da obra – o que, embora lícito, onera o consumidor. Por fim, checar se há alguma punição prevista [à incorporadora] em caso de atraso na entrega da obra.
Um conselho prático: guardar todo documento que lhe seja apresentado, especialmente peças publicitárias, memorial descritivo e recibos de pagamentos. Podem ser úteis em caso de inevitáveis ações judiciais.